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O tsunami inflacionário global é fabricado nos EUA, não na Ucrânia, diz economista

John Ross aponta que onda inflacionária está ganhando impulso à medida que os EUA tentam controlar a inflação aumentando rapidamente as taxas de juro

(Foto: Reuters/Philippe Wojazer)

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Artigo de John Ross*, originalmente produzido pelo Globetrotter e publicado no Green Left em 12/10/22. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz para o Brasil 247

Um tsunami inflacionário está passando pela economia do mundo, criando uma desordem econômica – em alguns casos, criando uma crise política aguda – em cada país pelo qual passa.

Isto está ganhando impulso à medida que os EUA, que lideram outras economias do Norte Global, tentam controlar a inflação ao aumentar rapidamente as taxas de juro – forçando as economias do Norte Global a entrar em recessão.

Assim, as economias do Sul Global têm sido atingidas por um golpe quádruplo, produzindo ainda mais estagflação severa, inflação crescente, desaceleração do crescimento do que no Norte Global.

Primeiro, a alta das taxas de juro nos EUA força para cima a taxa de câmbio do dólar contra as moedas dos países em desenvolvimento, aumentando os preços das importações que são geralmente cotados em dólares, piorando, assim a inflação nestes países em desenvolvimento.

Segundo, a alta do dólar contra as moedas dos países em desenvolvimento aumenta o custo, nas suas moedas, para pagamento das suas dívidas internacionais, cujos preços são em dólar.

Terceiro, para tentar evitar uma queda muito aguda nas suas taxas de câmbio, e para tentar evitar que o capital flua para fora das suas economias para os EUA, os países do Sul Global aumentam as taxas de juro, empurrando as suas economias para a recessão.

Quarto, a recessão no Norte Global diminui a demanda de exportações do Sul Global, colocando ainda mais pressão para baixo nas suas economias.

Politicamente, esta situação cria crises para diversos regimes de direita no Sul Global, porém também adiciona pressões negativas sobre as políticas de países com governos progressistas de esquerda e conduz à ameaça de “revoluções coloridas”.

A inflação dos EUA

Os EUA alegam que esta inflação global e as pressões para baixo das condições de vida que esta cria, se devem à guerra na Ucrânia – e que, portanto, os países devem culpar a Rússia e unirem-se contra ela. Porém, uma rápida olhada nos fatos refuta esta alegação.A guerra na Ucrânia começou em 24 de fevereiro de 2022, mas a inflação já estava subindo agudamente quase dois anos antes disso. Os aumentos de preços nos EUA foram de 0,1% em maio de 2020; porém, em janeiro, antes da guerra na Ucrânia, os preços haviam subido em 7,5% – a inflação dos EUA aumentou em 7,4% antes da guerra. Em agosto, os aumentos de preços nos EUA foram de 8,3%, um aumento de apenas 0,8% desde que a guerra começou.

Mais de 90% dos aumentos de preços nos EUA ocorreram antes da guerra na Ucrânia. Portanto, é importante se pensar criticamente quando os EUA culpam a Rússia pela inflação mundial e a resultante redução dos padrões de vida. A enorme onda inflacionária nos EUA – a qual se espalhou globalmente com um atraso de apenas dois a três meses, já que os EUA são a maior economia do mundo – ocorreu antes da guerra na Ucrânia. Como o conselho editorial do Wall Street Journal observou: “Esta não é a inflação de Putin ... Esta inflação foi fabricada em Washington”.

O que causou a inflação nos EUA?

É fácil explicar em termos econômicos técnicos por que a inflação aumentou nos EUA – que foi analisada pelos economistas estadunidenses à medida que esta ocorria, como foi o caso do ex-secretário do tesouro dos EUA, Larry Summers.

Em maio de 2021, Summers advertiu: “Nós estamos assumindo riscos substanciais no lado da inflação ... A ideia do ‘FED’ era que eles removiam a bacia de ponche antes da festa ficar boa ... Agora, a doutrina do ‘FED’ é que eles só removerão a bacia de ponche depois que eles verem algumas pessoas bêbadas cambaleando por aí... Nós estamos imprimindo dinheiro, estamos criando bônus do governo, e estamos pegando empréstimos em escalas sem precedentes.”

O déficit orçamental dos EUA aumentou para 26% do produto interno bruto (PIB) e o aumento anual da oferta monetária dos EUA atingiu 27% - ambos de longe os mais elevados da história dos EUA em tempo de paz. Com um enorme aumento da procura, e sem grande aumento da oferta, a subida da inflação nos EUA foi inevitável.

Qual foi a função da inflação?

Porém, mais importante do que uma explicação técnica é compreender a função social da inflação. A inflação mostrou que a demanda foi muito maior do que o fornecimento, fazendo uma pressão altista sobre os preços de bens e serviços. Então, sem ocorrer um aumento no suprimento, a demanda teve que ser cortada. A questão-chave social foi: qual gasto dos EUA seria cortado?

Muitas das reformas nos EUA poderiam ser implementadas se cortando a demanda e realocando os gastos, reduzindo, assim, as pressões inflacionárias, enquanto não reduzindo os padrões de vida estadunidenses – efetivamente, estas reformas melhorariam a eficácia econômica e os padrões de vida dos EUA. Os gastos militares dos EUA são os mais altos do mundo – mais do que os gastos militares dos nove países seguintes combinados. Estes gastos de 3,7% de PIB dos EUA poderiam ser reduzidos sem reduções nos padrões de vida dos EUA.

Igualmente, em 2020 os gastos dos EUA com cuidados médicos alcançaram 19,7% do PIB, quase um quinto da economia. Mas o sistema de cuidados médicos nos EUA é muito ineficaz.

Os EUA gastam uma proporção mais alta com cuidados de saúde enquanto uma parcela da sua economia do que qualquer outra economia no mundo; mas a expectativa de vida dos estadunidenses é de apenas 77 anos, comparados com uma média de 83 anos em outras economias de alta renda. O custo do sistema privado de cuidados de saúde nos EUA inclui uma proporção maior da economia do país para que os seus cidadãos vivam cerca de seis anos a menos do que em outros países comparáveis.

Reduzir os gastos militares dos EUA, ou racionalizar os cuidados de saúde, iria contra os interesses corporativos dos fabricantes de armamentos e a grande indústria farmacêutica, respectivamente.

Uma redução dos gastos militares dos EUA forçaria uma diminuição da sua política militar agressiva no exterior.

Racionalizar os cuidados de saúde nos EUA implicaria uma mudança na direção de um sistema público de cuidados de saúde, como é usado com mais sucesso por outros países e cortaria os lucros das grande corporações privadas de cuidados de saúde.

Os interesses implícitos do governo dos EUA de apoiar os fabricantes de armamentos e a grande indústria farmacêutica significa que tais ações não serão feitas.

Porém, se nenhuma medida for tomada contra estes interesses comprometidos, então a única maneira alternativa para reduzir os gastos é cortar os padrões de vida da classe trabalhadora. Como explicou John Maynard Keynes, é muito mais fácil reduzir os salários reais através da inflação alta, do que reduzir diretamente os salários em dinheiro – este é um corte parcialmente escondido e os trabalhadores não podem negociar com os seus empregadores em níveis acima da inflação.

A inflação de médio e longo prazo é desestabilizadora e deve ser controlada – normalmente, no capitalismo, isto é realizado através da recessão. Mas a inflação de curto prazo é uma ferramenta poderosa para reduzir os salários reais, que é o que está ocorrendo.

Os salários médios em dinheiro nos EUA estão aumentando – em agosto eles subiram em 4,6%. Mas os preços aumentaram mais rapidamente – em 8,3% durante o mesmo período. Portanto, os salários reais nos EUA diminuíram, como tem sido a cada mês desde abril de 2021. Em agosto de 2022, os ganhos semanais reais nos EUA foram 3,4% menores do que um ano antes.

Porém, esta inflação, que está reduzindo os ganhos reais dos trabalhadores estadunidenses, se espalha para o resto do mundo, criando uma crise no Sul Global. Portanto, a inflação nos EUA ataca tanto os trabalhadores estadunidenses quanto os do resto do mundo.

*Este artigo foi produzido pelo website Globetrotter. O seu autor, John Ross, é um membro sênior do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros e da Universidade Renmin da China. Ele também é membro do comitê organizador da campanha internacional ‘No Cold War’ [Não à Guerra Fria]. Os seus escritos sobre as economias chinesa e estadunidense e sobre geopolítica tem sido amplamente publicados online, e ele é o autor de dois livros publicados na China: ‘Don’t Misunderstand China’s Economy’ e ‘The Great Chess Game’. O seu livro mais recente é ‘China’s Great Road: Lessons for Marxist Theory and Socialist Practices’ (1804 Books, 2021). Previamente, ele foi o diretor de política econômica de Ken Livingstone, quando este último foi o prefeito de Londres.

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