A anomia anuncia a tirana: rima sem solução
O Executivo desconfia do Judiciário, que despreza o Legislativo, que ignora o povo, que detesta o Executivo. Em condições normais, esse tipo de rondó institucional não é raro, de duração temporal limitada, sem provocar danos importantes à comunidade. Com o ato falho constitucional do impedimento da presidente Dilma Rousseff, contudo, o rondó nacional mergulhou a ordem jurídica e política na clandestinidade, não obstante a aparente normalidade das rotinas operacionais. Todos os figurantes continuam em serviço, mas o que antes era exercício de funções converteu-se em artifício de representação
O Executivo desconfia do Judiciário, que despreza o Legislativo, que ignora o povo, que detesta o Executivo. Em condições normais, esse tipo de rondó institucional não é raro, de duração temporal limitada, sem provocar danos importantes à comunidade. Com o ato falho constitucional do impedimento da presidente Dilma Rousseff, contudo, o rondó nacional mergulhou a ordem jurídica e política na clandestinidade, não obstante a aparente normalidade das rotinas operacionais. Todos os figurantes continuam em serviço, mas o que antes era exercício de funções converteu-se em artifício de representação. O Executivo presume que governa, mas tiraniza, o Judiciário imagina que julga quando, apesar da linguagem arcana, distribui sentenças arbitrárias, e o Legislativo se agita em decisões de pantomima clássica. A anomia absorveu a democracia brasileira.
O maligno da anomia consiste em que as ações dos personagens produzem graves consequências no mundo verdadeiro, parte delas irrevogáveis. O atropelo decisório dos últimos meses, errático, preconceituoso, submetido ao medo, inculto, passional, que, em doses irregulares, tem colorido as ações do Executivo, Legislativo e Judiciário, antecede violências ainda maiores para que a ficção do argumento prevaleça como realidade e natureza. Falas e gestos de governos, legisladores e magistrados são burlescos, mas o preço do ingresso na interpretação do Brasil como farsa é brutal.
Está sendo votada a adaptação local do Ato Patriota (ou Patriótico) dos Estados Unidos, que garantiu ao complexo judicial-investigativo norte-americano a autoridade e autonomia para suspender a vigência de qualquer um dos direitos civis e políticos dos cidadãos, abrigados em artigos constitucionais centenários. O monstrengo entrega aos beneficiários a legitimidade de decidir quando convém aplica-lo ou de fazer cessar seus efeitos. A proposta dos procuradores contra a corrupção, sitiando ostensiva e pessoalmente um Legislativo desmoralizado, contém a legalização de assalto ao poder similar ao Ato Patriota, extraído, lá, com a chantagem propiciada pela derrubada das Torres Gêmeas.
A democracia está na berlinda em praticamente todos os países que a adotavam. Neles, são os mesmos grupos de assaltantes, bem sucedidos em herdar por vias da Constituição o direito de violar seu espírito e letra. Faz lembrar o primeiro Ato Constitucional de abril de 1964: “A Revolução (sic) se legitima a si mesma”. O conjunto de propostas dos procuradores conduz, no fundo, à mesma coisa: a tirania jurídico-investigativa se justifica a si mesma. A anterior durou 21 anos.
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