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    Flávio Barbosa

    Cronista, psicanalista

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    200 anos de independência ou de uma fantasia de independência?

    O bicentenário terá significações distintas, pois ele será o instrumento dos príncipes, oligarcas e seus sapos de estimação para mais um golpe

    (Foto: Ricardo Stuckert)

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    Um amigo da velha guarda me perguntou recentemente se em 07 de setembro de 2022 iremos comemorar de fato o nosso bicentenário de independência ou não, e se o “governo” Bolsonaro honra uma tradição de independência deste país. A pergunta é pertinente, mas requer um cuidado para respondê-la a fim de não cairmos em certas soluções simples antes de uma análise um pouco mais cuidadosa dessa questão.

    Creio que podemos separar o joio do trigo para reconhecer o que de fato possamos considerar por independência e o que seria uma fantasia de independência, aqui fantasia pensada também com complexidade, a saber, o que reside nos nossos desejos e o que forja as nossas ilusões e autoenganos, mesmo enganos de uma parte significativa da sociedade.

    A historiografia oficial valorizou, e valoriza ainda sobremodo, o ato de um príncipe que em uma “cena épica” às margens do Rio Ipiranga em São Paulo bradou “Independência ou Morte” e rompeu os vínculos coloniais com a matriz. Nesse sentido a conquista de nossa independência ficou circunscrita ao mito de um herói que fora capaz de romper com o próprio pai e a pátria mãe, Portugal, para se entregar de corpo e alma ao país que recém nascia como país soberano graças a ousadia e coragem desse herói.

    A geografia humana e política desse processo estava anotada na glória da família real, um príncipe regente logo coroado imperador, Dom Pedro I, sua esposa, a princesa austríaca Dona Leopoldina e alguns outros muito restritamente, sobressaindo-se a figura de José Bonifácio misto de político e conselheiro do príncipe e do imperador.

    A luta social nessa versão histórica ficou para trás como de resto muitas lutas do povo brasileiro não raro olvidado e/ou pouco valorizado. Onde estariam as lutas por independência e também por república e abolição da escravatura travada no seio do povo e de suas lideranças legítimas? Que lugar nessa versão oficial se situava movimentos e acontecimentos como a Revolução Pernambucana de 1817, o Quilombo dos Palmares em meados do século XVII, a Inconfidência Mineira em 1789, a Conjuração Baiana de 1798, a Confederação do Equador de 1824, a Revolta dos Malês de 1835, a Revolução Praieira entre 1848 e 1850, a Cabanagem entre 1835 e 1840, as lutas populares da independência da Bahia que consolidou, e talvez melhor tenha traduzido, a independência do Brasil entre 1822 e 1823, e tantas outras lutas contra o sistema colonial que submetia o Brasil?

    Essa independência escrita por roteiristas do establshment consome uma parte enorme da História Oficial do Brasil, uma história sem povo, o que no imaginário de muitos faz-se crer que o Brasil é um país donde não houve lutas populares e as nossas conquistas seriam coisas mais parecidas com dádivas e/ou ações restritas de certos “heróis” do que propriamente conquistas populares.

    Essa crônica, mesmo essa forma de se contar a história tinha e tem um objetivo, a saber, acomodar o povo, fazê-lo reverenciar heróis escolhidos pelos donos do poder, aliás, inculcar na cabeça e na alma do povo a ideia de que o Brasil tem donos e que eles são brancos bem nascidos das “grandes famílias” herdeiras das oligarquias tradicionais oriundas desde a colônia, de um resto de aristocracia e membros remanescentes da família real e de uma burguesia nascente no século XIX e consolidada no período da monarquia e mais ainda na república.

    Nesse desenho histórico que se definiu por nossas elites o sujeito da história do Brasil são seus príncipes e sua elite econômica-política, enquanto ao povo resta o osso, em sentido figurado ou não. Na história oficial há muito prevalente no Brasil o povo é a plateia, jamais os protagonistas. O povo é aquele que não tem rosto ou na melhor acepção desse legado teria uma expressão esquálida, decrépita, e muitas vezes sequer nome próprio, portanto, indigno de fazer e ser sujeito da história.

    A narrativa oficialista da independência do Brasil neste sentido é o de uma fantasia, e de uma fantasia que legou ao povo uma condição objetificada, pálida, emudecida. E o Brasil que nasce dessas narrativas é aquele que saiu da colonização pagando pesada dívida pecuniária ao país que nos colonizou por cerca de quatro séculos e que por tantas vezes saqueou os recursos minerais e do trabalho do nosso povo com impostos ultrajantes, caçou e assassinou os povos originários, e desumanizou os negros africanos a fim de tocar nossa economia e riquezas a partir da empresa da escravidão consolidando assim um modelo não distributivo, concentrador, seja na economia, quanto na política, cultura e transmissão dos saberes. É o país que saindo do julgo de Portugal caiu no julgo do grande império colonial daquela época, a Inglaterra, e que sem tecer de fato a sua soberania foi se arrastando de império em império, a saber, de Portugal à Inglaterra; da Inglaterra aos Estados Unidos; dos Estados Unidos a esse ente transcendente na lógica econômica liberal que é o Mercado. 

    Nesse sentido qual o papel de uma figura como esta do presidente Jair Bolsonaro e o de seu “governo”? É a figura do gerente do processo colonial, ou seja, aquele que falando em “liberdade” viola de todas as maneiras a condição existencial de nosso povo; que falando de “independência”, entrega nossos recursos e riquezas para os estrangeiros; que postulando signos frívolos ao seu “governo” como o de “Brasil acima de tudo”, submete o país e as suas empresas estratégicas para a construção de um desenvolvimento soberano aos interesses econômicos do grande capital, capitulando completamente um futuro para o país e suas gerações e corrompendo de fato e de direito o sentido de soberania. Ademais, sendo a criatura tosca que é, talvez seja melhor associá-lo à figura de um capataz, um capitão-do-mato do que mesmo um gerente, o que já se exige, convenhamos, alguma sofisticação, no que de modo algum é o caso.

    Nesses 200 anos de Independência do Brasil nunca estivemos tão no chão, nunca fomos tão escancaradamente submetido ao outro, nunca caminhamos tão baixo e incerto como agora. E isso é tanto que talvez seja o caso de ao invés de comemorarmos o bicentenário, creio que devemos nos juntar para de fato Proclamar a Independência tardia do Brasil. Uma independência que se não vem, significa a nossa morte. Uma independência que não pode ter outro herói, outro protagonista senão o povo.

    Essa barafunda que esse desordeiro – talvez o adjetivo mais pertinente a esse elemento desqualificado que está no Planalto – chama de independência, liberdade, nada mais é do que palavras de significações antitéticas, a saber, palavras que quando pronunciadas têm uma significação absolutamente contrária ao que supostamente quer dizer. Mas isso não é um simples acidente de percurso histórico, isso é a mais autêntica tradução de uma narrativa histórica que excluiu o povo das causas mais elevadas desse país chamado Brasil. Aliás, um nome que na sua origem evocava fantasia, seja a do saqueio do país através da exploração pelo invasor de seus recursos, como o pau-brasil, seja por uma lenda europeia dos séculos XV e XVI que designava por Brasil um paraíso perdido e a ser achado e explorado a um gozo sem freios. De algum modo, essas fantasias têm sido realizadas por esse Senhor colonial que não deixou rigorosamente de solicitar esse país e dele se servir.

    Eu falei no início deste texto, no entanto, que a questão de nossa independência precisa ser lida em face às suas contradições e paradoxos e não de uma maneira simples e ordinária. Sim, é certo que de um lado dessa história a nossa independência é uma fantasia, no entanto, há um outro lado em que a independência é uma conquista não subordinada e que se tece ainda, seja na evocação de nossas lutas sociais e históricas que travamos, seja nas lutas que temos a travar no devir de nossa nação. Uma nação não se constrói sem povo como supõe os príncipes e as oligarquias com o seu oficialismo plasmado na história.

    A fantasia, no entanto, está presente nas palavras e em nossas estruturas de discurso, portanto ela tem sentido diverso, a saber, por um lado ela pode ser a vertigem de um processo que se despe da realidade, por outro, ela é parte da própria realidade que nunca é absolutamente fática, mas premida de interpretações; por um lado as fantasias nos amarra em nossos imaginários e sintomas, por outro a fantasia é um tecido pertinente de nossos desejos e nossos sonhos de um futuro e de uma vida bem sucedida em diversos aspectos.

    Esses sonhos, desejos e horrores o fazemos individualmente e também coletivamente e é parte das disputas discursivas históricas. No Brasil tem prevalecido a vontade do Senhor, contudo, se não desejamos ou nos acostumamos a sermos submetidos e escravizados por certas narrativas e discursos, por certos lugares que se nos reservam, então é importante recuperar a nossa História no que diz de fato de nossas lutas e firmar a nossa independência com a assinatura que tantas vezes assinamos com tintas cores de sangue.

    O bicentenário, portanto, terá significações distintas, pois por um lado ele será o instrumento dos príncipes, oligarcas e seus sapos de estimação para mais um Golpe contra este país e seu povo, mas por outro, ele deve ser o esperançar, a ação e a afirmação de uma luta histórica, inacabada, permanente, para que esse país e o seu povo tão diverso e culturalmente rico possam sim pronunciar a sua soberania e independência.

    Como se ver, a independência do Brasil está longe de ser um projeto concluído, ou uma data fixa no calendário, ela é um movimento que ainda nos solicita muito.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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