A cidade de São Paulo e os eventos climáticos extremos
"Aí vem a pergunta: como a cidade de São Paulo, com seus inúmeros problemas sociais e ambientais, irá responder a esses desafios?", questiona
Recentemente, chuvas torrenciais devastaram o Rio Grande Sul, deixando centenas de mortos e desaparecidos, além de desabrigados e cidades alagadas, incluindo a capital, Porto Alegre, que ficou sitiada pelas águas por semanas. Em dez dias choveu na região o equivalente a cinco meses da média histórica: trata-se de um evento climático extremo, fenômeno que vem se tornando habitual no mundo todo, e cuja origem está nas mudanças climáticas.
Na cidade de São Paulo, em 03 de novembro do ano passado, um temporal com ventos de 100 km/h provocou a queda de árvores e afetou o fornecimento de energia elétrica, deixando mais de 2 milhões de endereços sem luz. A regularização demorou por volta de oito dias, revelando a incapacidade da concessionária de energia (ENEL) em resolver rapidamente o problema e evidenciando a falácia da privatização de serviços essenciais.
Nem bem a cidade de São Paulo se refez dessa situação, uma onda calor atípica atingiu o país, elevando as temperaturas a mais de 40 graus. Situação que, de acordo com especialistas, é causada pelo fenômeno El Niño, ligado ao aquecimento anômalo das águas do Oceano Pacífico. A causa desse agravamento do El Niño está diretamente ligada ao aquecimento global.
Mudanças climáticas são alterações de longo prazo nos padrões de temperatura e clima. Apesar de poderem ser naturais, é consenso na comunidade científica que hoje colhemos o resultado de mais de dois séculos de desenvolvimento industrial baseado na queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás). Esta queima gera emissões de gases que agem como um grande cobertor em torno da Terra, retendo o calor do sol e aumentando as temperaturas.
A Floresta Amazônica vinha desempenhando papel decisivo na absorção de CO², contribuindo para atenuar o clima do planeta. Contudo, o desmatamento e os incêndios (em grande parte criminosos) agravados pelas mudanças climáticas têm reduzido esta capacidade.
As mudanças climáticas são responsáveis pelos eventos climáticos extremos: inundações, tempestades catastróficas, secas intensas, escassez de água, incêndios severos, aumento do nível do mar, derretimento do gelo polar e declínio da biodiversidade. A solução passa pelos tratados e protocolos internacionais, como o Acordo de Paris, cujo objetivo é a redução das emissões provenientes da queima de combustíveis fósseis. Contudo, grandes dificuldades ocorrem, em especial pela oposição dos EUA e da poderosa indústria do petróleo. Nesse contexto, as políticas de Estado serão decisivas para o futuro da humanidade.
Aí vem a pergunta: como a cidade de São Paulo, com seus inúmeros problemas sociais e ambientais, irá responder a esses desafios?
Primeiramente, precisamos contribuir para efetivar políticas de redução da emissão da queima de combustíveis fósseis, ampliar a arborização e a permeabilidade do solo e credenciar a cidade como um polo de referência das soluções urbanas frente às mudanças climáticas.
Em seguida, buscar atenuar os efeitos das alterações do clima, particularmente para as populações mais vulneráveis.
O apagão de 2023, agravado pelo descaso e ineficiência da ENEL, ocorreu em grande parte pela demora na adoção de políticas de aterramento da fiação, exposta à queda de árvores e outros objetos. O aterramento da rede aérea é uma iniciativa de alto custo, estimada em cerca de 80 bilhões de Reais, mas que já poderia estar em curso se esse processo tivesse sido iniciado há 20 ou 30 anos. Hoje, pagamos o preço pela ausência de planejamento e avidez de lucros rápidos no setor.
Árvores são fundamentais na vida urbana, ainda mais em tempos de elevação da temperatura e da necessidade de permeabilização do solo. No entanto, a cobertura vegetal da cidade é extremamente desigual, com áreas nobres servidas por praças, parques e calçadas dotadas de árvores frondosas, enquanto as periferias são extensamente desmatadas. Assim, é preciso planejar uma ampliação arbórea com espécies adequadas para a cena urbana e para cada região, de modo a evitar acidentes com espécies nocivas, quedas de galhos e troncos apodrecidos. É nossa meta a expansão da arborização segura, tendo por prioridade as regiões de menor presença de áreas permeáveis e de baixa presença arbórea.
Também os efeitos do calor intenso tornam gritantes as diferenças entre a cidade consolidada e a cidade periférica. Além de arborizadas, as moradias dos bairros centrais possuem mais janelas e espaço interno, enquanto as moradias periféricas são densamente povoadas, com falta de espaço interno e entre as casas para escoamento do ar quente, com poucas janelas e telhados muitas vezes metálicos, facilitando a retenção de calor, além de conviverem com a constante falta de água e ausência de saneamento básico.
Nosso sistema de drenagem é deficitário, haja vista os problemas anuais de alagamentos na várzea do Tietê, inclusive nos bairros consolidados. A cidade possui um histórico de 92 ocorrências de inundações por ano, de acordo com dados do Mapa Digital da Cidade. Como na zona leste, particularmente em Itaquera, São Miguel e região do Jardim Romano, conhecida como Pantanal. Além da proliferação de doenças, pois são águas que em sua maioria são contaminadas por esgotos não tratados, chuvas de alta intensidade podem comprometer a mobilidade, a começar pelas marginais e avenidas de fundo de vale, e deslizamentos de encostas.
O mapeamento mais recente na cidade de São Paulo constatou a existência de 495 áreas de deslizamentos, com 1.325 setores divididos em graus de risco: baixo, médio, alto e muito alto (R1 a R4). Esses setores ocupam 1.725,34 hectares, o correspondente a aproximadamente 1.600 campos de futebol. Neles, há 175.600 moradias em risco (R1 a R4), sendo 561 classificadas como de risco alto (R3) e muito alto (R4). Se considerarmos um média de seis pessoas por moradia termos um universo aproximado de 1 milhão de pessoas, incluindo idosos e crianças, em risco. As áreas de risco usualmente se encontram nas regiões periféricas, como o Jardim Ângela, na zona sul, que possui a maior incidência dessas áreas por hectare na cidade, com registros históricos de 13 ocorrências de deslizamentos.
Podemos em um curto espaço de tempo, conviver com alagamentos generalizados, famílias forçadas a deixar suas casas, além de deslizamentos e queda de energia. A cidade está preparada para enfrentar essa conjunção de eventos?
É preciso um esforço enorme para atualizar os mapeamentos de risco existentes e objetivar soluções habitacionais seguras de médio prazo. Como, por exemplo, a Lei Federal 11.888, de 24 de dezembro de 2008, que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitações de interesse social.
As ondas de calor também atingirão escolas, equipamentos de saúde, transporte coletivo, ambientes de trabalho, e as populações em situação de rua. As políticas de assistência social precisarão de um salto qualitativo. Populações em situação de rua devem ser a prioridade. Habitações, centros de acolhida, banheiros e chuveiros públicos, farta distribuição de água e alimentos, entre outras medidas. A assistência para as populações que habitam moradias precárias deve ser ampliada. Distribuição de ventiladores e equipamentos de ar-condicionado e políticas de redução das contas de energia podem ser alternativas paliativas enquanto soluções estruturantes são desenvolvidas. As Defesas Civis precisam estar preparadas para as eventualidades de alagamentos e deslizamentos de encostas, constituindo, desde já, espaços dignos e planejados para acolhimento emergencial das famílias em cada região.
As ondas de calor afetam também a saúde. Desidratação, câimbras, insolação, agravamento de doenças respiratórias, cardíacas, renais e outras, são algumas enfermidades que podem se ampliar em situações de calor extremo. Gestantes, pessoas em situação de rua, trabalhadores ao ar livre, crianças, idosos e pessoas com doenças crônicas são os mais vulneráveis.
Tornar a cidade e por extensão toda a região metropolitana ajustada para os eventos extremos é tarefa inadiável. Não se trata de preparar a cidade para um futuro incerto. Esse futuro já chegou. É preciso consertar o veículo com ele em movimento. Serão necessários bilhões e bilhões em investimentos a curto, médio e longo prazo. Isso requer planejamento e prioridades. Fundamental também é uma política global que almeje corresponsabilidade dos mais ricos para com as tragédias urbanas. O aquecimento global é fruto de 200 anos de industrialização e sua consequente emissão de gases. Os maiores responsáveis por essas emissões na história são os países da União Europeia e os EUA. Contudo, quem paga a conta mais alta são os países mais pobres e suas cidades. O tempo não para. Quanto antes começarmos a agir, melhor. É preciso, portanto, cobrar sua contraparte dos mais ricos.
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*Luciano Barbosa, advogado, tesoureiro licenciado do Sindicato das Advogadas e Advogados do Estado de São Paulo, secretário de políticas públicas do Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores de São Paulo e Conselheiro do Grupo Pró-Vitima.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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