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    Agassiz Almeida Filho

    Agassiz Almeida Filho é professor de Direito Constitucional na UEPB, autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (2007), Introdução ao Direito Constitucional (2008) e Formação e Estrutura do Direito Constitucional (2011)

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    A Autofagia do Lavajatismo

    O lavajatismo mergulhou num previsível quadro de autofagia. É uma espécie de estado de natureza hobbesiano onde preponderam os ataques institucionais e os processos de todos contra todos. Também é um hospício político, onde a sociedade brasileira foi internada à força, esgotou todas as formas de tratamento e deseja voltar para casa

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    O lavajatismo mergulhou num previsível quadro de autofagia. É uma espécie de estado de natureza hobbesiano onde preponderam os ataques institucionais e os processos de todos contra todos. Também é um hospício político, onde a sociedade brasileira foi internada à força, esgotou todas as formas de tratamento e deseja voltar para casa, nem que seja para uma prisão domiciliar pelos próximos quatro anos. A quebra da lei e da Constituição de forma quase generalizada e a busca do protagonismo pessoal são as marcas essenciais do lavajatismo. Resumidamente, o que aconteceu?

    A República de Curitiba criou suas próprias normas jurídicas, vem pressionando o STF desde o período do impeachment e tentou se apropriar ilegalmente do fundo bilionário criado por um acordo nebuloso entre a Petrobrás e o Departamento de Estado norte-americano. O Supremo reagiu, recentemente, vetando a existência desse fundo, instaurando um inquérito para apurar fake news contra seus membros e desmoralizando publicamente alguns membros da força tarefa de Curitiba. Despontou um clima de conflito político que não deve existir no Poder Judiciário e no Ministério Público.

    Seria o fim da Lava Jato e a volta da normalidade possível em tempos de governo Bolsonaro. Só que nada é normal nesse enredo de autofagia institucional que deu respaldo ao impeachment de Dilma Rousseff, à prisão de Lula e a uma crise política, econômica, jurídica e democrática sem precedentes na história recente do país. Há centenas de outros fatos que transformariam este pequeno artigo em um verdadeiro tratado sobre oportunismo, manipulação, crimes de várias espécies e formação de camadas sociais alheias à realidade que as circunda. Mas devemos nos limitar aos elementos gerais.

    Um dos braços do lavajatismo na imprensa publicou, na segunda-feira, 15 de abril, uma matéria que relacionava o Presidente do STF com o grupo Odebrecht por meio de um documento vazado. Nada de novo até aqui. O Supremo, por sua vez, através do Ministro Alexandre de Moraes, suspendeu a divulgação da matéria em nome da Lei de Segurança Nacional, fato, por si só, jurídica e politicamente temerário. Afinal, há um nítido imaginário militarista no governo, projetado socialmente por meio da ideia estapafúrdia de se comemorar o Golpe de 64 por parte do Presidente da República. Além disso, implantou-se um quadro real de violência social e política no país, sobretudo a partir do empoderamento de grupos de extrema direita inspirados em tendências inegavelmente neofascistas.

    Ainda no STF, há poucas semanas, o Ministro Gilmar Mendes acusou o COAF de praticar abuso de autoridade contra ele e revelou à revista Época que pelo menos um Ministro da Corte estaria sendo chantageado por uma das grandes operações investigativas em curso no país. A autofagia do lavajatismo deteriorou de modo tal a institucionalidade brasileira que sua existência se baseia apenas na impossibilidade de substituí-la por alguma outra no presente momento sem eliminar de vez o regime democrático

    No meio disso tudo, instalou-se um conflito entre o Ministro Sergio Moro e o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que deu origem a uma situação de aparente rompimento entre o Executivo e o Legislativo. Por coincidência, após menos de dois dias, Michel Temer, Moreira Franco (casado com a mãe de Maia) e outros acusados foram presos ilegalmente pelo braço carioca da Operação Lava Jato, sendo colocados em liberdade poucos dias depois. Piorando a situação nacional, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública não se manifestou sobre o suposto envolvimento do Senador Flávio Bolsonaro e do próprio Presidente com milicianos do Rio de Janeiro. Manteve o silêncio de quem não pode falar. Exemplo do mais puro lavajatismo, a segunda condenação do ex-Presidente Lula teve partes retiradas da condenação anterior lavrada por Moro, o que ocorreu, segundo afirmou a própria Juíza Gabriela Hardt, responsável pelo caso, por "excesso de trabalho".

    Para deixar o cenário absolutamente novelesco, o Desembargador Gebran Neto, que compõe o TRF da 4ª Região e participou do julgamento do ex-Presidente Lula no caso do triplex, disse a interlocutores que a próxima vaga no STF seria dele e não de Sergio Moro. Tudo estaria combinado com o Presidente Bolsonaro, naturalmente, uma vez que ele é quem indica e nomeia os Ministros do Supremo Tribunal Federal. Os algozes de Lula na corte de Bolsonaro. Por fim, a Procuradoria Geral da República requereu o arquivamento do inquérito aberto pelo STF na manhã de hoje (16) e criou incertezas que terão algum desfecho nas próximas semanas.

    O grande responsável por este quadro dantesco de violência e incerteza nas instituições da República é o lavajatismo. Trata-se de uma forma de entender o sistema jurídico e a política (com inicial minúscula) a partir de perspectivas pessoais que pouco ou nada se relacionam com as leis e a Constituição. É o juiz agindo de modo pessoal na interpretação dos fatos. As leis são irrelevantes para esse tipo de magistrado. Dois exemplos disso são a divulgação do áudio entre o ex-Presidente Lula e a então Presidenta Dilma Rousseff pela 13ª Vara de Curitiba, além dos "embargos auriculares" que o Delegado Rogério Galloro confessa ter obedecido quando negou o cumprimento de decisão judicial para a libertação de Lula. A decisão do Desembargador Favreto determinando a soltura estava nas mãos do Delegado. Porém, segundo seu relato ao Estadão, ele a desconsiderou e manteve Lula preso por causa de telefonemas que recebeu de outras autoridades.

    O lavajatismo é a negação do Estado Democrático de Direito. Entra na arena pública. Pretende acusar e julgar por meio de elementos tipicamente políticos. Em vez de seguir a Constituição, os tratados internacionais e as leis, procura convencer a opinião pública de que o seu ponto de vista deve preponderar. A imprensa é fundamental nesse processo para referendar o hipócrita discurso moralista dessas personagens antissistemas. Os julgamentos passam a ocorrer como se o acusado se submetesse ao justiçamento das multidões, sem a observância dos seus direitos e à margem das normas que garantem a existência de um processo civilizado.

    Nessa linha, o lavajatismo construiu dois símbolos. Um deles foi a absurda apresentação de PowerPoint feita por um Procurador da República, na qual, perante a imprensa de todo o Brasil, ele afirmou que o ex-Presidente Lula, de acordo com sua convicção pessoal, mesmo sem provas, era o chefe de uma organização criminosa. O segundo desses símbolos é a convocação de coletivas de imprensa pela polícia e pelo Ministério Público para oferecer detalhes de investigações que afetam a posição das pessoas sobre o assunto e interferem no bom andamento do processo. Os dois símbolos do lavajatismo demonstram que Gustavo Zagrebelsky estava correto, quando afirmou que o Estado Democrático de Direito ainda não havia entrado no ar que respiram os juristas.

    Esse tipo de governo dos homens e não das leis aparenta funcionar quando há níveis adequados de consenso acerca da ação dos justiceiros. Quando a função da Operação Lava Jato era afastar a ex-Presidenta Dilma Rousseff e prender o ex-Presidente Lula, criminalizando o Partido dos Trabalhadores, as brutalidades jurídicas cometidas pela República de Curitiba alimentavam as turbas conservadoras e seus atores eram considerados o que havia de melhor no futuro do Brasil. Mas este momento passou, pois a Operação Lava Jato e a ideologia judicial que dela brotou, o lavajatismo, demonstraram que não se sustentavam ante o tribunal da racionalidade e do Estado Democrático de Direito. Vieram a nomeação de Moro por Bolsonaro, a fundação bilionária conduzida por Dallagnnol, Gebran Neto cotado para o STF, procuradores deixando o Ministério Público para ingressar na advocacia, palestras remuneradas para magistrados lavajatistas etc.

    Sem a premência de um golpe político capaz de mantê-los unidos, a verdadeira face desses agentes da falsa moral contra o Direito veio à luz. A autofagia do lavajatismo começou. Na ausência de leis para conduzir o julgamento dos homens, eles terminam devorando a si mesmos.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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