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    João Goulart, absolvido pela história

    Deposto, exilado, perseguido, caluniado, impedido de voltar ao país que tanto amou e ao qual serviu com honradez e dignidade, João Goulart foi absolvido pela história. E isso é o que importa

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    Quase meio século depois de sua deposição por um golpe militar que infelicitou o Brasil por mais de duas décadas, o presidente João Goulart é alvo de justo e merecido processo de revisão histórica. Tanto o seu governo quanto sua figura de homem público, ambos tão atacados e caluniados, começam a ser mais estudados e melhor compreendidos pelos brasileiros, submetidos a processo de desinformação e manipulação de fastos históricos durante longo tempo tanto pela mídia conservadora quanto pelos adversários políticos e ideológicos do saudoso líder trabalhista.

    Nada se poupou ao longo dos anos de ditadura para enxovalhar a honra e denegrir a imagem de Jango. Fazendeiro rico, foi apontado como chefe de um governo com tendências marxistas, ou, simplesmente, “comunista”. Acusavam-no de pretender a instalação de uma absurda e impossível “República sindicalista”, mas jamais se deram ao trabalho de explicar o que seria isso. Pintaram-no como um desastre administrativo, quando, na verdade, o seu governo tem um grande acervo de realizações profícuas em benefício do Brasil e dos brasileiros.

    Jango foi um dos políticos mais consequentes e responsáveis de nossa história. Eleito com extraordinária votação direta para a vice-presidência, após a renúncia de Jânio Quadros aceitou o regime parlamentarista, diminuindo seu poder e atribuições em nome da pacificação nacional. Durante sua gestão, não perseguiu adversários políticos, não discriminou Estados governados pela feroz oposição, tendo – inclusive – vários de seus ministros recrutados nas fileiras dos partidos que lhe davam combate incessante no Congresso Nacional.

    No relativamente breve mandato de João Goulart, alguns dos nossos melhores homens públicos integraram o seu governo, auxiliando-o em importantes realizações em benefício do país. Santiago Dantas, Tancredo Neves, Armando Monteiro Filho, Waldir Pires, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Celso Furtado, Josué de Castro, Carvalho Pinto, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Roberto Campos, Walther Moreira Salles, Almino Afonso, Antônio Balbino, Osvaldo Lima Filho, Renato Archer, Alfredo Nasser, Eliezer Batista, Virgilio Távora, José Ermírio de Moraes, João Mangabeira, Miguel Calmon, Paulo de Tarso, Wilson Fadul, Amaury Silva, Araújo Castro, Afonso Arinos, Expedito Machado e Gabriel Passos, dentre outros de igual valor, foram ministros, embaixadores ou auxiliares diretos do presidente Jango. Foi a primeira vez na história do Brasil que se montou uma equipe governamental de altíssima qualidade, autêntica constelação de brasileiros brilhantes.

    A SUDENE, a lei de telecomunicações, a Embratel, a lei de remessa de lucros, o “Plano Trienal” (importante programa idealizado e desenvolvido por Santiago Dantas e Celso Furtado, que incluía uma série de reformas institucionais que enfrentavam os graves problemas estruturais de então), os primeiros passos na solução da questão agrária, a encampação de refinarias de petróleo nas mãos de grupos econômicos nacionais e estrangeiros, a modernização e fortalecimento da Petrobrás e uma política externa independente e alinhada com os países em desenvolvimento, são parte do extenso legado de João Goulart e seu profícuo período de governo.

    Jango teve a coragem cívica de enfrentar a dura realidade de ser o presidente rico de um país pobre, lutando pela implantação das reformas de base. Elas, que fundamentalmente provocaram a reação extremada do conservadorismo, ainda hoje, 50 anos depois, se fazem necessárias e assumem contornos de urgência. São a Reforma Agrária, a Reforma Fiscal, a Reforma Urbana, a Reforma Educacional, a Reforma Eleitoral e a Reforma Financeira. Eram medidas inadiáveis, entretanto, foram rechaçadas no Congresso Nacional, combatidas pela grande imprensa, boicotadas por organismos como o IPES e o IBAD, financiados pelos piores interesses nacionais e estrangeiros, que apostavam na desestabilização do governo de Jango e no fim do regime democrático em nosso país.

    Se Jango governou reafirmando seu notório compromisso com as classes trabalhadores – aquele mesmo que o fez, como Ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, aumentar em 100% o salário mínimo – ele também foi combatido do primeiro ao último dia de seu governo com imensa fúria numa guerra sem quartel. Mas foi, justamente, dos quartéis que partiu a iniciativa de rasgar a Constituição, pisotear as garantias individuais, cassar mandatos e suspender direitos políticos, revogar o estado de direito democrático, conspurcando o papel das Forças Armadas e estabelecendo o mais longo e tenebroso período de exceção de nossa história.

    No pior de seus momento, Jango agiu com patriotismo e dignidade. Podendo resistir, contando com a lealdade do III Exército, sediado em Porto Alegre, recusou qualquer possibilidade de manutenção do poder à custa do derramamento de sangue de seu povo. Tendo recebido o oferecimento do general Amaury Kruel, seu compadre e comandante do poderosíssimo II Exército, sediado em São Paulo, de ser defendido, e provavelmente salvando seu governo, à custa de dissolver a UNE, a CGT e fechar os sindicatos de trabalhadores, João Goulart preferiu cair com dignidade e honradez.

    Primeiro e único de nossos presidentes a morrer no exílio, impedido de voltar ao país que tanto amou, Jango foi reabilitado pela história. No décimo aniversário de sua morte, em 1976, o professor Moniz Bandeira lançou livro da maior importância, “O governo João Goulart”, relembrando ao Brasil e mostrando às novas gerações sua expressiva obra política e administrativa. Uma década depois, o talentoso cineasta Silvio Tendler emociona o Brasil com “Jango”, documentário de enorme sucesso onde relata sua trajetória. E agora, já em sua terceira edição, a competentíssima e isenta biografia de João Goulart escrita pelo historiador Jorge Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense, resgata a figura do grande brasileiro.

    Histórica é a figura de João Belchior Marques Goulart, grande fazendeiro que tentou fazer a reforma agrária; Ministro do Trabalho que caiu por reajustar corretamente o salário dos trabalhadores; vice-presidente eleito por voto direto que, para assumir a investidura que lhe cabia constitucionalmente, abriu mão do presidencialismo e reduziu seus poderes; presidente que enfrentou nossos mais agudos desafios e pensou generosamente um país mais justo e democrático e, por isso, caiu e foi exilado.

    Deposto, exilado, perseguido, caluniado, impedido de voltar ao país que tanto amou e ao qual serviu com honradez e dignidade, João Goulart foi absolvido pela história. E isso é o que importa.

    Delúbio Soares é professor

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