A saúde pós-pandemia deve romper com o modelo neoliberal, diz ex-ministra do Paraguai
Esperanza Martínez, ex-ministra da Saúde do Paraguai, também defendeu, em curso promovido pela Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag), que os países latino-americanos voltem a colaborar coletivamente nas questões sanitárias
O texto a seguir é uma adaptação da 11ª aula do Curso internacional “Estado, política e democracia na América Latina”, da Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag), ministrada por Esperanza Martínez, ex-ministra da Saúde do Paraguai.
A saúde pública da América Latina na pós-pandemia
O debate se a saúde é um direito humano fundamental e, portanto, deve ser garantida para atingir toda a população como bem público e universal, ou se, por outro lado, é um bem de mercado, que depende de recursos e a capacidade de pagamento de indivíduos e famílias, não tem muito tempo. Essa disputa se estabeleceu nos últimos 70 anos, e confronta a concepção derivada da Declaração Universal dos Direitos Humanos com o fortalecimento e implementação, nas últimas décadas, de políticas que conseguiram instalar a perspectiva econômica que transformou os sistemas de saúde de muitos países latino-americanos em sistemas privados que segmentam a sociedade entre quem pode pagar por cuidados de elite, quem paga pouco e quem não paga nada.
Construção histórica do conceito de saúde
A saúde não pode ser reduzida apenas a doenças ou elementos biológicos. Possui profundas raízes históricas, estruturais, políticas, econômicas, sociais e culturais que constituem os chamados “determinantes da saúde”.
Por exemplo, ser homem, mulher, indígena, migrante, morar na cidade ou no campo são determinantes que impactam se a população tem mais ou menos oportunidades de acesso a boas condições de saúde. Por sua vez, que as pessoas tenham acesso a água potável, eletricidade, tecnologia, emprego, moradia, alimentação saudável ou estradas que permitam acesso a serviços de saúde também faz parte de sua qualidade de vida.
Desta forma, utilizamos o conceito de qualidade de vida no sentido da possibilidade de desenvolvimento pessoal numa plenitude que permita viver em condições humanas dignas, aceitáveis e que permitam, sobretudo, o potencial de desenvolvimento como pessoa a partir do que cada um de nós considera um projeto pessoal e um projeto comunitário.
O conceito de saúde teve um caráter histórico hegemônico que foi sendo construído de certa forma. Eu me defino como feminista e sempre compartilho um exemplo dentro da história da medicina que nos mostra claramente esse valor e como ele sempre foi administrado pelas elites. Com a instalação da Santa Inquisição da Igreja - associada ao Estado na época - iniciou-se a caça às bruxas, composta principalmente por curandeiras que realizavam práticas de saúde, ajudavam no parto e nas questões ginecológicas, ou realizavam abortos. Durante os quatro séculos da inquisição, essas tradições, transmitidas de geração em geração, receberam uma resposta patriarcal extremamente importante, promovida pela Igreja e pelos Estados, que produziu a perseguição, a morte e o desaparecimento de muitas mulheres. E quais foram os crimes acusados? Eram subversão política, heresia religiosa, imoralidade e, acima de tudo, crimes sexuais. Toda a influência das mulheres teve a ver com a mudança do sentido do pensamento dos homens em relação à sexualidade, elas foram enfeitiçadas e conduzidas e as mulheres foram penalizadas por serem organizadas por "aqueles poderes mágicos" em relação à saúde e ao prazer sexual. Após séculos, essas práticas populares de saúde foram praticamente extintas e iniciou-se o processo de educação nas universidades.
Dou este exemplo porque hoje, no século XXI, ocorrem acontecimentos que mostram que o que aconteceu há muito tempo ainda é a mesma coisa. A influência patriarcal de elites tão poderosas, como a Igreja Católica, continua hoje associada a muitos governos que estão voltando a atitudes autoritárias e ultraconservadoras, o que nos mostra que esse pensamento ainda não foi totalmente superado. Quando falamos em saúde, é sempre importante entender que vai muito além da rede hospitalar. Possui profunda relação com modelos de liderança, hegemônicos, econômicos, políticos e sociais. Portanto, a discussão sobre o direito à saúde é um debate político, filosófico, cultural e, neste momento, especialmente econômico.
O debate da saúde pública na América Latina
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949, iniciou-se o debate sobre o direito à saúde. Em seus primórdios, na América Latina esteve intimamente ligada às políticas de liberdades públicas, mas depois, entre as décadas de 1950 e 1980, a maioria dos países passou por ditaduras militares muito duras e, paralelamente, as políticas desenvolvidas eram criadas pelo Consenso de Washington, dando origem a profundas reformas neoliberais na região. Essas transformações se opunham ao conceito de saúde como direito, outro pensamento quase antagônico que estabelecia que os sistemas de saúde deveriam ser mais "eficientes" porque seriam grandes "elefantes responsáveis pela situação de má qualidade de saúde que a América Latina estava passando". Naquela época, essas mudanças produziram privatizações e políticas de direcionamento. Enquanto alguns diziam que a saúde é um direito universal, outros diziam: “não, os países são pobres e, como são pobres, não é suficiente para todos. Portanto, a coisa econômica e politicamente racional a fazer é focalizar os serviços”.
Reduzir os custos e o investimento público começou a ser mais importante do que a cobertura e os resultados de saúde. Portanto, se olharmos para o relatório do Banco Mundial de 1993 que direcionou as reformas sociais e, acima de tudo, as reformas neoliberais na América Latina, em nenhum lugar o direito à saúde é mencionado. Foi assim que os bancos, os organismos de cooperação internacional e também os governos da região instalaram essas reformas sanitárias, caminhando para modelos que variavam em poucos aspectos: uns tinham um sistema social de financiamento público, outros se baseavam no financiamento pela seguridade social para os trabalhadores formais, e outros eram mais individualistas, usando seguros ou copagamentos que complementavam os serviços públicos. Essa série de modalidades mistas na época foi o auge do debate na América Latina. O conceito de saúde-doença que se instalou a partir dessas reformas deixou claro que o debate sobre saúde nunca pode ser neutro. Este não é um problema biológico, científico ou tecnológico: é um problema profundamente político, social e econômico e, portanto, exigirá reformas e abordagens multidimensionais e transgeracionais, da mesma forma que com a abordagem da pobreza ou da desigualdade.
Enquanto essas políticas neoliberais se desenvolviam na região, coexistia uma narrativa da medicina coletiva que buscava posicionar a saúde como uma disputa na arena política. Um exemplo é o movimento de saúde coletiva, formado por organizações sociais e de mulheres, que levou à criação no Brasil do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir da Constituição de 1988. Esse sistema foi muito inovador porque, em uma região afetada pela pobreza e crescente desigualdade, após anos de políticas neoliberais, permitiu-nos recuperar a ideia de que a saúde é um direito e que tem de se conformar a sistemas universais e equitativos.
Uma segunda linha de reformas em defesa da saúde como direito foram as instaladas pelos governos progressistas da América do Sul, como Bolívia e Equador, que elaboraram novas Constituições que incorporaram não só os direitos individuais, mas também os coletivos e a harmonia da sociedade com o meio ambiente, com a terra e com a produção. Diante de um modelo de acumulação de mercado baseado na competição, a harmonia e a solidariedade também são colocadas como direitos que fazem parte do sistema de proteção à saúde e à proteção social das pessoas. Por sua vez, incorpora-se o direito à proteção da natureza, da terra, da água e do ar, uma questão que hoje é central porque, para além da pandemia, a crise climática que o modelo de produção capitalista desenvolveu mundialmente, destruindo a natureza, acaba por se traduzir também em doença, numa série de precariedades para a vida das pessoas.
Outra política regional que teve um impacto extraordinário na América Latina no enfrentamento ao neoliberalismo foi a Conferência Internacional de Alma Atá sobre Atenção Primária à Saúde em 1978. Este foi o evento político internacional de saúde mais importante daquela década e resultou em uma declaração assinada pela OMS, a Opas, o UNICEF e até, na época, a União Soviética. Sob o lema da Atenção Básica à Saúde, foram colocados diversos temas e conceitos que vão ao encontro das demandas de setores políticos e sociais que defendem o direito à saúde universal. Por exemplo, falaram da abordagem no território, da linguagem e da comunicação social, da participação social, da responsabilidade do Estado, dos aspectos socioeconômicos da saúde e dos determinantes sociais da saúde. Todas essas questões foram polêmicas na época porque, ao mesmo tempo, a sociedade debatia modelos de desenvolvimento.
Mais recentemente, nos últimos 20 ou 30 anos, uma série de demandas e reivindicações relacionadas à questão da saúde oriundas de organizações não governamentais, populares e de mulheres foram instaladas nas políticas de direitos humanos das Nações Unidas.
Uma delas era a reivindicação do direito de não ser discriminado como portador de doenças no contexto do que era HIV / AIDS ou de acesso a medicamentos que na época eram de alto custo e que se concentravam nos países mais ricos. Isso até obrigou uma discussão sobre patentes como era feito no Brasil, desafiando o setor sob a ideia de que o acesso deveria vir como um direito humano de toda a população. Destes movimentos sociais surgem as lutas pelos direitos sexuais e reprodutivos, pela descriminalização do aborto, sobre violência de gênero, sobre a situação de meninas, meninos, adolescentes ou sobre deficiência. Todas essas lutas paralelas organizadas permitem que a sociedade exija que os sistemas de saúde protejam de forma abrangente toda a diversidade social. Uma das críticas a esses movimentos é que muitas iniciativas tornaram-se lutas setorizadas e quase exclusivas dos problemas que defendem. Como cada um representa suas demandas, eles abandonaram a luta global pelas mudanças econômicas, políticas e sociais que desafiam o modelo de produção e acumulação de riquezas.
Saúde pública, desigualdade e pandemia
Os relatórios mais recentes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) nos mostram que a América Latina é uma região profundamente desigual, com enormes problemas de formalidade no emprego, como resultado das políticas neoliberais. Com a informalidade, todas as políticas de transformação através dos trabalhadores são fragilizadas e isso aumenta ainda mais com a irrupção das tecnologias, o desaparecimento das políticas de proteção do trabalho coletivo através dos sindicatos e a necessidade que surge com o ingresso no empreendedorismo que faz as pessoas acreditarem que são donas do seu trabalho quando, na realidade, se inserem em modelos extremamente precários, tanto de saúde como de qualidade do próprio emprego.
A América Latina tem o grande problema de sistemas de saúde cada vez mais frágeis e vulneráveis. Quero relembrar alguns aspectos epidemiológicos da região porque, de certa forma, nos tornamos “pandêmicocêntricos”.
Parece que hoje as pessoas só morrem e adoecem por causa da Covid quando, na realidade, na América Latina todos os dias morrem pessoas por problemas de saúde ligados à pobreza e ao modelo de desenvolvimento. Ainda temos altos indicadores de mortalidade materna e infantil e grandes problemas de gravidez na adolescência.
Por exemplo, no caso do meu país, o Paraguai, por dia, há 600 meninas entre 10 e 14 anos que têm filhos. Essa é a realidade social e política, com ou sem pandemia.
Todos os problemas que descrevem morbidade, condições sanitárias, condições de saúde e condições de proteção social à saúde ainda estão presentes, precisam de ações cotidianas e requerem reformas mais profundas.
Com a pandemia da Covid-19, instalou-se a ideia de que o modelo de saúde deve apostar em investimentos em sistemas de terapia intensiva, no desenvolvimento de novas tecnologias ou tecnologias digitais para o controle de doenças. É o que está acontecendo nos países mais desenvolvidos com o uso de big data, georreferenciamento ou vigilância digital que permite identificar, por telefone, pessoas que estiveram próximas de outra pessoa infectada ou suspeita.
Começamos a pensar que o desenvolvimento dos sistemas de saúde, sem dúvida, terá que ser tecnológico, de alto custo e voltado para os complexos problemas que a pandemia desencadeou. No entanto, não devemos nos limitar a isso, nem deixar de olhar para o fato de que em nossa região questões muito específicas e antigas, como a segurança do parto, ainda não são uma garantia universal para toda a nossa população.
Nas últimas décadas, a complexidade do problema foi além da abordagem médica, hospitalar e de redes de serviços para chegar a uma abordagem social, comunitária e cultural, a partir da qual muitos dos problemas das comunidades e sociedades são resolvidos e serão resolvidos. No Paraguai, antes que o governo entendesse como se organizar para responder à pandemia, já víamos mulheres nas comunidades trabalhando para apoiar as panelas populares. Foi também a organização social que nos permitiu sustentar a educação no lar, mesmo com o problema que gerou para as mulheres a tripla carga que essa transferência da escola para a casa representou.
A pandemia colocou em xeque os sistemas de saúde mesmo nos países maiores e mais desenvolvidos. Tem mostrado à sociedade que, na realidade, a grande maioria da população está em sistemas de proteção afetados por circunstâncias que não se reduzem a um problema de meses ou de um vírus circulante no mundo, mas são o resultado de um enfoque de políticas sustentadas por décadas em nossos países em que a saúde não teve a importância que tem hoje.
Se a pandemia fosse um surto em uma região, em apenas uma parte do mundo, provavelmente não estaríamos falando hoje como estamos falando. Mas a pandemia atingiu as grandes economias, as elites econômicas, os países mais poderosos e abalou os sistemas que se acreditavam seguros. Ele mostrou que esse debate entre a saúde como direito ou a saúde como mercadoria é impossível de ser sustentado porque, ou todos saímos disso juntos, ou não sai ninguém.
O que temos que fazer hoje e nos próximos anos é, naturalmente, controlar o contágio e a propagação da pandemia. Embora acordos como a COVAX tenham permitido que quase 190 economias do mundo fizessem um pacto de solidariedade para receber um percentual de vacinas e contribuir juntas para isso, também se constatou que existe um setor médico empresarial e tecnológico dono dos grandes serviços que são necessários para a saúde. Por toda parte se promulgam leis que compensam financeiramente as empresas pelos efeitos colaterais de suas vacinas, cedendo a jurisdição das controvérsias em nível internacional, rechaçando nossos próprios Estados como fiadores desse debate político e, sobretudo, rompendo com tradições históricas, como o banco rotativo de vacinas, que há 40 anos compra coletivamente e a preços acessíveis para todos.
Quando falamos sobre os sistemas de saúde do futuro, há muitas incertezas no mundo. A dependência tecnológica, como desenvolver mecanismos coletivos regionais internacionais para lidar com isso, bem como estabelecer políticas estruturais de saúde que contemplem a proteção econômica e social das famílias, serão algumas das questões-chave que serão desenvolvidas em todas as sociedades.
O foco das reformas terá de ser as pessoas e as comunidades. Terá de ser dada uma resposta multicultural e teremos de abordar este problema como uma mensagem que nos permita procurar soluções globais.
Esta é uma oportunidade para movimentos populares, de mulheres e movimentos de luta pela saúde assumirem essas bandeiras sociais, políticas e culturais e defenderem a saúde como um direito humano universal, apontando para as transformações de nossos sistemas constitucionais e de saúde.
O debate que começou há décadas e que confrontou a abordagem dos direitos com as políticas neoliberais, que hoje estão expostas pela pandemia com todas as suas dimensões e contradições, se torna público e se instala no debate social.
A saúde não pode ser a mesma após Covid-19. Obviamente, em todos os países está se desenvolvendo um processo coletivo que será global e dependerá muito dos movimentos sociais e será orientado para transformações que favoreçam a todos.
É o momento de um grande debate regional que olhe para trás e reconheça os pontos fortes e fracos que caracterizaram a presença de governos progressistas para resgatar os processos de integração que estavam sendo realizados na América Latina. Temos que rediscutir as compras coletivas, os mecanismos de desenvolvimento tecnológico da região, temos que nos olhar novamente como uma instância coletiva para reinstalar um conceito regional de solidariedade e de defesa política que permita a cada um avançar nessas mudanças.
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