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Escândalos derrubam a credibilidade das arbitragens nos setores público e privado

Vale proíbe câmaras arbitrais em contratos depois de julgamentos em que árbitros não revelaram situação de conflito de interesses; Petrobras e J&F enfrentaram o mesmo problema

Petrobras, Anderson Schreiber e os documentos que o comprometem: falta isenção (Foto: Reuters | Reprodução | Bruno Marins/OAB-RJ)

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Por Joaquim de Carvalho, 247 - As câmaras arbitrais foram introduzidas no Brasil em 1996, através da lei ​​9.307, para dar celeridade à resolução de disputas em contratos, tanto no setor privado quanto no público. Vinte e sete anos depois, a aplicação da lei tem sido contestada por juristas e também por executivos de grandes empresas.

No I Fórum Internacional de Arbitragem do Brasília, que terminou nesta quarta-feira, o vice-presidente de Assuntos Corporativos e Institucionais de uma das maiores empresas brasileiras, a Vale, disse que a previsão de câmara arbitral está proibida nos contratos atuais.

"Temos feito, lamentavelmente, inúmeras impugnações (de árbitros) porque descobrimos situações não reveladas e que criam evidentes conflitos de interesse", afirmou Alexandre D'Ambrosio. O executivo da Vale classificou alguns episódios de "escabrosos". 

Nesses casos, ao ser escolhido, o árbitro deixou de relatar que já tinha tido algum tipo de vínculo com uma das partes. O vice-presidente da Vale não revelou quais eram essas demandas, já que uma das exigências das câmaras de arbitragem é o sigilo dos processos.

Há pelo menos dois casos de conhecimento público em que um árbitro deixou de cumprir o dever de revelar situações de conflito de interesse. Um envolve a Petrobras e o outro, a J&F. 

Num caso, a Associação dos Investidores Minoritários, a Abradin (antes intitulada Aidmin), quer que a Petrobras pague cerca de R$ 1 bilhão pela desvalorização das ações após a Lava Jato, em 2014.

O advogado, procurador do Estado do Rio de Janeiro e professor Anderson Schreiber aceitou presidir a câmara sem revelar que tinha sido sócio do escritório que defendeu a Abradin e também que, pessoalmente, havia atuado em um processo de inventário que tinha o presidente da entidade como parte interessada.

Depois que a situação de conflito de interesses se tornou pública, inclusive com reportagem do 247 (aqui e aqui), Schreiber renunciou à presidência da câmara arbitral. Nesse caso, o julgamento ainda não tinha ocorrido. Mas, no outro caso, o vínculo de Schreiber com uma das partes demandantes só foi descoberto após a decisão da arbitragem.

Com voto favorável de Schereiber, a empresa Paper Excellence, do grupo indonésio controlado pela família Widjaja, venceu a disputa com a J&F pelo controle da fábrica de celulose Eldorado. O que Schreiber não revelou é que, anos antes, ele havia dividido escritório em São Paulo com a banca que representa a Paper Excellence.

A J&F recorreu e o caso está sob julgamento no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 

O não-cumprimento do dever de revelar, flagrante neste caso, é também objeto de uma Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a 1.050, que foi protocolada no Supremo Tribunal Federal e tem o ministro Alexandre de Moraes como relator.

Em manifestação enviada à corte em agosto, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que o árbitro tem o dever de revelar a situação de conflito de interesses, mas ressalvou que "a mera falha no seu exercício não conduzirá necessária e automaticamente à constatação de parcialidade e consequente anulação de sentença arbitral".

Ou seja, para Augusto Aras, a parte perdedora é que terá que demonstrar, na Justiça, que a omissão do árbitro ("mera falha", nas palavras dele) caracteriza parcialidade, e, ainda, que o não-cumprimento do dever de revelação causou prejuízo. 

Sem citar nomes, o jurista George Abboud, um dos palestrantes no Fórum em Brasília, lembrou nesta quarta-feira que a doutrina exposta por Aras não se sustenta do ponto vista jurídico ou simplesmente da lógica.

"O que é maior do que uma demonstração de prejuízo do que a perda de um procedimento arbitral em que o tribunal arbitral foi composto por alguém que falhou no dever de revelação?", comentou.

Para Abboud, exigir que a parte lesada demonstre o nexo de causalidade na ausência do dever de revelação em relação ao prejuízo carateriza o que, em direito, se chama "prova diabólica", ou seja, impossível de ser produzida. 

Assim como Abboud, outros juristas disseram no Fórum em Brasília que o não-cumprimento do dever de revelação é, em si, a causa de nulidade de uma decisão arbitral. 

Se ocorre num processo judicial quando um magistrado julga um processo, mesmo estando impedido, por que seria diferente nas câmaras arbitrais? 

"Enquanto os juízes têm uma série de controles (como o CNJ), em relação aos árbitros não há controle algum", afirmou Marcos Vinícius Coêlho, ex-presidente da OAB.

Quem aprovou a manifestação de Aras foi a Paper Excellence, que transformou a decisão do então procurador-geral numa peça de propaganda paga, no site jurídico Jota.

Impossível não lembrar que o governo Bolsonaro, que indicou Aras para a PGR, apoiou, publicamente, o grupo indonésio, com uma visita de Eduardo Bolsonaro a Jacarta, e outra do então vice-presidente, Hamilton Mourão, a Xangai. Nessas viagens, Mourão e Eduardo posaram para foto com o presidente do grupo, Jackson Widjaja, segurando um cheque fake.

Também indicado pelo governo Bolsonaro para o STF, o ministro André Mendonça foi um dos palestrantes do Fórum em Brasília e contou, sem revelar nomes, que um caso importante ajudou a afastar o poder público das câmaras arbitrais. 

Segundo ele, houve um conflito de interesses, que acabou influenciando a transparência e parcialidade do processo. Mendonça foi chefe da Advocacia-Geral da União.

Por essa razão, embora a lei admita, a administração pública não costuma recorrer às câmaras arbitrais. “O sistema de justiça arbitral precisa ter uma dimensão, percebida no âmbito dos entes públicos, de que serão feitas análises imparciais”, disse.

“O juízo arbitral tem que oferecer menores riscos do que o estado juiz. O eixo central para essa vantagem no âmbito do juízo arbitral é a garantia de imparcialidade, esse é o primeiro pressuposto”, acrescentou.

Também palestrante do Fórum de Brasília, o ministro Luiz Fux admitiu a crise de credibilidade nas arbitragens.“Estão sendo anuladas pela justiça devido à falta de boa-fé, no contexto do dever de revelação dos árbitros.”, pontuou. Segundo ele, esse dever já está na lei e deveria ser cumprido com seriedade.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, encerrou o Fórum e defendeu a arbitragem como instrumento para resolver conflitos e evitar acúmulo de processos no Judiciário. Não entrou em detalhes sobre a ADPF 1.050, uma vez que deverá julgá-la, assim como Fux e Mendonça.

Mas, como todos os presentes, entende que deve haver debate sobre a aplicação da legislação que regulamenta as câmaras arbitrais. 

Não há dúvida de que há problemas graves e, para corrigi-los, o caminho é o Judiciário. Afinal, ninguém está acima da Constituição, nem mesmo os árbitros. 

O objetivo da lei 9.307 foi dar segurança jurídica e agilidade nos contratos celebrados no Brasil. 

Quando omite que teve relacionamento com uma das partes, o árbitro compromete a arbitragem e, sem credibilidade, esse instituto extrajudicial gera o oposto de outro de seus propósitos iniciais, que foi desafogar a Justiça.

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