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    Equador vai às urnas: proposta do governo é mão dura nas ruas e sinal verde para as transnacionais

    Convulsionado internamente pelo aumento da violência e enfraquecido internacionalmente pela crise desencadeada contra o México, o Equador convoca às urnas para o próximo domingo

    Militares patrulham as ruas no Equador (Foto: Prensa Latina )

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    Por Sergio Ferrari - Mais de 13 milhões de eleitores terão a oportunidade de se pronunciar no terceiro domingo de abril, 21, sobre onze pontos, seis dos quais correspondem a uma Consulta Popular, e cinco a um Referendo. Este último pode levar a mudanças ou emendas na Constituição desse país sul-americano.

    As questões que deverão ser decididas dizem respeito, essencialmente, à segurança, como a participação das Forças Armadas em funções de Polícia Nacional; nova legislação sobre armas; duração das penas (especialmente relacionadas a processos judiciais por terrorismo ou tráfico de drogas) e expropriação pelo Estado de bens de origem ilícita, entre outros. Um ponto propõe a flexibilização do Código do Trabalho, introduzindo o valor contratual do "trabalho por hora". E outro, entremeado nesse emaranhado de postulados diversos, mas de particular importância, refere-se ao sistema de solução de conflitos com empresas estrangeiras: "Você concorda que o Estado equatoriano deve reconhecer a arbitragem internacional como um método para resolver disputas em questões de investimentos, contratuais ou comerciais?". Essa não é uma questão trivial em uma nação na mira de multinacionais, principalmente de empresas petroleiras e de recursos naturais.

    A arbitragem internacional, mecanismo concebido por e para investidores estrangeiros, proporciona-lhes uma via judicial internacional, paralela e privilegiada, sem a obrigação de passar pela justiça nacional. Um dos pilares do atual sistema de resolução de controvérsias entre investidores e Estado é um mecanismo essencial de muitos dos Tratados Bilaterais de Investimento (TBIs) e dos Tratados de Livre Comércio (TLC) existentes.

    A soberania em jogo

    Se, no próximo 21 de abril, o eleitorado equatoriano aceitar esse novo postulado sobre o papel da arbitragem internacional, as consequências poderão ser desastrosas para a economia nacional, pois o artigo 422 da Constituição de 2008 será modificado. Esse artigo estabelece que "Não poderão ser celebrados tratados ou instrumentos internacionais em que o Estado equatoriano ceda jurisdição soberana a instâncias da arbitragem internacional, em disputas contratuais ou comerciais, entre o Estado e pessoas físicas ou jurídicas privadas".

    A pesquisadora e cientista política alemã Bettina Müller, associada ao Instituto Transnacional (TNI, por sua sigla em inglês), com sede em Amsterdã e com larga experiência na América Latina, explica que a Constituição equatoriana proíbe a cessão de soberania a instâncias internacionais de arbitragem em caso de disputas com entidades privadas estrangeiras (investidores ou empresas transnacionais), entre eles, o Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos (CIRCI - ICSID), órgão dependente do Banco Mundial, que é o centro de arbitragem mais utilizado em todo o mundo (https://icsid.worldbank.org/es/acerca).Para além dos debates jurídicos, lembra Müller, a redação "dessa norma tem sido forte o suficiente para constituir um travamento para a assinatura de novos tratados internacionais que incorporem o mecanismo da arbitragem internacional". Na última década, grandes grupos econômicos internacionais e equatorianos atacaram sistematicamente o Artigo 422. Os governos ultraneoliberais do Equador fizeram o possível para derrubá-lo, argumentando que ele desencoraja o investimento estrangeiro devido à "insegurança jurídica" que propugna. Apesar da rejeição da Assembleia Nacional e das críticas abertas de grande parte da sociedade civil, em setembro de 2021, o Equador voltou a ratificar a Convenção do CIRCI (https://www.iisd.org/itn/es/2021/10/07/ecuador-rejoins-the-icsid-convention/).

    Segundo Müller e tendo em vista a votação de 21 de abril, "é fundamental desmontar falsos mitos e promessas não cumpridas sobre a chegada do investimento estrangeiro e a segurança jurídica. Até agora, o Equador tem sido um exemplo internacional de resistência a esse sistema de arbitragem". Para ela, esse sistema tem um enorme impacto negativo nos cofres públicos. Prova disso são as ações arbitrais que já custaram ao Equador cerca de 3 bilhões de dólares.

    Durante a última década e meia, argumenta Müller, esse país sul-americano foi um "exemplo global de como é possível frear juridicamente os privilégios de investidores estrangeiros e de empresas transnacionais a partir da própria Constituição Nacional". E defende ainda que é possível "realizar uma auditoria cidadã rigorosa sobre os impactos do sistema de proteção do investimento e da arbitragem". Para a pesquisadora do TNI, a elaboração de dados científicos nessas áreas é essencial para a promoção de políticas públicas que freiem as ações das corporações transnacionais para que não violem os direitos humanos e o meio ambiente.

    Na boca do lobo

    O Equador, com vinte e nove processos contra si, é o quinto país da América Latina mais processado por investidores estrangeiros. Essas demandas são geradas, principalmente, no setor de empresas extrativistas de recursos naturais, além de empresas de gás e energia elétrica.

    Vinte e uma dessas demandas já têm uma resolução do Tribunal designado para arbitrar. Em catorze casos, o Tribunal beneficiou investidores estrangeiros e condenou o país a pagar-lhes mais de US$ 2,906 bilhões. A esse montante devem ser adicionados quase 1,5 bilhões de dólares adicionais em pagamentos de juros, de defesa legal e custos do processo de arbitragem.

    Essas são algumas das conclusões do estudo "Equador. Impactos da Arbitragem Internacional", patrocinado pelo TNI e conduzido pela própria Bettina Müller em conjunto com sua colega, a argentina Luciana Ghiotto. Publicado recentemente, esse estudo contou com o apoio de oito organizações de direitos humanos e ambientalistas do Equador: Acción Ecológica, União das Pessoas Afetadas pelas Operações Petrolíferas da Texaco (UDAPT/Amigos da Terra), Aliança pelos Direitos Humanos, Centro de Documentação "Segundo Montes Mozo, S.J." (CSMM), Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES), FIAN-Equador, Coordenadora Equatoriana de Organizações de Defesa da Natureza e do Meio Ambiente (CEDENMA) e as Organizações Camponesas de Muisne-Esmeraldas (OCAME) (https://isds-americalatina.org/wp-content/uploads/2024/03/Reporte-ISDS_ECUADOR_Marzo2024.pdf).

    O relatório detalhado do TNI e seus homólogos locais também se projeta para o futuro e analisa o eventual custo dos oito processos pendentes (um dos quais é promovido pela multinacional petrolífera estadunidense Chevron, sexta do mundo nessa área). Embora apenas o valor reclamado em três desses oito processos pendentes seja conhecido, o valor exigido pelos investidores é de 9,986 bilhões de dólares. Esse valor equivale à soma dos orçamentos da saúde, educação básica e bacharelatos de todo o país para 2024.

    O relatório destaca que o fato de serem conhecidos apenas os valores pleiteados em três das oito ações judiciais pendentes "mostra o sigilo desse sistema de arbitragem", que não exige a publicação de qualquer informação sobre as demandas, apesar de que os custos causados pelas mesmas fazem a dívida pública explodir.

    Outro aspecto nefasto analisado pelo mesmo relatório é que, paradoxalmente, seis das ações judiciais contra o Estado equatoriano foram registradas após 2017, após a decisão do Equador de denunciar todos os seus tratados bilaterais de investimento, e graças a uma cláusula de caducidade (sunset clause), um mecanismo que faz parte dos Tratados Bilaterais de Investimento, que permite a instauração de processos, retroativamente, em até dez ou mesmo quinze anos após a denúncia de um tratado.

    Até o momento, valendo-se desse mecanismo, investidores da Argentina, Canadá, Chile, China, Suécia, Reino Unido, Estados Unidos, Venezuela, Peru, França, Alemanha, Itália, Suíça, Bolívia, Holanda e Espanha continuam processando o Equador.

    O Relatório do TNI resume as principais deficiências desse sistema de arbitragem internacional: falta de transparência nos procedimentos arbitrais; falta de imparcialidade e independência dos árbitros e custos da arbitragem, que são muito mais onerosos do que um julgamento nos tribunais nacionais. Por outro lado, é um sistema unilateral: o investidor é o único que pode iniciar uma ação judicial; Os Estados só podem se defender. Não menos importante, as vítimas de abusos por parte de empresas transnacionais não têm nenhum mecanismo de acesso à justiça.

    Uma história que se repete?

    Importantes atores da sociedade civil equatoriana pedem um voto "Não" contra o referendo sobre a arbitragem internacional no próximo domingo (21). Entre eles, as oito organizações que acompanharam, apoiaram e participaram da elaboração do relatório do TNI, e que já estão cientes dos efeitos negativos dessa forma de arbitragem sobre os direitos humanos e o meio ambiente.

    Como lembrado no mesmo relatório, em 2017, o governo criou a Comissão de Auditoria Integral sobre Tratados de Investimento e Sistema de Arbitragem do Equador (CAITISA) para analisar se os compromissos do Equador com o investimento estrangeiro estavam cumprindo os objetivos de desenvolvimento do país estabelecidos pela Constituição progressista de 2008 e pelo Plano Nacional para o Bem Viver executado durante boa parte da década, no governo do ex-presidente Rafael Correa (2007-2017).

    Nesse mesmo ano, a CAITISA apresentou suas conclusões, que mostraram os efeitos nocivos do sistema de arbitragem no país andino. Fundamentalmente, o fato do sistema não ter conseguido atingir o objetivo de promover o investimento direto estrangeiro. Significativamente, apesar das promessas de investimento e desenvolvimento não se concretizarem; ainda assim, os custos públicos foram extraordinários, e os investidores saíram na frente em seus processos contra o país. Após o anúncio dos resultados da auditoria, o governo aceitou a recomendação de encerrar os dezesseis Tratados Bilaterais de Investimento então em vigor.

    Em meio a uma acentuada crise institucional, o resultado da votação do próximo domingo, 21, pode ter um impacto notável. E se a proposta de abrir as portas à arbitragem internacional for aprovada – em detrimento da justiça nacional – o impacto pode ser duplo. Um, concreto, jurídico, econômico, que debilitará ainda mais o Estado e o erário público. Outro, ideológico, de narrativa. O Equador terá que renunciar à sua corajosa resistência de quase duas décadas contra os sofisticados mecanismos de dominação internacional, como a arbitragem. E se pode se tornar uma das nações do mundo que aceita abrir mão de seus interesses nacionais em favor de grandes investidores estrangeiros.

    Tradução: Rose Lima

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