Dia da Água: no semiárido brasileiro, programa de cisternas enfrenta corte de recursos
O valor previsto na Lei Orçamentária Anual para 2020 foi de R$ 50,7 milhões, a destinação mais baixa desde a criação do programa. Para piorar, o orçamento empenhado não estava sendo executado
Sputnik Brasil - Neste dia 22 de março é comemorado o Dia Mundial da Água, quando o tema desse bem essencial à vida é mais debatido e ganha espaço em todos os ambientes sociais, principalmente na mídia.
Os desafios de uso e manejo da água no meio rural é objeto de estudo de vários especialistas, que se debruçam sobre um grande desafio: como disponibilizar água em regiões semiáridas e áridas de nosso território para uso doméstico, agricultura e criação de animais?
Do Nordeste do país, vem uma solução que tem trazido alívio para milhares de famílias: o armazenamento da água das chuvas em cisternas.
Programa Um Milhão de Cisternas
No início dos anos 2000 foi o criado o Programa Um Milhão de Cisternas, o P1MC, cujo principal objetivo é melhorar a vida das famílias que vivem na região semiárida do país, garantindo o acesso à água de qualidade.
Através do armazenamento da água da chuva em cisternas construídas com placas de cimento ao lado de casas e escolas, as famílias e estudantes que vivem na zona rural dos municípios do semiárido passam a ter água potável a apenas alguns metros de suas casas e escolas, sem precisar se deslocarem por quilômetros para buscá-la em açudes.
O programa foi criado pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede que defende, propaga e põe em prática, inclusive através de políticas públicas, o projeto político da convivência com o semiárido.
Formada por mais de três mil organizações da sociedade civil de distintas naturezas — sindicatos rurais, associações de agricultores e agricultoras, cooperativas, ONGs, Oscips etc. — a ASA conecta pessoas organizadas em entidades que atuam em todo o semiárido, defendendo os direitos dos povos e comunidades da região. As entidades que integram a ASA estão organizadas em fóruns e redes nos dez estados que compõem o Semiárido Brasileiro (BA, SE, AL, PE, PB, RN, CE, PI, MA e MG).
A Sputnik Brasil ouviu o coordenador executivo da ASA, Alexandre Henrique Pires, que falou sobre a iniciativa e as dificuldades enfrentadas nos últimos anos com os baixos repasses de recursos por parte do governo federal para atender o programa.
"O programa cisternas é uma iniciativa da sociedade civil que foi apresentada ao governo federal como uma estratégia e uma oportunidade de a gente mudar a situação de enfrentamento aos períodos de estiagem e de convivência com o semiárido brasileiro de uma vez por todas. Essa iniciativa encontrou um ambiente democrático e de diálogo que permitiu que a sociedade civil e o Estado brasileiro construíssem o programa ao longo desses anos”, começou dizendo Pires.
Ao longo dos anos, essa relação entre estado e sociedade construiu 1,3 milhão de cisternas, com aproximadamente seis milhões de pessoas com acesso à água potável, de qualidade, garantindo sobretudo mudança de vida para as pessoas que vivem na zona rural do semiárido brasileiro.
Segundo o coordenador, o projeto passa por um momento de desestruturação e desconstrução da estrutura de gestão no governo federal e de redução significativa dos investimentos. Ele destaca que a iniciativa ganhou o mundo e hoje é reconhecida como uma política para o futuro pela Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.
A Sputnik Brasil também conversou com a agricultora e comunicadora popular Antônia Maria de Jesus Alves, uma das beneficiárias do programa. Ela contou como sua vida mudou após a construção de uma cisterna em seu quintal.
"Falar de cisterna para mim é falar de vida, porque depois que eu ganhei essa cisterna melhorou muito a minha vida aqui na minha comunidade, aqui no meu quintal, porque antes a gente não tinha água, pegava de chafariz. Eu tinha vontade de produzir no meu quintal, fazer uma horta, fazer canteiro, não tinha como plantar nada. Depois que eu recebi essa cisterna minha vida melhorou muito", declarou Antônia.
Ela disse que com a água armazenada na cisterna, conseguiu fazer seu quintal, com muitas variedades de plantas, canteiros para horta, o que a ajudou a obter uma renda extra. Muitas outras família puderam diversificar a criação de animais com mais acesso à agua, e começaram a criar galinhas, porcos, cabras etc.
Dificuldades de financiamento
Pires declarou que diante da importância do projeto para as famílias do semiárido, como no exemplo de Antônia, ele deveria ser ampliado e levado a cada vez mais comunidades, mas não é o que vem acontecendo.
"Esse momento que a gente vive da pandemia do novo coronavírus seria o momento, no nosso entendimento, onde o governo federal deveria ter ampliado e investido mais os recursos na construção dessas tecnologias, no diálogo com a sociedade civil, com os governos dos estados da Região Nordeste e de Minas Gerais, exatamente para que a gente pudesse ampliar o número de famílias com acesso a água, como uma condição importante na prevenção contra o novo coronavírus", declarou o coordenador da ASA.
Porém, o ano de 2020 foi um dos que houve menor investimento dos recursos do programa de cisternas ao longo da história. Pires disse que o montante de recursos ficou muito mais próximo dos investimentos do ano de 2006 quando ainda se estava de início do programa. O valor previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) para o ano foi de R$ 50,7 milhões, a destinação mais baixa desde a criação do programa. Para piorar, o orçamento empenhado não estava sendo executado, segundo levantamento da ASA.
Prioridades para o semiárido e agricultura familiar mudaram?
Segundo Pires, a ASA tem buscado o diálogo com o Ministério da Cidadania, órgão responsável pela gestão do programa cisternas, mas os esforços não têm surtido efeito concreto do ponto de vista da liberação ou da ampliação de recursos para o programa de cisternas.
"Isso nos remete ao entendimento de que há uma mudança de prioridade do governo federal para a agricultura familiar, para o semiárido brasileiro, que significa dizer no nosso entendimento que essa região, esse território, o povo que vive nesse espaço, não é prioridade para as ações de investimento no que diz respeito ao direito e acesso à água por parte do governo federal", lamentou o coordenador da iniciativa.
Para a família de Antônia a cisterna chegou e trouxe mudança de vida. Milhares de outras famílias espalhadas pelo semiárido nordestino, a iniciativa representa uma esperança e se torna cada vez mais importante para o sustento e fixação do homem no campo.
"A partir [do momento] que eu recebi essa cisterna eu tive esse projeto de vida. Produzir no meu quintal, agora eu tenho como, eu crio porco, eu crio galinha, tem meus canteiros, tenho inúmeras variedades de plantas frutíferas no meu quintal que antes eu não tinha. [...] E hoje é só abrir a porta da minha casa eu já tenho a água no meu quintal… A cisterna é tudo para mim hoje", resumiu a agricultora.
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