Por: Stefanie Marsh
Fonte: Jornal The Observer, Londres
Em agosto de 2015, Gabrielle Deydier foi a uma entrevista de emprego e passou com distinção. Concorrera ao cargo de professora assistente numa escola para pessoas com necessidades especiais, em Paris, e o grupo de entrevistadores, incluindo o diretor, ficou tão bem impressionado que confessou o medo de a perder, caso aparecesse um emprego mais bem pago.
Só houve um instante desconfortável. No final da entrevista, quando Gabrielle se dirigia para a porta, o diretor preveniu-a: “A professora com quem irá trabalhar, às vezes, e’ muito difícil”. Gabrielle quase nem prestou atenção, porque estava entusiasmadíssima. Não demorou a perceber que “difícil” era dizer pouco.
“Gabrielle Deydier é a senhora? Não trabalho com gente gorda”, começou por dizer a professora em questão. (Gabrielle tentou sorrir, mas a professora “difícil” não ria. “Não e’ uma piada”, sublinhou.
Gabrielle, hoje com 38 anos, tem duas licenciaturas, é simpática e comunicativa (mede 1,53 m), e pesa 150 kg. Também tem o duplo azar de ser francesa e viver na França, porque isso significa que a sua aparência física conta para tudo, incluindo as suas possibilidades de encontrar emprego.
Na França, diz ela (e a sua experiência o prova), ser gordo é considerado uma doença grotesca auto-infligida. Perto de 80% das francesas fazem dietas regulares. No Sul do país, há uma verdadeira indústria ativa de cirurgias gástricas (50 mil operações ao ano). Há também uma onda desenfreada de veganismo (dieta que exclui todos os produtos de origem animal) – uma maneira de as pessoas esconderem os seus distúrbios alimentares.
“As mulheres francesas gabam-se de ser as mais femininas da Europa”, afirma Gabrielle. “Existe a ideia de que as mulheres têm de ser perfeitas em tudo.” Será, então, uma surpresa que a publicação do livro de Gabrielle, On ne nait pas grosse, (“Não se nasce gorda”), em junho, tenha atraído um enorme interesse, gerando admiração e pânico moral?
Para Gabrielle, os últimos 12 meses têm sido como o despertar de um pesadelo que durou duas décadas. Durante o nosso encontro, não conteve as lágrimas, mas são lágrimas de alegria e de fé. Subitamente, a mulher a quem durante toda a vida adulta disseram que não estava apta para trabalhar, é elogiada como heroína intelectual. A sua história apareceu nos diários Le Monde e Le Figaro, na revista Le Point Tem sido também convidada de alguns dos mais importantes programas televisivos franceses.
Na véspera de nos encontrarmos, uma vereadora da equipe de Anne Hidalgo, a presidente da Câmara de Paris, telefonou a Gabrielle para lhe perguntar se estava interessada em organizar, na capital francesa, o primeiro Dia Contra a Gordofobia (uma das formas de body-shaming, isto é, envergonhar alguém pelo seu aspeto físico, geralmente excesso de peso). Gabrielle também recebeu convites para escrever o argumento de um filme e um romance. A edição italiana da Vanity Fair dedicou-lhe um artigo e um editor italiano comprou os direitos do seu livro, não adquiridos ainda para inglês.
Aceitar a própria imagem
O que significa ser gordo em França está, pela primeira vez, em debate no pais. “Decidi escrever este livro porque não queria continuar a pedir desculpa por existir”, explicou Gabrielle. “Sim, a obesidade duplicou nos últimos dez anos (afeta 15% dos adultos franceses, segundo a OCDE), e isso é demasiado, mas não significa que devamos insultar ou discriminar os obesos, dizendo-lhes que não podem trabalhar.”
Gabrielle, que só há seis meses conseguiu olhar para a sua fotografia, preparou-se para o momento presente. “Vai aparecer na televisão e será duro’, avisou o meu editor. Por isso, com a ajuda de um amigo, fui fotografada numa piscina, para que aceitasse a minha imagem em roupa de banho. (Nas praias da França, algumas pessoas, enojadas, costumavam dizer-lhe: ‘Cubra-se por favor’). Isto fazia sentido, porque eu tinha um objetivo.”
Combinamos encontrar-nos à entrada do restaurante de uma pousada da juventude em Paris, onde Gabrielle vive desde que, com a justificação de que lhe faltava empenho por não conseguir emagrecer, perdeu o emprego de professora (e o seu salário).
É impressionante que uma mulher com a idade dela, inteligente e agora famosa, tenha de viver num alojamento temporário por não conseguir arrendar um quarto num apartamento em Paris. Sentada numa cadeira sem braços, a sua figura atarracada sugere um peso fora do comum.
Na semana anterior, recebeu um e-mail: “Cara Gabrielle, depois da universidade fui trabalhar para a Dior onde desempenho agora um cargo de chefia. Durante toda a minha vida detestei pessoas como a senhora. A minha mãe sempre foi gorda. Mas agora está no hospital, morrendo. Ofereceu-me o seu livro, e compreendo, finalmente, o quanto deve ter sofrido. Obrigada!” Gabrielle reage sem grande entusiasmo. “Acho uma loucura que as pessoas precisem de um livro como o meu para aceitar os que têm excesso de peso. Lamento muito quando recebo mensagens como esta.”
Há muitos outros episódios bizarros na sua história de vida. Mas voltemos ao seu emprego de professora, e como acabou. A discriminação com base na aparência física é proibida na França, mas os patrões ignoram a lei. Depois da primeira abordagem, a professora “difícil” apresentou Gabrielle a uma turma de seis crianças autistas deste modo: “Aqui está o sétimo deficiente da sala”. Também acusou Gabrielle de transpirar demasiado, e o diretor tomou partido: “Se ela tem um problema consigo, então, eu também tenho”.
“Disse-me que, para as crianças, era injusto um duplo estigma – serem portadoras de deficiência e alvo de bullying, por terem uma professora gorda. ” Gabrielle foi aconselhada a “refletir” sobre o seu futuro.
“Vamos dar- lhe 30 dias para provar que está motivada.” Motivada? “Motivada a perder peso. Para mostrar que está determinada a manter este emprego.”
O medo de recorrer à justiça
“As crianças nunca foram o motivo”, realça Gabrielle. “Elas eram maravilhosas. Mas, para mim, era duro e complicado lidar com esta situação.” Constataram que tinha sido vista “com dificuldade em respirar, ao subir as escadas para o terceiro andar.”
Por que não processou judicialmente a escola? “Tive medo que não acreditassem em mim”, justifica. Era um cenário provável. Já tinha enfrentado situações semelhantes. Um ginecologista que resmungou: “Não consigo ver nada aqui com tanta gordura”. Um colega negou tê-la assediado sexualmente, alegando que a mulher dele tinha melhor aspeto. “Por que haveria de violar uma gorda?” Ainda que compreensiva, a polícia avisou-a: “A senhora tem o direito de apresentar queixa, mas não recomendamos, porque nenhum tribunal lhe dará razão”.
Estranhamente, nada parecido lhe acontecera na Universidade de Montpellier, onde se formou. “Fui muito feliz”, recorda. “Tinha muitos amigos. Havia pessoas que troçavam de mim, mas sem maldade. Não era bem discriminação. Eram simplesmente idiotas, não era o sistema. O problema foi quando saí à procura de emprego.”
Ficar obeso pode acontecer a qualquer um, e foi o que aconteceu a Gabrielle, aos 16 anos. Na adolescência, tinha uma aparência musculosa e desportiva, com um peso ligeiramente acima do recomendado – era roliça. A mãe decidiu tomar medidas drásticas quando, depois de uma ida às compras, Gabrielle chegou em casa com calças de tamanho 42 em vez do habitual 40. “Ficou furiosa: ‘Você gastou dinheiro apenas porque engordou’.
Mas mesmo nessa altura o meu peso não era um grande problema. “Tudo mudou quando consultou um médico. Para o médico, era gravíssimo o aumento de peso de Gabrielle, que começou um tratamento hormonal. “A pele ressentiu-se e começaram a crescer pelos em todo o corpo. E engordei ainda mais: 30 quilos em apenas três meses.” Novas terapias com hormônios foram receitadas, em conjunto com uma dieta alimentar rigorosa, de carne e vegetais cozidos. “Acabei comendo coisas que nunca antes tinha comido, a esconder comida, a roubar dinheiro dos meus pais para comprar comida. A cometer todo tipo de disparates.”
Nessa altura Gabrielle já pesava 120 quilos. “Só queria morrer. Todos os dias. Pensava em mim como alguém monstruosamente deformado. Os pais, que sempre foram obcecados com a magreza e sentiam vergonha por a filha não saber se controlar, também estavam tristes. “Foi um tempo muito, muito penoso.” Gabrielle foi reprovada duas vezes nos exames de admissão ao curso superior. Finalmente conseguiu entrar para a universidade, e isso para ela representou a liberdade.
Como foi depois de ter concluído os estudos? Gabrielle ergue-se na cadeira. “Via todos os meus amigos ganharem experiência laboral e eu não. Não percebia por quê. Não havia uma razão lógica. A mim, só me ofereciam empregos administrativos ou mal pagos. Fazia trabalho de fábrica.” Um dia, durante uma entrevista de emprego, o responsável pelos recursos humanos decidiu ser sincero: “A senhora não é compatível com a imagem que queremos dar da nossa empresa.” Eu retruquei: “Bem, mas não sou estúpida”. E ele comentou: “Toda a gente sabe que o QI é inversamente proporcional ao peso do corpo”.
Gabrielle percebeu então de que havia algo especificamente francês na sua experiência. “Na Espanha (onde ela viveu um ano no âmbito do seu curso), não havia qualquer entrave. Se alguém comentava o meu aspeto, era para me elogiar. Na França, minutos depois de iniciar uma conversa, imediatamente me perguntam: Você é gorda por que? É uma escolha pessoal? É uma doença? Na Espanha, nem sequer era coisa que se discutisse.”
A coragem depois do álcool
A visita ao médico quando Gabrielle tinha 17 anos revela-se o oposto, 20 anos depois. Pela segunda vez o seu mundo foi virado de pernas para o ar, desta vez de um pesadelo para um sonho acordado.
“A minha depressão era grave. Há um ano não falava com a família. Pensei que me tornaria uma mulher sem-teto. Engordei mais 30 quilos. Estava afundando, assustada. Pensei em dar um tiro na cabeça, ou fugir para um lugar longínquo, mas não sabia para onde. Num desses dias, uns amigos forçaram-me a ir ao lançamento de um livro. Não queria ir. Embebedei-me e acabei falando com uns escritores sobre um projeto de investigação de um deles, sob disfarce, num matadouro. Perguntei-lhes: Sabem o que é a gordofobia? Não faziam a mínima ideia. Descrevi o que se estava acontecendo comigo. Encorajaram -me a passar tudo ao papel, a enviar-lhes rapidamente um email.
Se Gabrielle não tivesse ainda álcool no sangue talvez lhe tivesse faltado a coragem de, na manhã seguinte, escrever seis páginas. Trêmula, pressionou a tecla “Enviar”. No mesmo dia, um editor telefonou-lhe. Quinze dias depois, assinava o contrato para publicar o seu livro. Ergue-se agora na cadeira: “Escrever este livro salvou-me a vida”.
O livro nos diz muito sobre a França e a cultura francesa, devido às reações que provocou. Especialmente significativas são as cartas de leitores que Gabrielle recebe diariamente (quase nenhuma vindas de pessoas com excesso de peso). “Uma mulher contou-me que é bulímica há 20 anos porque receia engordar. Tem medo de perder o marido e o emprego. (A bulimia é um transtorno alimentar que leva as pessoas a exagerar na ingestão de alimentos para depois provocar o vômito ou ficar longos períodos sem comer). Um homem comentou: ‘O seu livro fez-me compreender como fui um estúpido. Trabalhei durante cinco anos com jovens. Se eles eram gordos, eu os humilhava.’ Pediu-me que o perdoasse, como se eu fosse um padre no Confessionário.” Não era essa a intenção da autora, esclarece ela.
As cartas confirmam que chegou a vez de a própria França se sentir como Gabrielle se sentia: envergonhada, fazendo perguntas sobre si própria. Tudo por causa de um livro. A história dela é fascinante, heróica e continuará com certeza. Gabrielle Deydier: Este é o seu ano.