A culpa não é da chuva
Algumas propostas colocadas há muito tempo, como a prioridade no orçamento de programas habitacionais para famílias em áreas de risco, precisam sair do papel
Diante da catástrofe que se abateu sobre o litoral paulista durante o carnaval, castigando mais intensamente sua porção norte, sobretudo o município de São Sebastião, é natural que busquemos explicações. Os volumes pluviométricos foram de fato brutais e, em alguns casos, inéditos: em Bertioga e São Sebastião, por exemplo, as precipitações ultrapassaram 600 mm em apenas 7 horas, o maior volume já registrado na história.
Assim como as ocorrências que verificamos no início do ano passado na Bahia e em Minas Gerais, como também aconteceu anteriormente no Rio de Janeiro e em outros estados, esses fenômenos estão diretamente ligados as mudanças climáticas. São alterações que se manifestam nos chamados “extremos climáticos”, ocorrências meteorológicas de grandes proporções caracterizadas por altíssimas ou baixíssimas temperaturas; secas agudas e duradouras e chuvas intensas, entre outros fatores.
Ainda que os cientistas e ambientalistas venham alertando sobre o aumento na frequência e intensidade desses fenômenos a pelo menos 3 décadas, o mundo avançou muito pouco no enfrentamento às Emergências Climáticas. Trocando em miúdos: a humanidade não se preparou adequadamente para um grave problema que já estava anunciado e que já está acontecendo. Pior, seguimos utilizando o velho modelo de “desenvolvimento”, baseado em energia fóssil, cometendo os mesmos erros de sempre.
As nossas cidades seguem canalizando ou retificando seus rios e córregos, enchendo os fundos de vale de avenidas e construções de todo tipo. Além disso, encostas e áreas de mananciais são frequentemente ocupadas pela parcela mais pobre da população, geralmente expulsa das regiões centrais pela especulação imobiliária. Neste cenário, quando ocorrem chuvas fortes, os alagamentos e deslizamentos são as consequências naturais inevitáveis.
Diante do aumento expressivo dos “desastres naturais” (denominação que considero imprópria) e dos elevadíssimos custos para reparar os danos provocados por eles, durante a gestão da presidenta Dilma Rousseff, o Governo Federal criou, em 2011, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). O Centro foi lançado naquele ano após a catástrofe que levou a 947 mortes e 300 desaparecidos na Região Serrana do Rio de Janeiro.
Na manhã da quinta-feira 16 de fevereiro deste ano, o Cemaden havia alertado a Defesa Civil de São Paulo e dos municípios envolvidos, sobre os riscos de grandes precipitações com potencial de causar danos relevantes. O alerta citou inclusive a Vila Sahy, localizada no sertão da Barra do Sahy, em São Sebastião, como região de alto risco. Infelizmente cerca de 72 horas após os alertas, a população já começava a contar as vítimas, dentre elas dezenas de mortos.
Entre tantas outras deficiências, infelizmente não temos no Brasil a cultura da prevenção, nem para desastres naturais ou outras ocorrências. Lembro por exemplo, do incêndio na Boate Kiss, que vitimou 242 jovens em Santa Maria, no Rio Grande do Sul há exatos 10 anos atrás. Quantos estabelecimentos, até em piores condições do que aquela boate, seguiram funcionando “normalmente” Brasil afora, mesmo após a tragédia? E as embarcações que seguem trafegando pelas águas com excesso de passageiros, sem equipamentos de segurança, mesmo após inúmeros acidentes com mortes? E os veículos que seguem circulando quando deveriam ter sido recolhidos há tempos, por falta de condições?
Voltemos ao Litoral Norte de São Paulo.
O presidente Lula visitou São Sebastião na segunda-feira, um dia após a tragédia. Se reuniu com o prefeito Felipe Augusto e o governador Tarcísio de Freitas, que se dirigiu à cidade pela manhã do domingo e lá permaneceu, ajudando o chefe do executivo municipal a tomar as medidas necessárias de socorro às vítimas. Na ocasião, o presidente da República se solidarizou com os atingidos e anunciou que o governo Federal, além de apoio imediato em recursos financeiros, materiais e de pessoal, desejava contribuir com soluções duradouras.
Entre as propostas apresentadas, o presidente sugeriu a construção de casas pelo programa Minha Casa Minha Vida, com o objetivo de atender à população que vive nas áreas de risco. Lula lembrou que essas áreas não poderiam ser ocupadas, e ponderou que a população pobre o faz não por opção, mas pela falta dela. Mais uma vez, nas redes sociais, aqui e ali, houve quem criticasse Lula, acusando-o de “fazer política”. Importante lembrar que a solução da maioria dos nossos problemas depende de decisões políticas, sem a qual, restaria apenas a barbárie.
Ainda em São Sebastião, o presidente enfatizou que o Brasil está desabituado a ver líderes com diferentes posicionamentos políticos se unirem por uma causa comum - nesse caso, o apoio e socorro às vítimas. Mesmo que a soma de esforços das três esferas de governo seja fundamental, sabemos dos desafios colocados, especialmente no que tange a resistência de setores da sociedade cujos interesses serão, certamente, contrariados.
Diante da tragédia recente na região costeira, algumas informações são importantes para reflexão. As prefeituras do litoral Norte paulista não são pobres, uma vez que, além de sua arrecadação ordinária, recebem royalties do petróleo. Conforme informações da Agência Nacional do Petróleo (ANP), só no ano de 2021, foram pagos R$ 548,9 milhões distribuídos para Ilhabela (R$296,5 milhões), São Sebastião (R$ 134,8 milhões), Caraguatatuba (R$ 105,2 milhões) e Ubatuba (R$ 12,3 milhões).
São Sebastião possui uma população fixa estimada em 90 mil habitantes, da qual grande parte reside em áreas de risco, como as que desmoronaram ou foram atingidas por enchentes nesse trágico fim de semana de carnaval. Além disso, há uma população flutuante, de pessoas residentes em outras cidades do estado, que frequentam as praias esporadicamente. Estas pessoas contribuem com a economia local, mas raramente utilizam dos serviços municipais como saúde e educação. Outro dado importante é que o IPTU, em média, é bastante superior ao de São Paulo, ou seja, o município tem recursos.
É importante lembrar que, recentemente, um conjunto de centenas de casas populares do programa Minha Casa Minha Vida foi impedido de ser construído por proprietários de imóveis de Maresias, bairro nobre de São Sebastião. Tais proprietários, usaram como argumento para impedir as obras, a preservação ambiental e a falta de saneamento básico na região. É curioso constatar que para erguer mansões e condomínios de mal gosto, destruíram a vegetação de Restinga (aquela que fica logo após a faixa inundável da areia das praias); aterraram cursos d’água, nascentes e várzeas, ou seja, desmataram à vontade.
Foi só após fazer todo esse estrago, que surgiu a preocupação com o esgotamento sanitário e a cobertura vegetal. Em outras palavras, quando é para atender aos interesses da especulação imobiliária e os caprichos da turma da bufunfa, tudo pode, mas quando é para atender a um direito elementar das faxineiras; cozinheiras; jardineiros; pescadores; sorveteiros; trabalhadores que vendem coco, cerveja e caipirinha na praia, ou dos caiçaras que ainda resistem e tantos outros, aí aparece todo tipo de argumento contrário. É evidente que as áreas verdes devem ser preservadas e óbvio que todos queremos saneamento, assim como é óbvio que existe uma disputa absolutamente desigual. Mais uma!
A regra no litoral, como na maioria das cidades brasileiras, é jamais arranhar os caprichos das elites econômicas. Para esta gente, permitir a “desvalorização” da mansão ao construir casa de pobre no entorno, ou na vista da madame e do doutor, é crime hediondo. Vale destacar que a construção de prédios é proibida em todos os bairros São Sebastião, não por falta de pressão da especulação imobiliária, mas graças à resistência da população local. Não fosse essa resistência, a paisagem da região certamente já estaria repleta de prédios, adensando o município e sombreando as praias, como ocorre em Balneário Camboriú (SC) por exemplo, que para remediar a situação, teve que triplicar a largura da sua estreita faixa de areia.
Não se trata de apontar culpados, o que deve ser feito por inquéritos abertos pelo Ministério Público ou pela Polícia Civil. O momento exige a busca de alternativas e soluções. Não há porém, como deixar de observar as profundas contradições de todo esse processo, cuja superação é imprescindível, caso haja realmente o desejo de mudar a terrível situação em que nos encontramos. Nesse momento é dever de todos somar esforços para socorrer as famílias que perderam tudo, inclusive parentes, amigos e vizinhos que se foram. Em seguida, é imperativo elaborar e executar projetos voltados a soluções duradouras.
Algumas propostas colocadas há muito tempo, como a prioridade no orçamento público de programas habitacionais destinados às famílias em áreas de risco, precisam sair do papel. Simultaneamente, as áreas sujeitas a deslizamento, alagamento e outras ocorrências, devem ser congeladas para ocupações e destinadas a recomposição da sua vegetação original. O saneamento pleno, com a implantação de redes de fornecimento de água, coleta e tratamento dos esgotos, além de sistemas de drenagem pluvial, coleta seletiva e eficiente de resíduos sólidos, também é indispensável.
A implantação de programas de fomento ao turismo, à culinária e de estímulo ao empreendedorismo local, também são fundamentais para a geração de trabalho e renda para a população local. O que não podemos é tratar tudo isso simplesmente como "coisas da natureza" e esquecermos dessa catástrofe para voltarmos a nos preocupar quando estivermos chorando as vítimas da próxima.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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