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Nova Constituição pode mudar o Chile, mas enfrenta resistências

Texto defendido pelo presidente Gabriel Boric é focado em direitos e garantias sociais para a população

(Foto: Reprodução/Twitter Gabriel Boric)

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Por Rafa Santos, no Conjur – O povo do Chile terá no próximo dia 4 de setembro uma oportunidade de mudar a sua história. Nessa data, será feito um plebiscito sobre o novo texto constitucional do país, que, se aprovado, reformará profundamente o Estado chileno e certamente causará desdobramentos políticos, econômicos e sociais.

"Quando eu saí do Chile, em 15 de fevereiro, a minha impressão era de que o desafio seria a Convenção Constitucional terminar o texto dentro do prazo, mas, para minha surpresa, tudo foi terminado no prazo e o desafio agora é fazer com que essa nova Carta Magna ganhe os corações e as mentes do povo chileno nesse plebiscito", contou a professora do Curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP Ester Gammardella Rizzi. 

Ester acompanhou in loco os trabalhos da Convenção Constitucional chilena e relatou parte de sua experiência em uma série de artigos publicados na ConJur. Para entender o impacto que a nova Constituição pode ter no país, basta recordar que o texto vigente data de 1980 — tendo, portanto, sido formulado durante a ditadura sangrenta capitaneada pelo general Augusto Pinochet (1915-2006) — e é marcado por um viés liberal. 

O célebre ilustrador chileno Guillermo Bastías, conhecido como Guillo, tem publicado uma série de tiras sobre as diferenças entre o texto constitucional vigente e o que será votado. Em uma delas, o artista retrata a Constituição da ditadura em um quadrinho que mostra uma mulher em frente a um carrinho de supermercado com itens como bens de consumo, saúde, educação e Previdência Social. No quadro que representa o novo texto constitucional, direitos sociais são representados em um guarda-chuva multicolorido segurado pelo braço do Estado, protegendo a população. Batizado de "el rechazo" ("a recusa") pela mídia local, o plebiscito tem sido marcado por um debate público polarizado, com direito a fake news, como a de que o aborto passará a ser permitido até o nono mês de gestação.

A Convenção Constitucional foi criada após uma onda de protestos, em 2019, que levou milhares de pessoas às ruas e resultou em 23 mortes. A mobilização popular por melhores condições de vida só chegou ao fim quando o então presidente Sebastián Piñera costurou um acordo que permitiu a realização do plebiscito de 2020 sobre um novo processo constitucional. Na ocasião, 80% dos chilenos votaram por uma nova Constituição.

O trabalho da constituinte chilena resultou em uma proposta de Carta Magna com 388 artigos (clique aqui para ler o texto na íntegra), sem contar as disposições transitórias. O documento foi o primeiro da história do país a ser redigido de forma paritária entre homens e mulheres e, se aprovado, vai mudar o sistema político do Chile e consagrar uma série de direitos sociais.  

Entre os constituintes estão muitas lideranças que não participavam do debate político convencional. Um dos exemplos mais famosos é o de Giovanna Jazmín Grandón Caro, conhecida como Tía Pikachu. Ela é uma condutora de van escolar que mora na periferia de Santiago e ganhou popularidade durante os protestos de 2019 por usar uma fantasia do famoso personagem do desenho Pokémon. Ela foi eleita de forma independente, sem vínculo com partidos políticos, e integra um grupo que foi uma das grandes surpresas da formação da Convenção Constituinte. Dos 155 parlamentares eleitos para elaborar a nova Constituição, 48 se apresentaram por listas independentes dos partidos políticos. Essa ala dos constituintes canalizou anseios populares por mais direitos sociais durante a elaboração do texto e atuou alinhada aos eleitos por partidos de esquerda. 

Uma das grandes mudanças do novo texto é que o Chile é definido como um Estado social democrático de Direito. "Essa palavra social transforma muito o papel do governo na sociedade chilena. Se aprovada, o Chile deixa de ter um Estado subsidiário para ter um que se responsabiliza pela diminuição das desigualdades e pelos direitos sociais. Então é uma mudança muito profunda", explica Ester. 

A nova Carta também diz que o Chile é um Estado paritário e, por isso, determina que 50% dos cargos de todos os órgãos do governo e de empresas públicas devem ser ocupados por mulheres. Além disso, define o Estado chileno como plurinacional — que reconhece as populações indígenas com demarcação de terras, representação política e autonomia administrativa —, intercultural, regional e ecológico.

O Senado será extinto para dar lugar à Câmara das Regiões, composta por até três representantes das 16 regiões do país. O novo órgão terá como função principal avaliar o impacto regional das novas leis. A idade mínima para se candidatar ao cargo de presidente foi reduzida de 35 para 30 anos e a reeleição será permitida — a Constituição vigente permite a reeleição, mas não de modo consecutivo. 

Outra mudança impactante proposta pelo novo texto constitucional é a criação de um sistema público de saúde, educação e previdência social. Também estabelece a garantia de direitos como trabalho e moradia dignos, além de "remuneração equitativa, justa e eficiente".

Meio ambiente

A nova proposta de Constituição dedica atenção especial ao meio ambiente. "O texto vigente é uma constituição antropocêntrica, que de certa maneira criou condições para um espécie de mercado ambiental. Em 1981, foi publicado um Código de Águas que é bem problemático, já que o país passa por uma crise hídrica e o direito ao uso da água está submetido ao direito da propriedade", explica Fabiola Girao Monteconrado, professora da Universidade de Valparaíso e coordenadora do Observatori del proceso constituyente chileno de la Universidad de Valparaiso.

Fabiola é advogada, mestre em Direito de Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Direito pela Universidade Católica de Valparaíso. Ela conta que a ecologia é um dos elementos que definem o Estado chileno, estabelecendo direitos da natureza.

"Na nova proposta entram palavras que não existiam, como garantir e promover direitos. Em matéria ambiental, temos determinações para preservação e conservação do meio ambiente. Os animais também passam a ser detentores de direitos por serem seres sencientes. O uso da água passa a ser um direito humano e o uso prioritário dela passa a ser o consumo humano". Caso seja aprovada, a nova Constituição quebrará o monopólio privado do uso da água no Chile.

Também será criada a figura do defensor público da natureza, que terá como missão a preservação do meio ambiente nos casos em que ocorra ação ou omissão de órgãos públicos ou privados em detrimento do meio ambiente. A matéria ambiental surge em outros capítulos da nova Constituição, além do que é exclusivamente dedicado ao meio ambiente, e entra também no sistema de Justiça, cujos órgãos jurisdicionais passam a ter o dever de zelar pelos direitos humanos e da natureza. 

"Passa-se de uma visão eminentemente mercadológica para uma mais alinhada ao Direito Internacional e aos direitos humanos, elevando a natureza em si a uma entidade detentora de direitos", conta Fabiola. 

Direitos indígenas

Em contraposição à Constituição vigente, o novo texto reconhece 11 etnias e nações indígenas: Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quechua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan e Selk'nam.

Também reconhece os povos indígenas como comunidades autônomas, com a validação de seus idiomas, símbolos e instituições educacionais. O limite da autonomia, contudo, é a não violação do caráter "único e indivisível" do Estado do Chile e das leis chilenas.

Além disso, a nova carta valida o direito dos indígenas de manter suas práticas de saúde e usar seus medicamentos tradicionais.

Trabalho e previdência

Em relação à legislação trabalhista, o novo texto constitucional representa uma revolução. Esse diagnóstico é do professor de Direito do Trabalho da Universidade de Valparaíso e PHD em Direito pela Universidade de Bristol Matias Rodriguez Burr.

O texto que será votado no plebiscito estabelece, entre outras coisas, a liberdade de organização sindical e a liberdade de escolha do trabalhador de se sindicalizar. Prevê também que as organizações sindicais têm direito a participar das decisões das empresas e são titulares exclusivas do direito de negociação coletiva. "Isso no Brasil pode não significar muito, mas no Chile representa uma verdadeira revolução. Isso vai melhorar o nível de negociação entre trabalhadores e empresas em nosso país, já que temos índices de sindicalização muito baixos. E isso será um belo incentivo", diz o professor.

Ele sustenta que a própria definição de trabalho no Chile vai mudar no caso de aprovação da nova Constituição. "Na Constituição vigente existe uma definição do que é trabalho decente de maneira vaga. O novo texto define, entre outras coisas, o que é um salário justo, que permite ao trabalhador e sua família uma vida digna. Também é estabelecido o direito à desconexão para os profissionais que atuam no regime de teletrabalho e o direito de greve". 

Segundo Burr, outro aspecto revolucionário do novo texto é a paridade de salários, que determina que todos os profissionais — homens e mulheres de qualquer orientação sexual e identidade de gênero — devem receber o mesmo salário se desempenharem funções iguais. 

O direito de greve será estendido a todos. "Esse tema será difícil de regular na prática, já que na Constituição vigente, apesar da proibição de greve, os funcionários públicos negociam coletivamente da maneira mais dura em nosso mercado de trabalho".

Sobre a previdência, o novo texto atende a uma das principais demandas da sociedade chilena, que é a criação de um sistema público. Fabiola explica que o atual sistema previdenciário chileno resulta em muitos aposentados vivendo na miséria.

"É possível receber um quarto do salário mínimo. Então, parar de trabalhar no Chile muitas vezes significa ser jogado na miséria".

Burr, por sua vez, opina que a transição entre esses dois sistemas de previdência representará um desafio. "Temos 40 anos de previdência privada, então será preciso definir muito bem como iremos trocar esse sistema. As pessoas se sentem donas dos seus fundos de pensão". 

Fake news e debate poluído

Apesar da cara moderna do novo texto constitucional chileno, a proposta corre o risco de não ser aprovada por causa de uma discussão polarizada e contaminada por uma série de notícias falsas disseminadas por grupos de interesse.

Dados do instituto de pesquisa Cadem, do último dia 27 de junho, mostram que a aprovação ao novo texto constituinte é de apenas 33%. Número muito inferior aos 56% de janeiro deste ano. A resistência ao novo texto constitucional acompanha a queda de popularidade do presidente Gabriel Boric, que registrou 59% de desaprovação no último levantamento. Esse é o pior resultado desde que ele assumiu a presidência, em março deste ano (clique aqui para ler o levantamento na íntegra).

Para Burr, não é possível apontar pessoas ou empresas que venham atuando na disseminação de mentiras sobre o novo texto constitucional. A resistência à mudança vem de uma parcela da sociedade preocupada com o impacto econômico da novidade e de grupos católicos e evangélicos que discordam dos aspectos morais. 

"Uma das maiores fake news é a de que é preciso reprovar esse texto constitucional para que seja formulado outro. Dizem que esses constituintes não entendem nada e que é preciso eleger uma nova constituinte. Só que não há nada definido para um novo processo constituinte", explica Fabiola Girao. 

Outra mentira é que o povo mapuche poderá vender parte do território chileno para a Argentina. Esse componente patriotico no debate sobre a nova Constituição não é necessariamente vinculado à elite econômica do país, ganhando muita capilaridade entre os cidadãos comuns.  

'Outro argumento que tem sido muito debatido é o de que a nova Carta Magna representa uma cópia da Constituição boliviana. Parte da população do Chile enxerga a Bolívia apenas como um povo pobre. Se dissessem que o texto constitucional era uma cópia da Carta Maior alemã, essa alegação não teria tanto peso", diz Fabiola. 

No entanto, segundo ela, a comparação até faz sentido em matéria ambiental. "A Constituição boliviana é muito boa nessa matéria. Também existem referências aos textos constitucionais do Equador e da Costa Rica. Mas o que se força aqui é uma super-representação dessas semelhanças. Como se tivessem ficado um ano copiando outra Constituição, mas não foi isso que aconteceu", diz ela.

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