Insistir no lawfare: o caso Daniel Jadue e a espetacularização da justiça
"O caso de Daniel Jadue mostra uma mudança estética que se refere a uma mutação maior do processo judicial: sua despolitização"
Por Sofía Brito e Juan González
"Acho que devemos nos livrar da ideia de guerra judicial ou lawfare", afirmou o ministro da Justiça, Luis Cordero, em uma entrevista. Alguns meses antes, o presidente do Conselho de Defesa do Estado, Raúl Letelier, havia anunciado na CNN que apresentaria denúncias contra o prefeito de Recoleta, pois havia sido observada a prática de algum tipo de atividade ilícita. Quais são os limites políticos da exposição de um processo judicial midiático? Sem dúvida, surgem diferenças em relação a outros casos em que as redes dos envolvidos são outras. As implicações do caso Hermosilla no poder judiciário, ou a prisão domiciliar de Kathy Barriga e Eduardo Macaya, são talvez os exemplos mais gritantes.
O lawfare não é uma guerra, mas está inserido em uma. Foi nesse contexto que surgiu. Uma rápida leitura bibliográfica sobre sua origem revela imediatamente o nome do general aposentado da Força Aérea dos EUA, Charles J. Dunlap Jr., que se queixava de como o sistema de direito internacional é usado para desacreditar o uso militar dos Estados Unidos e seus aliados. Trata-se do "uso da lei como meio para se conseguir o que de outra forma teria que ser obtido com a aplicação da força militar tradicional".
Não surpreende, apesar de ser polêmico, que o conceito de lawfare tenha sido trazido para o contexto latino-americano. Como observa Raúl Zaffaroni, não se trata de um fenômeno propriamente novo em nosso continente. O uso político das instituições jurídicas faz parte da nossa própria história do direito.
Concentremo-nos no processo que o Ministério Público segue contra Daniel Jadue, particularmente nos aspectos discursivos que o Ministério Público desenvolve (e que foram aceitos pelo Tribunal), no espaço público específico configurado pelo processo penal contra o militante comunista. Especificamente, em como o Ministério Público se posiciona na gestão de certos interesses, confirmando vieses conservadores e manifestando as contradições do nosso modelo econômico e social. Jadue é levado ao processo judicial na qualidade de prefeito e presidente da Associação Municipal de Farmácias Populares. Em um contexto de mercado farmacêutico oligopólico que prioriza o lucro em detrimento do acesso a medicamentos, a iniciativa das farmácias populares foi uma resposta desenvolvida pela prefeitura de Recoleta para enfrentar essa situação, aliando-se a outros municípios. A lei permite que os municípios formem esse tipo de associação em uma organização com uma natureza jurídica sui generis, pois trata-se de uma associação de direito privado que administra fundos públicos provenientes das prefeituras.
O fato de essa iniciativa pública-municipal ter acabado operando sob uma figura jurídica privada reflete as limitações (e o absurdo) do nosso quadro legal para lidar com problemas sociais urgentes, que o Ministério Público parece não ver. Daniel Jadue é acusado de administração desleal, fraude ao fisco, ocultação de bens, suborno e estelionato. Ele é acusado de, durante a pandemia, ter convencido a empresa Best Quality (uma distribuidora de insumos médicos) da força da Associação de Farmácias Populares, para que esta lhe vendesse certos insumos médicos (máscaras, álcool em gel e fitas para glicosímetros), apesar dos números ruins da associação (aí estaria o estelionato). Alega-se que essa negociação estabeleceu condições tão ruins que levaram à falência (liquidação nos termos da legislação atual) da referida associação (administração desleal) e, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que provoca a falência da Associação de Farmácias Populares, tenta mantê-la em funcionamento com recursos municipais (fraude ao fisco). Essa contradição nas acusações ignora a natureza e os objetivos desse tipo de iniciativa público-social.
Além disso, a interpretação do Ministério Público sobre a suposta "ocultação de bens" decorre da transferência de propriedade de uma fábrica de próteses auditivas que atendiam as pessoas mais pobres do município de Recoleta ao controle de um ator que representa os interesses de particulares (entre eles o da empresa cujo proprietário foi incluído/formalizado nesta mesma causa), o que implica priorizar esses interesses em detrimento do bem-estar da comunidade. Essa abordagem revela uma visão do Ministério Público mais alinhada com interesses privados do que com o interesse público.
O caso também destaca outras complexidades legais e éticas que surgem quando iniciativas públicas operam na fronteira entre o estatal e o privado. A acusação de suborno, por exemplo, baseia-se em uma interpretação questionável do status de Jadue como funcionário público no contexto de uma associação legalmente definida como privada. No entanto, o que queremos destacar é como o processo penal, enquanto espaço público ao qual é levado, constitui uma racionalidade que protege certos interesses em detrimento de outros, retirando-os desse lugar sombrio que parece ocultar a linguagem jurídica.
Vamos observar agora a escolha de argumentos sobre prisão preventiva que se desenvolvem. A esse respeito, devemos ter em mente o conflito político-criminal sobre o qual a discussão ocorre. Podemos ver duas correntes opostas: uma democrática, focada na proteção dos direitos humanos, e, à direita, uma autoritária. Essa dicotomia, o jurista Raúl Zaffaroni a descreve como o "verdadeiro direito penal" e o "direito penal envergonhado". Este assunto coloca na mesa questões fundamentais sobre o papel do Estado, a natureza da justiça e os limites do direito penal em uma sociedade democrática.
A juíza de primeira instância, ao decretar a prisão preventiva, poderia ter argumentado com base no artigo 139 do Código de Processo Penal e ter sustentado que, por exemplo, a prisão domiciliar total seria suficiente para garantir as finalidades do processo, a segurança da vítima ou da sociedade. Isso porque se tratava de uma pessoa de relevância pública, que estava à disposição do Ministério Público e das diligências por ele solicitadas antes de a investigação ser formalizada. O Ministério Público, com base no princípio da objetividade, poderia ter solicitado o mesmo. Mas o Tribunal e o Ministério Público escolheram argumentar com base nos critérios de periculosidade estabelecidos por esse mesmo Código.
Foi uma escolha do Ministério Público e do Tribunal tratar Jadue como uma figura perigosa que deve ser neutralizada por meio do encarceramento. Foi uma escolha pela prisão preventiva em detrimento de qualquer outra medida, embora deva ser aplicada apenas na falta de qualquer outra e que só se justifica na medida em que seja o único meio para o desenvolvimento eficiente das investigações. Assim como os tratados de direitos humanos e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos impõem tanto ao Ministério Público quanto aos Tribunais. Foi uma escolha de normas dentro do sistema que configura um processo penal de determinadas características ao qual é levado Daniel Jadue. Essa escolha por parte do Tribunal torna óbvia a racionalidade político-jurídica do processo ao qual ele comparece. Para declará-la, sustenta-se em um único critério: a possível pena a que ele estaria exposto caso esses delitos sejam comprovados.
Nesse contexto de crise do sistema político, não parece estranho que, quando surge um caso de corrupção na política, não duvidemos de que seja verdade. A premissa é que todos os políticos roubam. Opta-se pela espetacularização de alguns desses casos. Para obliterar as problemáticas sociais e políticas que abriram a necessidade constituinte de outubro de 2019, é necessário construir inimigos em todos os setores. São necessários sacrifícios midiáticos.
Como nos diz a advogada e ex-promotora argentina Cristina Caamaño:"Introduz-se na opinião pública o título impactante de uma notícia, contendo sempre as palavras que a opinião pública recepta de forma absolutamente negativa (corrupção, malversação ou fraude podem ser úteis para essa função). Essa notícia é difundida através dos meios de comunicação hegemônicos, sem que importe se há ou não base probatória. Por sua vez, o setor judicial dá início a uma ação penal e começa a 'coletar o material probatório'. Não importa se são fotocópias que nunca poderão ser periciadas; também não importa a forma como as provas são obtidas; muito menos se vão se preocupar em garantir os direitos do acusado."
Esse sacrifício é conseguido no enquadramento que os meios de comunicação fazem da prisão preventiva, que, apesar de ser uma medida cautelar do processo penal, é apresentada como um triunfo do modo de operação da "justiça". Embora falte uma investigação (ou pelo menos não a encontramos na rápida análise que fizemos para este breve trabalho) mais detalhada em nosso país, na bibliografia comparada, verifica-se, pelo menos, como fora do âmbito judicial os meios de comunicação "entram" na administração da justiça e condicionam as decisões dos operadores jurídicos, publicitando – e às vezes reprovando – as decisões judiciais. Dessa forma, a presunção de inocência cede à notícia-mercadoria e se torna um princípio sem sentido, ou que opera apenas para alguns poucos, pressionando em uma direção que exige a prisão preventiva como regra geral.
Os números mostram que, longe de ser excepcional, provisória e proporcional em nosso sistema, já em 2021 as pessoas sujeitas a essa medida representavam 36,5% da população carcerária no Chile. Em 2020, 77% das pessoas em prisão preventiva receberam uma sanção não privativa de liberdade e mais de 33 mil acusados em prisão preventiva foram declarados inocentes naquele ano. Pouco importa a referência à nossa própria legislação e aos compromissos internacionais em matéria de direitos humanos. Encarcerar torna-se uma solução rápida contra a sensação de impunidade, de insegurança e contra as falhas do sistema político. Ao menos parece que se está "fazendo algo". Que o problema "já está nas mãos da justiça."
Assim, a prisão preventiva passa a ser considerada como um meio de anestesia social. A "opinião pública" pode ficar tranquila. É aí que surge a "novidade" do lawfare: na espetacular aliança "jurídica" e "comunicacional". O lawfare, nesse sentido, é a utilização da espetacularização do sistema jurídico para desacreditar e perseguir o opositor político no espaço público. No caso de Daniel Jadue, é a imagem do militante comunista algemado, que exclui toda possibilidade de racionalidade jurídico-política no contexto do processo penal. Como observa o filósofo Rodrigo Karmy, cede-se, em uma inversão performativa, às lógicas jurídicas onde a imagem da pessoa "vestida de amarelo, algemada, encarcerada e exibida pelos meios de comunicação como presa de uma caça, não diz outra coisa além de que tal homem já foi condenado."
O lawfare não pressupõe que aqueles que representam projetos políticos de esquerda sejam bastiões imaculados de probidade e transparência ou a vanguarda organizada do povo. As formas pelas quais a política atua nos processos judiciais não correspondem mais aos parâmetros de perseguição política que conhecíamos, pois a ordem sensível do processo judicial mudou. Elas operam na sutileza da imagem do acusado e sua entrada algemada em um centro penitenciário, repetida com um certo tom de séries de TV como CSI. Operam no tratamento desigual justificado por repetidas referências à neutralidade política do processo.
Mas o caso de Daniel Jadue mostra uma mudança estética que se refere a uma mutação maior do processo judicial: sua despolitização. Ao deslocar o próprio processo judicial, que se perde na operação midiática, o regime de visibilidade do espaço público judicial é colonizado pelos meios de comunicação de massa que subsumem as formas de racionalidade jurídica à racionalidade instrumental, o que leva a uma despolitização da esfera jurídica ao transformar o processo judicial em um espaço de consumo.
Não existe um Tribunal. Existe um shopping, como o que foi construído por Horst Paulmann.
Impõe-se outro regime de visibilidade do processo judicial. O escândalo e a luz voltam a se distribuir de maneira diferente. Nem aos debates, nem à sentença, nem à execução da pena. A prisão preventiva cede sua institucionalidade a uma natureza midiática performativa que antecipa a culpabilidade antes da condenação.
Publicado originalmente no Diário e Rádio Universidade do Chile
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