A articulação da Esquerda no Uruguai e os dilemas do Brasil
O Uruguai pode emergir como um farol de esperança para forças progressistas em toda a América Latina
No último dia 19, estive presente no emocionante evento de encerramento de campanha da Frente Ampla, na Praça Primeiro de Maio, em Montevidéu. Ali, sob a presença de Pepe Mujica, senti na pele a força de um movimento que vai muito além das urnas — um movimento que carrega décadas de luta e esperança. A possível vitória da Frente Ampla nas eleições uruguaias do próximo domingo (27), sob liderança de Yamandú Orsi, transcende a simples alternância de poder. É a culminação de décadas de articulação estratégica e, acima de tudo, de um profundo compromisso com a justiça social e a inclusão. Para entender o que está em jogo, é necessário mergulhar na história da esquerda no Uruguai, um movimento que, embora minoritário por muito tempo, encontrou nas ruas, nas universidades e, principalmente, na articulação popular os alicerces de sua força. Este movimento, que soube perseverar e se adaptar, contrasta profundamente com o cenário enfrentado pela esquerda em outros países da América Latina, especialmente no Brasil.
O caminho da Esquerda no Uruguai e sua resiliência - No início do século XX, partidos de esquerda começaram a surgir no Uruguai, em contraposição aos tradicionais partidos Colorado (1836) e Nacional/Blanco (1836), refletindo os ventos de transformação social e política que atravessavam o continente. Entre eles, o Partido Socialista (1910) e o Partido Comunista (1920) foram fundamentais para a construção de uma base ideológica que, décadas depois, serviria de alicerce para movimentos progressistas mais amplos.
A Frente Ampla (FA), desde sua fundação em 1971, construiu-se como uma coalizão de forças progressistas, que abarcava desde marxistas a social-democratas, em uma unidade que foi essencial para sua sobrevivência e crescimento. Ao contrário de outras experiências latino-americanas, onde a fragmentação e disputas internas enfraqueceram as forças progressistas, a FA soube manter um projeto coerente, mesmo em face de desafios significativos, como a ditadura civil-militar (1973-1985) e a ascensão de governos de direita nos últimos anos.
No Uruguai, a esquerda não se limitou a ser uma força de resistência passiva. Após décadas de marginalização política, quando finalmente chegou ao poder em 2005, com Tabaré Vázquez, a Frente Ampla inaugurou um ciclo de reformas estruturais que transformaram o país em termos de inclusão social, direitos civis e fortalecimento das instituições democráticas. Com a vitória de José “Pepe” Mujica, o país avançou ainda mais em sua agenda progressista, com medidas pioneiras, como a legalização da maconha e o reconhecimento do casamento igualitário.
Essa continuidade de um projeto de esquerda coeso é algo raro na América Latina. O que distingue a experiência uruguaia é a capacidade de manter um diálogo construtivo entre suas várias correntes internas, sem sucumbir à fragmentação, que é o principal desafio da esquerda em outros países. Esse contraste fica ainda mais evidente quando se observa o cenário no Brasil, onde a (centro) esquerda, liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), enfrenta grandes dificuldades para consolidar um projeto que una de maneira efetiva suas diferentes correntes.
O Brasil e a fragmentação da Esquerda: o dilema do Governo Lula III - No Brasil, a esquerda enfrenta uma situação complexa, especialmente durante o terceiro mandato do presidente Lula. Embora Lula tenha retornado ao poder em 2023 com o apoio de uma “frente ampla”, que inclui partidos progressistas como o PSB, o PCdoB e até mesmo algumas correntes do MDB e do PSDB, a articulação enfrenta sérias dificuldades para estabelecer uma agenda coerente e consistente. As pressões vêm não apenas dos grandes capitalistas da Faria Lima, que demandam cortes nos gastos sociais e um retorno à austeridade fiscal, representados pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mas também da necessidade de lidar com os interesses militares, especialmente após a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
Além disso, há uma crescente insatisfação em setores que esperavam uma transformação mais significativa e rápida. As propostas das forças neoliberais, que buscam desmantelar conquistas históricas da sociedade, como a eliminação dos pisos constitucionais de investimento em saúde e educação, revelam um conflito distributivo que se impõe e que poderá obrigar o governo a contrariar interesses de sua base de apoio. Enquanto isso, o PT e seus aliados lutam para construir consensos políticos, enfrentando desafios que contrastam com a coesão da Frente Ampla no Uruguai, que conseguiu sustentar um projeto coeso ao longo dos anos, mesmo em tempos difíceis.
Um exemplo claro dessas dificuldades está na política externa. No início de seu terceiro governo, Lula anunciou a intenção de retomar uma postura “ativa e altiva”, em consonância com os princípios que marcaram sua diplomacia nos mandatos anteriores, especialmente sob a liderança do ex-chanceler Celso Amorim. Contudo, na prática, a execução dessa política tem sido irregular. O governo Lula III tem oscilado entre um discurso progressista, que defende a multipolaridade e a autonomia latino-americana, e atos que sugerem uma postura mais moderada e pragmática, especialmente em temas sensíveis, como a questão de Israel e as eleições na Venezuela.
Além disso, o governo Lula III tem enfrentado grandes dificuldades em implementar sua agenda interna, principalmente devido a uma oposição bem articulada. Os principais partidos que compõem essa oposição incluem o Partido Liberal (PL), que detém a maior bancada na Câmara dos Deputados, e o União Brasil (UB), que, apesar de não se declarar formalmente como oposição, possui membros alinhados com a base bolsonarista. Além disso, setores dissidentes do centrão, como os Progressistas (PP), também desempenham um papel significativo na resistência às propostas do governo
A base de apoio de Lula, por outro lado, é composta por partidos como o PT, PSOL, PCdoB, PSB e PDT. No entanto, essa coalizão progressista enfrenta desafios de coesão ideológica, resultando em conflitos frequentes em temas centrais, como a reforma tributária e a sustentabilidade ambiental.
A contraposição uruguaia: coesão e unidade progressista - O que se observa no Uruguai é uma articulação muito mais eficiente e coesa da esquerda, o que explica em parte o sucesso da Frente Ampla em manter-se relevante e competitiva. Composta por partidos como o Partido Socialista, o Partido Comunista, o Movimento de Participação Popular (MPP) e a Vertiente Artiguista, essa coesão permitiu à FA governar por mais de uma década com relativa estabilidade, algo que a esquerda brasileira, mesmo com o histórico do PT no poder, não conseguiu replicar em termos de solidez interna e de controle das tensões entre suas diferentes correntes.
A articulação que está levando a Frente Ampla de volta ao protagonismo em 2024 se deve, em grande parte, à habilidade de seus líderes de manter um projeto de longo prazo, algo que contrasta com a fragmentação e os constantes reordenamentos que caracterizam a esquerda brasileira. Enquanto o PT e seus aliados no Brasil se veem presos em um ciclo de disputas internas e concessões que diluem seu projeto político, a Frente Ampla conseguiu, mesmo após a derrota de 2019, reconfigurar-se como uma força política relevante.
Yamandú Orsi, principal figura da FA em 2024, personifica essa capacidade de articulação. Ele representa tanto a continuidade dos valores progressistas quanto uma abertura à inovação, com um olhar renovado para os desafios do século XXI. Orsi busca canalizar as insatisfações populares com o governo de Luis Lacalle Pou, atual presidente, sem ceder a populismos, e apresenta uma plataforma sólida, que dialoga com as bases tradicionais da FA e com setores mais moderados da sociedade uruguaia.
O significado da possível vitória da Frente Ampla para a América Latina - Se a Frente Ampla vencer as eleições do próximo domingo, isso terá implicações profundas para a política latino-americana. O Uruguai, que já é visto como um exemplo de estabilidade e progresso social no continente, poderá reafirmar seu papel como modelo de uma esquerda que, ao contrário de seus vizinhos, soube se articular de maneira eficiente e estratégica. Enquanto a esquerda no Brasil, Argentina e Chile enfrenta crises de identidade e dificuldades para manter projetos coesos, o Uruguai pode emergir como um farol de esperança para forças progressistas em toda a América Latina.
Essa vitória também seria um sinal de que é possível conciliar crescimento econômico com justiça social, algo que muitas vezes é visto como um dilema insuperável. A FA mostrou que é possível governar de maneira responsável, sem abdicar de seus princípios fundamentais de igualdade e inclusão. E isso é particularmente relevante em um momento em que a América Latina como um todo está dividida entre a ascensão de governos conservadores e a tentativa de renovação das forças de esquerda.
A vitória da Frente Ampla não seria apenas um triunfo eleitoral. Ela seria a prova de que a esquerda latino-americana, quando unida, pode oferecer respostas concretas aos desafios contemporâneos. No entanto, o contraste entre o Uruguai e o Brasil será evidente. Enquanto a FA, em sua possível ascensão ao poder, mostra uma articulação exemplar, o Brasil, mesmo sob o governo de Lula III, continua a lutar contra sua própria fragmentação, incapaz de se unir em torno de um projeto progressista sólido e coeso.
A trajetória de ambos os países reflete um paradoxo central da esquerda na América Latina: a possibilidade de renovação e inovação convive com os obstáculos estruturais impostos pela divisão interna. No Uruguai, a Frente Ampla conseguiu, ao longo dos anos, consolidar um discurso que une diferentes vertentes progressistas, mantendo a coesão em torno de um projeto de país inclusivo e sustentável. Já no Brasil, sob o governo de Lula III, o desafio de manter uma ampla coalizão esbarra na fragmentação interna e nas concessões feitas a setores conservadores, que muitas vezes diluem o impacto das políticas mais transformadoras. O Brasil, com sua vasta diversidade de correntes de esquerda e centro-esquerda, continua em busca de uma fórmula que possa reconciliar essas forças em torno de um projeto comum, algo que, até agora, parece estar além do alcance de Lula e do PT.
Enquanto o Uruguai segue um caminho de coesão e progresso, o Brasil luta para encontrar equilíbrio entre suas várias facções. Como bem disse Pepe Mujica em seu discurso de despedida: “É preciso trabalhar pela esperança. [...] Porque quando esses braços se forem, haverá milhões de braços”. Essa mensagem de renovação e continuidade é justamente o que falta no Brasil, onde a luta por unidade progressista ainda está por vir.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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