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    A marcha das passeatas em Curitiba

    Repentinamente, o gás ardeu nossas vias respiratórias. Um pouco depois, vimos de dentro do carro uma bomba voando e atingindo um manifestante, que caiu desacordado

    Daniclei Alves avatar
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    Repentinamente, o gás ardeu nossas vias respiratórias. Um pouco depois, vimos de dentro do carro uma bomba voando e atingindo um manifestante, que caiu desacordado.

    Um pouco antes, depois que o tapume foi derrubado, mais de vinte bombas foram lançadas em direção das pessoas. Estava teorizando com um amigo sobre o "Carnaval das Alas de Reivindicação" que se tornou o protesto pelo passe-livre quando, de tanto conversar, percebemos que estávamos na linha de frente. Corremos, tossindo e ardendo. Pouco depois, outro amigo apareceu de carro - em buscas de fotos que registrassem a violência. Começamos a dar voltas ao redor do Palácio Iguaçu quando vimos o "fogo de artifício lacrimogênio" projetado contra um rapaz, a queda, a fumaça, antes que fôssemos ajudar, outras duas pessoas o levantaram e arrastaram para longe dali.

    Antes ainda, na passeata, o pluralismo de demandas reprimidas deu o tom de Marcha das Passeatas da segunda-feira. Não me assustei com o nacionalismo ingênuo professado por aqueles que nunca antes na história desse país saíram de casa para reivindicar algo - não é hora para se assustar e sim para agir. Dava pra perceber de longe os neófitos, na falta de palavras de ordem, o pedaço do Hino Nacional cantado em jogos. Fiquei bastante desconfiado de uma "modelete" que portava um cartaz anti-PT ao estilo Reinaldo Azevedo, parecia uma promoter. Isso não importa tanto, creio que os movimentos sociais sabem a importância de reivindicar pautas em comum e não deixar a coisa descambar para uma direita que sequer sabe - ou finge não saber - quais as responsabilidades do Governo Federal, Estadual e Municipal e ainda, o que difere Executivo de Legislativo e quais as atribuições do Judiciário. A velha mídia, raposa astuta que é, está tentando se apropriar das manifestações para tentar fomentar um golpe - sonho antigo e sempre presente da oligarquia - ou ao menos enfraquecer o Governo de centro-quase-esquerda do PT. Ouvi de um indivíduo que a Dilma havia mandado bater e prender as pessoas em São Paulo. Não custa recordar: o chefe máximo das polícias militares é o Governador do Estado, no caso, Alckmin, aquele chuchu que perdeu para o Lula em 2006.

    Desinformação à parte, o que se pôde extrair como tônica comum do protesto foi o descontentamento e o convite às pessoas que estavam em casa. Para ser gentil, cito ainda a desconfiança em relação à grande mídia expressa pelo vulgar coro de "Globo, vai tomar...". Claro, o grito genérico contra a corrupção grassou. Pouco se gritou sobre o passe livre, sobre os pobres pagarem mais imposto e os serviços públicos muitas vezes serem tenebrosos, ou sobre a desmilitarização da polícia, sobre a democratização dos meios de comunicação e criação de mecanismos de democracia direta, pouco se reclamou do congresso tomado por patifes e sequer se mencionou a reforma política e agrária. E dá-lhe Hino Nacional na cabeça. A Copa vai ser a ocasião perfeita para demonstrar nacionalismo parnasiano. Protesto é momento de mostrar aos governantes que nós é que governamos - ainda que, herança antiga, governemos indiretamente. Lembrando a aula de economia: a economia só existe por conta dos agentes econômicos, e o principal agente é o ser humano. Com o governo a tônica é parecida, exceto pelo fato de que você precisa respirar um pouquinho de gás, reunir dezenas de milhares de pessoas e gritar muito. Mas somos os pilares do governo. O Brasil somos nós. E nós estamos um pouco desconectados, certo? A indignação estava presente, mas os alvos não ficaram claros para muitos. Uma indignação sem objeto definido lembra tanto a batida expressão "rebelde sem causa". E o que não faltam são demandas, assim, a pergunta que fica é: como manter esse sentimento de que é possível mudar o país?

    Eu não sei. Acho que ninguém sabe. Mas um bom horizonte é lembrar que direitos são criados e banidos o tempo todo, por exemplo, o casamento já foi crime - considerado uma fraqueza. As formas de relação social são diversas. Portanto, reivindicar sempre é um dever cívico. Rebelar-se contra a injustiça é no mínimo, auto-proteção. A tentativa é de transformar a manifestação que poderia ser perigosa para os economicamente opressores e contra o nosso capitalismo de mentirinha em uma marcha para a família e a pátria. Tudo no intento de manter as coisas como estão - ou quem sabe, facilitar ainda mais os ares coloniais do Brasil. A cobertura espetacularizada da grande imprensa deixa isso claro, a intenção de transformar as manifestações em um carnaval e que a festa da parcela criminosa da elite continue como está. Não por acaso, o sentimento de indignação está sendo direcionado contra os partidos, pior, contra os partidos que vão para a rua reivindicar. Pagamos impostos municipais, estaduais, federais, impostos sob o consumo. Mas cá entre nós, quem realmente ganha dinheiro no Brasil prefere pagar o contador para burlar o fisco do que pagar imposto - que ainda por cima, é mal investido, dada a falta de participação social. Sobra para o resto. Preocupados com a possibilidade do Brasil funcionar como outros países mais democráticos - com impostos sobre grandes fortunas e regulação de monopólios - os blocos conservadores utilizam-se da ignorância alheia para mudar o foco justamente para os partidos que querem que os mais ricos cumpram sua parte democrática, conforme ocorre ou ocorreu em tempos de bem estar social nos mais tradicionais capitalismos.

    A onda fascistoide que consegue mobilizar uma sociedade proto-fascista é natural. A questão é: como manter a reivindicação e como não esvaziar de sentido e de mudança os acontecimentos? A nossa democracia é frágil justamente pela falta de participação no processo político, pela desinformação do funcionamento institucional. Lembremos que o afastamento da política se deu à custa do sangue de milhares e milhares durante séculos. Causa muita estranheza ver tanta gente canalizando suas energias contra a fachada de um prédio em ruínas. Causa muita estranheza um movimento democrático e plural proibir a manifestação por parte de quem sempre esteve nas ruas. A política ganha ares mistificados e a mistificação ganha ares de verdade. O pragmatismo e o "emcimadomurismo" alimenta a visão midiática que tenta afastar o povo da política. Esse processo alimenta os grupos que se aproveitam da mentalidade conservadora e auto-destrutiva da nossa população.

    O que sabemos é que se faz necessário mais democracia, e não menos. Menos hino e mais reivindicação. Não se pode deixar tudo virar torcida (des)organizada. Enquanto os parlamentares retiram direitos e retrocedem em nossa fraca democracia, protesta-se contra tudo. E isso é protestar contra nada. É preciso haver menos slogans clichês vazios de mudança. A multidão disforme se arrastando pelas ruas tem como alvos o que é público, e não o que é privado. A exigência de um estado laico, reforma política, financiamento público de campanha, liberdade de culto ou respeito à diversidade foram tímidas demais. Os desagravos contra o Feliciano e todo obscurantismo que ele representa e o apoio aos indígenas e camponeses massacrados por criminosos ricos foram tímidos. Não é hora de timidez, é ora de diálogo didático, de união. Só poderemos construir mecanismos de democracia direta e progressista mostrando às pessoas que, para além de um nacionalismo vazio, vivemos juntos e precisamos viver em comunidade. As pessoas precisam ter acesso às pautas que podem promover mudanças reais e democráticas. Isso se faz em casa, nas ruas, no trabalho, no bar, de maneira divertida e sincera. Utilizando o senso de justiça das pessoas para mostrar quais mecanismos são inadequados à convivência justa e quais oferecem vantagem para uma minoria. Bandeiras do Brasil, faixinhas verde e amarelas nas bochechas, palavras de ordem nacionalistas e hino nacional não são o fim do mundo. Só serão se deixarmos. É hora de união e pautas em comum. Se "isso é só o começo", que o desenrolar seja pautado pelos movimentos sociais. E quando a onda esfriar, jamais esmorecer do que é correto e justo.

    Espero que esse acordar signifique que cada um pesquise - pode ser na wikipedia mesmo - quais os deveres e atribuições de cada poder no Brasil. Qual a história e os feitos dos diferentes partidos políticos, das diferentes movimentações de massa pelo mundo. E que não descanse enquanto não houverem mudanças dignas e democráticas. Se não, vira um abstrato movimento "cansei", esvaziado de sentido, e muito pior, esvaziado de mudança. Agora, com a violência grotesca da polícia sendo mostrada entre novelas, muita gente acordou - já a periferia nunca pôde dormir.

    Para concluir, sobre a violência que houve no final da manifestação...

    No dia seguinte, terça-feira, perto do meio-dia, eu saí para fumar um cigarro na pracinha perto de casa, antes do almoço. Gosto daquele lugar. Um rapaz sentou ao meu lado, pedreiro de um dos vários prédios que estão construindo na região. Sentou-se outro e conversaram. Eu os ouvi. O moço tinha feito aniversário na segunda-feira, o dia da revolução da salada, ele trabalhou na obra e foi para casa, ganhou uma camiseta da mulher e quando estava indo buscar sua mãe, na esquina de casa, seu primo estava fumando um cigarro de maconha. Apareceu a Rone. Os policiais o humilharam, o deixaram apenas de cuecas no meio da rua. O rapaz foi espancado, xingado, teve o celular quebrado e até os cigarros convencionais foram quebrados e jogados no chão. Claro, contando isso no dia seguinte, ele só lamentava e encarava com resiliência toda a desumanidade pela qual estamos pagando caro.

    A violência que não houve no protesto lotado de mimados, acontece no cotidiano, e é por isso que eu protesto.

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