A caminho de entrevistar Lula, dentro do buraco negro brasileiro
O ex-presidente Lula "nos atingiu em cheio ao nos contar: 'Os EUA estavam com medo quando eu discuti uma nova moeda e o Obama me ligou, dizendo, ‘Você está tentando criar uma nova moeda, um novo Euro?’ Eu disse, ‘Não, só estou tentando nos livrar do Dólar. Só estou tentando não ser dependente'", relata Pepe Escobar, do Jornalistas pela Democracia. "O Brasil parece estar agora configurado como o laboratório global extremo para novas formas de neoliberalismo autoritário"
Por Pepe Escobar, do Jornalistas pela Democracia
Tradução de Antonio Netto Jr.
Estávamos quase atingindo a velocidade de cruzeiro em nossa abrangente entrevista, exclusiva em todo o mundo, de 2 horas e 10 minutos com o ex Presidente Luís Inácio Lula da Silva, em sua prisão no prédio da Polícia Federal em Curitiba, sul do Brasil.
E então ele nos atingiu em cheio ao nos contar: “Os EUA estavam com medo quando eu discuti uma nova moeda e o Obama me ligou, dizendo, ‘Você está tentando criar uma nova moeda, um novo Euro?’ Eu disse, ‘Não, só estou tentando nos livrar do Dólar. Só estou tentando não ser dependente.’”
Esta foi a pedra fundacional que impulsionaria um complexo golpe via Guerra Híbrida, da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) espionando o governo brasileiro e as principais empresas nacionais, passando pelas investigações de corrupção da operação Lava Jato (já demolidas como uma mutreta monstruosa) até o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula, e a ascensão do Disseminador do Caos, Jair Bolsonaro.
Minha jornada começou no Camboja, onde passei horas vagando por Beng Mealea, com a floresta espremendo as bases de pedra das ruínas de Angkor, meditando sobre a ascensão e queda dos impérios. A mensagem surgiu em meu celular na calada da noite: o pedido para entrevistar o Lula, apresentado cinco meses antes, havia sido aprovado. Quão logo eu conseguiria chegar a São Paulo?
Angkor Wat, Camboja (Wikimedia Commons)
Do sudeste asiático a América do Sul, via Qatar, até São Paulo no fim de tarde do dia seguinte. Conforme aterrissávamos na cidade, o céu estava literalmente negro. Mais tarde descobri o porquê: o mini-Apocalypse Now era uma conseqüência direta das queimadas na Amazônia meridional .
Avaliando o Mundo de uma Pequenina Cela
No dia seguinte, nós três (dois outros jornalistas) voamos até o Quartel General da operação Lava Jato, chamado ironicamente pelos brasileiros de “República de Curitiba”. Nosso primeiro motorista de Uber em Curitiba, uma cidade com 1.8 milhões de habitantes, era um especialista em Muay Thai e investigador clandestino de homicídios. Sim, ele havia matado pessoas em seu trabalho.
Ao anoitecer, no dia anterior à entrevista agendada, os agentes federais brasileiros passaram a empregar táticas protelatórias. Um dos advogados de Lula, Manuel Caetano, arquitetou um contra-ataque com luvas de pelica, com uma reviravolta: a aprovação da entrevista pode mais uma vez voltar ao Supremo Tribunal Federal, e eles mais uma vez confirmarão o sinal verde. Os agentes federais cederam.
Naquela noite, visitamos a Vigília Lula Livre, no lado de fora do prédio da Polícia Federal, que se mantém sem interrupção por mais de 500 dias, desde o dia 7 de abril de 2018, dia em que Lula chegou à prisão. A vigília, impecavelmente administrada, tem de tudo, desde uma biblioteca, uma cozinha comunitária, até um centro educacional. Todos os dias, centenas, por vezes milhares de militantes e andarilhos de toda a nação se unem para cantar “Bom dia, Presidente Lula”, “Boa tarde, Presidente Lula” e “Boa noite, Presidente Lula”. E ele escuta através de uma pequena janela, quase fechada, em sua cela.
O dia extra nesse lugar improvável e austero, imitando uma cidade do meio-oeste americano, orgulhoso de suas credenciais verdes e habitado pela mistura de poloneses e ucranianos, nos permitiu elaborar uma cuidadosa divisão de trabalho. Nós representávamos o website/canal de You Tube do Brasil 247, e, no meu caso, o Asia Times e o Consortium News. Mauro Lopes do Brasil 247 se concentraria em Lula, o homem, e como a experiência na prisão o transformou. Paulo Moreira Leite focaria na política brasileira, e eu abordaria geopolítica e relações internacionais.
A entrevista com o Lula teve lugar na sala de reuniões dentro do prédio da Polícia Federal. Ele está preso em uma sala de 3 x 3 metros, com uma pequena janela que não pode ser aberta, um beliche, pia, uma pequena mesa e alguns livros e recordações. A porta fica aberta durante o dia, mas com dois policiais do lado de fora. Ele não tem acesso à internet ou TV a cabo. Todos os dias, Marcola, um jovem doce e devoto assistente, traz um pendrive recheado de notícias sobre política e parte com as mensagens escritas a mão por Lula para várias pessoas por toda a nação.
Caetano, o advogado, já nos tinha informado que o homem estava bem humorado e pronto pra conversar, o que foi confirmado pelo foto-jornalista Ricardo Stuckert, que documentou Lula por todo o mundo desde os princípios dos anos 2000 e nos instruiu em questões técnicas. Nós três tínhamos ajustado uma lista de questões conexas. Menos de uma hora depois, trocávamos olhares: deixa ele falar. E ele falou.
Planejando Com os Generais
Aqui estava um homem que havia usado sua temporada na prisão – como monges em cavernas de meditação no Himalaia – para reavaliar a extraordinária trajetória de sua vida, mergulhar fundo em si mesmo e agora recuperar seu status como um dos (muito poucos) grandes estadistas do século 21. O contraste com a nulidade incendiária em Brasília não poderia ser maior. Nós três instintivamente percebemos que nossa conversa era histórica de várias maneiras, conforme todo o mundo, em completa perplexidade, tenta como compreender como uma das dez maiores economias do planeta e, até recentemente, um dos maiores líderes do Sul Global, se torna presa de um brutalismo proto-fascista, intolerância, grau zero da pós-política do ódio, e mergulha na condição de mera neo-colônia.
Voamos apressadamente de volta a São Paulo com nossa entrevista. A transmissão online estava prevista para às 21h. Pessoas em todo o país estavam grudadas em seus computadores e smartphones. Não havia tempo para edição. Mesmo assim, o arquivo era tão grande que houve nervosismo com a considerável demora do upload para o YouTube. Uma versão preliminar só saiu tarde naquela noite – apenas uma câmera (a do Stuckert) focando no Lula, com som instável (uma versão editada seria lançada alguns dias depois.)
No dia seguinte voei até Brasília – memórias de seus sonhos modernistas da década de 60 há muito perdidas — para um evento no sábado, com a participação de lideranças do partido de Lula, o Partido dos Trabalhadores. Mas minha mente estava focada numa reunião em curso nas proximidades, no Palácio do vice-presidente, entre Bolsonaro e os principais generais. Eles discutiam o cenário futuro. Mas não houve qualquer vazamento dessa reunião.
À noite houve um jantar privado com a ex-Presidenta Dilma Rousseff. Em um ambiente descontraído, cercada de amigos, algo raro ouvi-la descontraída: uma mulher de honra e integridade, bebendo uma taça ou duas de vinho, contando piadas. Ela havia aprendido a “rir de si mesma.”
Diplomaticamente, a Presidenta Dilma se certificou de enfatizar a “contribuição decisiva de elementos do complexo jurídico-policial dos EUA” na consumação de seu impeachment. E que era imperativo conduzir “pelo menos uma investigação acerca das relações entre o Departamento de Justiça dos EUA e a operação Lava Jato,” ela disse.
Em meio à boêmia, me chamou a atenção algo que ela, ameaçadoramente: “Eles [a NSA] estiveram bastante ocupados grampeando meu gabinete e a Petrobrás.”
O Laboratório da Guerra Híbrida
Na manhã seguinte, sob a fabulosa iluminação do cerrado, que me lembra as planícies da Ásia Central, tirei um momento de reflexão diante do prédio do Supremo Tribunal Federal (“todos os juízes comprados e pagos,” confirmado por diversas fontes) e de um Congresso prostrado diante dos lobistas BBB (“Bíblia, Bife, Bala”). Mas, após passagem pelo Rio, meu objetivo era visitar a Macrilândia em Buenos Aires, para ver como o homem de negócios, Bolsonaro argentino –com melhor educação – tinha destruído uma nação.
Quatro anos de Liberalismo hardcore funcionou com um encanto (envenenado). Assim como Bolsonaro na Amazônia: colocou fogo em tudo na Argentina. Nada menos que 35% da população argentina era agora completamente pobre. Vitória dos suspeitos de sempre: bancos, acionistas de empresas privatizadas, o grupo El Clarin – rei da mídia “oficialista”. Eliminar a fome se tornou a principal promessa eleitoral de Alberto Fernandez/Cristina Kirchner, prontos para vencer as eleições de outubro. Não consegui conversar com a ex-Presidenta Cristina– uma amiga próxima da Dilma – porque ela estava em campanha na Patagônia.
Andando pelas ruas de Palermo Soho, preferi conversar com as pessoas, ao invés da “oficialidade”, sobre uma miríade de declínios do “terrorismo econômico” do Macri – que culminou em um empréstimo humilhante, impagável do FMI. Pontuando minha caminhada estavam todas aquelas livrarias: Buenos Aires tem o maior número de livrarias por habitante no mundo. Eu peguei literatura de valor inestimável, relançamentos inescapáveis do poeta argentino Jorge Luis Borges, e tudo, desde a história do Peronismo até coleção de entrevistas do Axel Kiciloff, ministro da economia de Cristina e favorito para se tornar o próximo governador da província de Buenos Aires.
E foi então que uma idéia me atingiu. Emprestando de Keats, conforme uma releitura de Borges : Seria isso uma visão ou um sonho acordado? Ao invés, era um pesadelo vivo. Eu havia sido transportado das ruínas de Angkor para um labirinto urbano, borgeniano de desespero.
Voltei a São Paulo para o debate geopolítico com o ministro das relações exteriores do governo Lula, Celso Amorim, o Sergey Lavrov brasileiro (eles são amigos próximos, além de terem “inventado” os BRICS). Tivemos um almoço fabuloso no Nino’s, na mesma vizinhança na qual cresci durante a década de 60 – completa com a cacio e Pepe, melhor que qualquer coisa que possa ser encontrada em Roma. À noite, eu tinha que estar viajando novamente – Pergunte pra Alice!– a América do Sul se metamorfoseando de volta no sudeste asiático.
Eu finalmente obtive minha resposta para a reunião secreta– justiça poética – de volta ao Oriente budista, do brilhante antropologista Piero Leirner, que explicou muito bem o que os militares estavam planejando em Brasília. Para eles, tudo se resume à geossegurança, nada de geoeconomia ou geopolítica. Bolsonaro está registrado defendendo a abertura da Amazônia em chamas para os gigantes da mineração dos EUA. Os militares– constitucionalmente responsáveis pela soberania do Brasil – não se importariam, contanto que eles supervisionassem os procedimentos.
Enquanto acadêmicos de São Paulo debatem calorosamente, o Brasil parece estar agora configurado como o laboratório global extremo para novas formas de neoliberalismo autoritário. Na verdade, é pior que isso: com a Democracia liberal ocidental reduzida a uma mera casca, vejo o Brasil como o laboratório extremo da Guerra Híbrida. A um Lula em processo de Mandelização pode até ser “permitido” sua liberdade ou ser colocado em prisão domiciliar. Porque, ao final, o militarismo sub-imperial, assim como a voz de seus mestres em Washington conseguirão o que querem.
E se isso não for realmente um sonho ruim? Como Borges escreveu: “Nós sonhamos [o mundo] resistente, misterioso, visível, ubíquo no espaço e firme no tempo; mas aceitamos em sua arquitetura tênues e eternos interstícios de desrazão para saber que é falso.”
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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