A segurança pública segue como forte desafio para o novo governo
Uma guinada às bases produziria, no mínimo, uma postura distinta daquela proposta pela Superintendência da Polícia Federal
Kant de Mila (InEAC) - Após seis meses de sua posse, o governo encabeçado por Luís Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin parece obter um saldo positivo. Em parte porque o foco das análises está posta naquilo que interessa aos grupos sociais que as empresas de mídia representam. Estão aí as repercussões das aprovações do novo marco fiscal, assim como da reforma tributária, que não deixam margens a dúvidas. Ou mesmo quando as atenções se voltam para a defesa do ideal democrático, contendo os abusos comportamentais da chamada extrema direita. Contudo, o governo federal tem deixado de marcar pontos importantes em relação à pauta política. Em especial na segurança pública, onde o apoio das camadas inferiores das agências policiais à lógica bolsonarista, galvanizado por um ideal militarista e/ou punitivista, ainda é forte.
Neste breve texto, eu tenho por objetivo argumentar acerca de eventuais lacunas e expressar certa apreensão diante da falta de menção pública sobre as estratégias para o setor. Farei considerações sobre aspectos estruturais, bem como algumas proposições. Tenho por objetivo contribuir com temas relacionados ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública que, a meu juízo, tem tido a rara oportunidade de contar com uma liderança hábil.
O senador licenciado Flavio Dino tem se revelado um dos expoentes do atual governo. Inteligente e bem articulado, ele está à frente de uma pasta prestigiosa, salvaguardada por recursos orçamentários e financeiros significativos. Mostra-se preparado para o exercício enquanto ministro, principalmente diante das câmeras. Apresenta rara disposição para dialogar, bem como altivez na esgrima às controvérsias instiladas pelos adversários. No Ministério, o ex-juiz tem se mostrado preciso na articulação dos dirigentes responsáveis pelas Polícias Federal, Rodoviária Federal e Penal, instâncias sob sua intervenção direta. O que não quer dizer, porém, que ele esteja acertando tudo.
Conforme eu vejo - e, principalmente, escuto, em decorrência das pesquisas que realizo - até aqui o ministro não vem “ouvindo as bases”. Entre as críticas, consta que ele vem abrindo mão de dialogar com agentes policiais experimentados que, entre outras coisas, estiveram atuando “na ponta” contendo ou enfrentando os numerosos contingentes que apoiam Bolsonaro nas corporações. Agentes que se arriscam em se representarem como de esquerda ou progressistas. Alguns, por exemplo, atuam em movimentos como a RENOSP LGBTI+ - uma livre associação de agentes LGBTI+ que trabalham nas diversas instituições de segurança pública no Brasil -, ou dos Policiais Antifascistas.
A meu juízo a interação destes atores com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública pode favorecer políticas que apontem para questões importantes. Como, por exemplo, o debate consequente para a pauta da “profissionalização” da polícia, estabelecendo como meta fundamental a adoção do “ciclo completo de policiamento”, terminando o divórcio entre práticas ostensivas e investigativas, nas agências estaduais, bem como na PRF. Isso representaria liderar um debate que resultasse em uma emenda constitucional para alterar parte do capítulo sobre a ordem pública. Tal esforço deveria ser acompanhado, do ponto de vista das leis ordinárias, com a proposição de diretrizes para planos de carreira, bem como uma estrutura de cargos e salários padronizada para todos os estados, garantidos pelo SUSP. Desta forma, eventuais discrepâncias de ganhos não seriam tão gritantes, como se observa atualmente.
Pode-se achar ingenuidade propor isso para um ambiente profissional tão conflagrado. Mas é preciso sopesar que, historicamente, os investimentos feitos na segurança pública são justificados para mitigar o quadro de precariedade das instituições e dos agentes. Daí a justeza das propostas aqui veiculadas, porém amarradas com a produção de protocolos que previnam ou punam exemplarmente o recurso à força desmedida e aos casos de gatilho fácil. Ou seja, prevendo penosos processos administrativos e jurídicos, cujas sanções resultem da perda da função à quitação da liberdade, diante da prática comprovada de crimes.
Em resumo, é preciso tirar da atividade policial os grilhões que as aferram às oligarquias políticas que, historicamente, rejeitam os valores da cidadania. Afinal, a sociedade brasileira deve ser informada de maneira adequada sobre a chamada segurança pública referir às dezenas de milhares de pessoas que, embora trabalhem, não são trabalhadoras de fato. Em muitos casos estas não possuem direito à livre associação sindical ou um regime jurídico que lhes estabeleça direitos e deveres, bem como códigos de ética ditados por princípios civis. Consequentemente, não são capazes de promover um sistema onde direitos para cidadãos constitua um bem a tutelar. Desconhecem e desprezam tal ideia.
Uma guinada às bases produziria, no mínimo, uma postura distinta daquela proposta pela Superintendência da Polícia Federal, que recentemente opinou ser apropriado impedir que policiais se exercitem na política. Parece-me importante, pelo contrário, assegurar o direito à liberdade de expressão, de maneira ordeira e civilizada. Sim, porque como eu aprendi através das etnografias realizadas com agentes policiais, o que parece ser proibido expressar nos contextos onde policiais desenvolvem suas atividades é, justamente, a opinião em prol da tolerância, da cidadania, da razoabilidade no trato com valores como o direito à liberdade e à vida. Em lugar de reservar as sombras para a existência de setores comprometidos com a democracia, é possível que seja o momento de lhes dar relevância e protagonismo.
Para isso, é preciso atraí-los para o debate e permitir que apoiem o Ministério na direção de políticas consequentes para o setor. Tal movimento já garantiria uma repercussão significativa entre seus pares, ou seja, “daria o que falar”, gerando expectativas. Estas, porém, devem ser contempladas por políticas que permitam disputar a atenção e apoio de uma grande massa de agentes, principalmente se, para além da alavancagem salarial, existirem políticas de atenção à saúde da categoria, uma das mais afetadas por distúrbios neurais e psíquicos, entre as profissões.
É certo que há entre os contingentes policiais um número significativo de atores que anseiam as vantagens materiais e simbólicas oportunizadas pelo exercício de arbitrariedades levadas a cabo por determinados grupos policiais. Estes últimos muitas vezes operam em conformidade com os interesses políticos das camadas dirigentes, que tão somente exigem que tais ações não se tornem públicas, comprometendo os objetivos extratistas que têm sido a razão de ser de tais grupos políticos. Mas mesmo esses atores sabem que quando “dá merda”, segundo o discurso nativo, a corda arrebenta do lado mais fraco.
É possível apostar que se pode pôr um fim na lógica de adesão às lealdades corporativas que, como demonstram as etnografias realizadas por pesquisadores do InEAC, servem tão somente para proteger os poderosos, naturalizando a desigualdade no âmbito das forças de segurança. É necessário que se tome conhecimento que a maioria dos agentes policiais querem, primeiramente, trabalhar. E, sabendo-o, constitui em prática de Estado construir protocolos do que seja trabalhar enquanto policial, no âmbito de um estado democrático de direito, lhes reservando contrapartidas em prol de uma existência digna.
É imperioso, a esta altura, conhecer como a máquina de moer carne, constituída de agências de segurança pública, muitas vezes se revela um aparato antiprofissional e antirrepublicano, que brutaliza aquele ser humano que apostou naquele contexto para contratar sua força de trabalho. Esta acaba sendo empregada, não inadvertidamente, no usufruto de arbitrariedades que acabam atingindo as classes mais pobres, em especial a juventude negra e a favela que cada vez mais podem ser vítimas de inúmeras maneiras do quadro de insegurança que está naturalizado no país. Em especial, aquelas promovidas por agentes do Estado.
Finalmente, julgo como das ações mais legítimas para o Ministério da Justiça e da Segurança Pública a busca por compreender os contornos das representações antiliberais e republicanas que se abrigam nas hostes policiais e, a partir do diálogo com agentes que enfrentam esta realidade diuturnamente, de forma crítica, perceber como, afinal, poder-se-á cortar o mal pela raiz, de norte a sul do país.
É necessário intervir com políticas que “desçam” até os estados e municípios. É certo que, no momento, há políticas freadas pela inexistência de orçamento, efeito da malversação eleitoreira que esvaziou expectativas orçamentárias e financeiras para amplos setores da administração pública federal. Mas as necessidades não param. Seguem os massacres diuturnos conduzidos pelas polícias, em lugares como o estado do Rio de Janeiro, sob o comportamento cúmplice do governo do Estado. O mesmo Rio de Janeiro que é o berço esplêndido do bolsonarismo raiz, em suas associações intermináveis entre ilegalismos e arbítrios, fazendo da segurança pública um empreendimento econômico e político, ao mesmo tempo. No estado onde as polícias mais matam pessoas pobres, negras e faveladas, tem cabido ao Supremo Tribunal Federal enfrentar as controvérsias decorrentes da mitigação pelo governo do estado em utilizar câmeras em policiais para que se façam cumprir as urgentes determinações da ADPF 635.
O ministro Flávio Dino, a meu juízo, deveria querer dialogar fortemente com esses grupos. Com sua reconhecida capacidade de liderança e inteligência, na condução de uma equipe competente como a que o assiste no ministério, ele teria muito a extrair de suas experiências, traçando linhas de ação que potencializem ainda mais sua administração. Até aqui, sua atuação tem sido muito boa, e ela tem o potencial de transformar significativamente uma área tão sensível e cara, fundamentalmente para consolidar a reação democrática com a qual estamos comprometidos.
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