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    Luiz Marques

    Professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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    A democracia cativa

    A reforma moral e cultural do país depende da luta ideológica pela emancipação das consciências subjugadas na democracia cativa

    Guardas oficiais na Praça dos Três Poderes, Brasília, DF (Foto: ABR)

    Do A Terra É Redonda

    O cientista político italiano Giovanni Sartori, no livro Teoria da democracia, diz: “A eficiência da democracia depende antes de tudo e sobretudo da eficiência e da habilidade de seus dirigentes”. O entendimento assenta-se na presumível minoridade intelectual do povo. O cidadão é “incompetente” para ditar rumos à cidade. Depreende-se então que a “profissionalização” é inevitável na sociedade. A política se converte, de vocação, em “carreira” com aposentadoria baseada no tempo de mandato. Tal é a matriz teórica da representação ocidental; excetuando a Suécia, onde os deputados não têm assessores, dormem em quitinetes, pagam pelo cafezinho e não podem aumentar os seus salários.

    A Queda do Muro de Berlim cimenta, de um lado, o liberalismo político e, de outro, a economia de mercado na condição de teto intransponível ao progresso humano. Na terminologia popularizada depois de 1989, esse é o “fim da história”. Uma conclusão precipitada, tendo em vista a ascensão da extrema direita que aproveita as oportunidades no Estado de direito para colonizar a democracia e impor um regime de exceção. A fórceps, aos moldes da desventura argentina, o “anarcocapitalismo” (o prefixo é injusto) procura garantir uma desregulamentação estatal para maximizar a acumulação.

    A infraestrutura sacraliza o livre mercado e o laissez-faire; porém, a superestrutura ainda pulsa. Se a economia está congelada; o futuro se mantém em suspenso na política. A seleção dos “melhores” para ocupar os postos de destaque no Executivo e no Legislativo faz a roda da incerteza girar. As rivalidades ideológicas entre competidores a cada quadriênio não arrefeceram; forjaram inimigos.

    Na acepção de Robert Dahl, a “poliarquia” (governo de muitos) explica a autonomia da política. “A democracia é um sistema em que os dirigentes escutam, mais ou menos, o desejo dos liderados e pode funcionar com um nível fraco de participação dos cidadãos”. Não supõe uma arregimentação forte. Aliás, quanto menos intromissão houver, mais facilidade as “elites” têm de deliberar. Mesmo a inspiradora democracia participativa das ágoras em Atenas, no século V a.C., abrange apenas uma pequena minoria da população (demos) em causa própria. Entre nós, a situação guarda semelhanças.

    Em A democracia e seus críticos, para a Conference for the Study of Political Thought uma obra icônica da doutrina liberal e/ou democrática, o cientista político estadunidense avalia a democracia como “um processo sem igual para a tomada de decisões coletivas vinculativas”. Uma entidade com laços “no conjunto das instituições e práticas políticas, um corpo particular de direitos, uma ordem socioeconômica, um sistema que assegura certos resultados vantajosos”. O problema reside em que a “substância” é apropriada por uns poucos, alertam os atentos defensores do “governo do povo”.

    Via de regra, só indivíduos politicamente ativos são consultados sobre as decisões, com o agravante de pertencer às categorias sociais privilegiadas. A maioria queda na passividade, o que vira uma espécie de “calcanhar de Aquiles” do modelo – a brecha para o questionamento de sua legitimidade. Vide os juros de lesa-pátria da Taxa Selic do Banco Central, no Brasil. Nos escritórios da avenida Brigadeiro Faria Lima, o poderoso epicentro comercial e financeiro de São Paulo, os bacanas sabem o porquê. A trama é urdida na mesa, aos olhos de velhos comensais. Os “segredos de Estado” são um tabu para as comunidades periféricas. A desinformação é consumida pelos pobres e remediados.

    A perfeição é uma meta

    No quarentão Partido dos Trabalhadores, os lutadores por mudanças na organização social eram assertivos – “trabalhador não vota em patrão”. No entanto, a agrura que desconjunta a constelação do trabalho na produção econômica e a importância assumida por temas ligados mais à reprodução social acarretam novas incumbências: o combate aos efeitos da necropolítica, a disseminação do desemprego, o desalento, a fome. O discurso absorve a linguagem abstrata para se aproximar dos setores sem experiência sindical e identidade classista. Atendo-se à propaganda no rádio e televisão, o PT não evoca a radicalidade renovadora das origens, conquanto integre a trincheira resiliente dos oprimidos e dos explorados. O vermelho recebe nuances de outras cores, necessidades e desafios.

    Entre as sociedades democráticas, com certeza, os Estados Unidos são mestres na arte de perpetuar as classes dirigentes no topo da pirâmide. Os embates presidenciais são montados para impedir o sufrágio universal, desde a saga dos líderes das colônias (seus “pais fundadores”) para elaborar a Declaração de Independência em 1776 e a Constituição em 1787. Um filtro elitista unge ou recusa os “aspirantes” à Casa Branca, nos Partidos Democrata e Republicano. Ao barrar os aventureiros, a vigilância dá estabilidade interna para a hegemonia imperialista. Donald Trump fura o bloqueio.

    A derrota de Hillary Clinton, em 2018, apesar de haver conquistado as cédulas majoritárias, deve-se à aritmética confederativa dos delegados nas prévias. O princípio de uma cabeça, um voto não vale na grande potência do Norte para auferir a vontade geral; por paradoxal e aristocrático que isso soe em uma nação definida como República. A paradigmática (sic) democracia falha em um quesito básico e consensual. Qual a canção de Gilberto Gil, Meio-de-campo: “A perfeição é uma meta / defendida pelo goleiro / que joga na seleção / e eu não sou Pelé / se muito for / eu sou um Tostão”.

    Os marqueteiros conhecem a arquitetura do poder e os mecanismos decisórios modernos. O roteiro acha-se no romance de Tomasi di Lampedusa; tido o primeiro best-seller mundial, com 250.000 exemplares vendidos nos meses seguintes à edição, em 1958. O atual figurino do marketing político reforça a ideia de “competência” (técnica), de “eficácia” (rendimento), de “liderança” (persuasão), de “habilidade” (diálogo amplo) e de “dissimulação” como se aprende com a leitura de O leopardo.

    Os valores destacados coincidem com o que se exige do gerente de loja em um Shopping center, na entrevista para contratação. O mercado prognostica inclusive o perfil psicossocial a ser selecionado para a arena de disputa política. Vultuosos recursos potencializam o sucesso nas urnas, não uma compreensão programática. A polissemia dos sentidos subjaz na repetição de conceitos idênticos. As siglas parecem oferecer sempre mais do mesmo. O lusco-fusco oculta a alteridade. Where’s Wally?

    Retrocesso civilizacional

    Todos compartilham os ideais do “desenvolvimento”, da “segurança”, da “educação”, da “saúde”, do “aperfeiçoamento dos serviços públicos”, da “geração de empregos com distribuição de renda”, da “liberdade de imprensa”, dos “preceitos constitucionais”. Na democracia de massas, as palavras se adaptam a interpretações contraditórias. Diferenciações no conteúdo são domesticadas na forma. Deliberadamente a finalidade não é propiciar qualquer discernimento cognitivo; é realimentar a pluralidade de manifestações que por caminhos transversos, ou não, deixem intacto o status quo.

    Para o extremista, a solução é travestir-se de outsider sistêmico, romper a civilidade e desqualificar a circunspeção dos oponentes sob a aparente normalidade institucional, ensina Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, em O imbecil coletivo. Ao exacerbar as emoções com trejeitos e deboches, os critérios racionais de comparação pegam carona no foguete de Elon Musk, e vão para o espaço. No impeachment da presidenta honesta, o miliciano homenageia um torturador da ditadura militar, “o terror de Dilma Rousseff”. O acinte testemunha o grau de degeneração ética a que levou o golpe.

    Hoje, a convite indecente da mídia corporativa, o coach espetaculariza momentos eleitorais; zera os projetos partidários e, impune, desfila a meritocracia no cativeiro nevrálgico da política brasileira. Prevalece o gozo sádico. A dignidade é redimida na cadeirada, que une a torcida do Corinthians e a do Palmeiras na comemoração uníssona de um gol, literalmente, “de placa”. A efeméride recuperou o respeito ao protocolo do debate no confronto de posições. Ninguém frequenta igreja, sem rezar.

    Para o progressista, a solução está em superar a percepção empírica para transcender a armadilha que confina a crítica à clausura do establishment. Os postulantes a “gestores”, para usar o léxico neoliberal que anula a dimensão política das escolhas, empatam nas intenções; o horário eleitoral desempata. A decifração da demagogia ideologiza e politiza o enfrentamento, contrapondo a sua substância autoritária e totalitária ao princípio organizativo democrático de sociedade e cidade.

    Não à toa, em 2016, o Dictionary Oxford indicou a “pós-verdade” como o símbolo de nossa era. O jornalista britânico Matthew D’Ancona classifica a “guerra contra os fatos” e “a difusão contagiosa do relativismo pernicioso disfarçado de ceticismo legítimo” como provas do “valor declinante da verdade como moeda de reserva”. O retrocesso civilizacional navega na crise da democracia. Que a derrubada da estátua do negacionismo não demore, e as imagens invadam os bunkers da reação, os tradicionais e os digitais. “E a chuva amanhã corra de baixo para cima”, profetiza o poeta alemão.

    Democratizar o processo

    No Rio Grande do Sul, o Conselho de Reconstrução formado pelo governador após as enchentes exclui as associações ambientalistas. O prefeito de Porto Alegre contrata empresas estrangeiras (da Holanda, no caso) para estudos preventivos cujas respostas já foram dadas pela inteligência local. A submissão ao eurocentrismo é vergonhosa. O ditado se confirma, “santo de casa não faz milagre”. A decolonização tem uma longa estrada a percorrer, para que a brasilidade respire autodeterminação.

    Para “eles”, Eduardo Leite e Sebastião Melo respectivamente, não importa a opinião dos moradores mergulhados nos bairros do sinistro; ou a expertise dos funcionários do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), extinto para acelerar a privatização do saneamento básico; ou o conhecimento do Instituto de Pesquisas Hídricas (IPH/UFRGS) sobre o Guaíba (em tupi-guarani, Gua-ybe é a “baia de todas as águas”). O que importa é servir o capital financeiro, imobiliário e agrícola. Não militam pela abolição das hierarquias, mas por um posicionamento superior na escala social. A intervenção modelar do governo federal sai em notas de rodapé obscuras, longe das manchetes e dos aplausos.

    Para “nós”, em contrapartida, o povo não deve ser tratado como um objeto ou uma massa inepta, senão sujeito das ações reconstrutivas. O empoderamento popular não nega a ciência e a técnica; e sim incorpora-as ao exercício político da soberania dos comuns, que rejeita transformar todas, todos e todes em mercadorias. Sem a participação social, a felicidade pública é uma caricatura. A pedra de toque é a democratização do processo de decisão para desprivatizar o poder e derrotar a concepção de governabilidade, equiparada a um bisturi para cortar a alma e administrar pessoas como coisas.

    Os responsáveis pela destruição patrimonial e as sequelas psíquicas do suplício são poupados da execração merecida, por interesse das elites vira-latas que, de outra maneira, fariam um escândalo da tragédia que soma duzentos óbitos nos municípios gaúchos, afora os corpos desaparecidos. A cobertura midiática da hecatombe climática nunca menciona os mortos. Em silêncio, os inocentes esperam por justiça. A omissão de notícias é a variante sutil da manipulação grosseira e cínica.

    As contribuições antiecológicas para o desequilíbrio ambiental e a eliminação dos biomas são empurradas para trás da fumaça tóxica, do jornalismo venal, para não atrapalhar a alienação. As finanças, as megaconstrutoras e o agronegócio extrativista são donos das informações, e das fake news. A cumplicidade dos governantes é uma vergonha. A reforma moral e cultural do país depende da luta ideológica pela emancipação das consciências subjugadas e subestimadas pelo pensamento conservador, na democracia cativa. O lema do Iluminismo cobra responsabilidades – “Ouse saber”.

    No “pseudomundo”, a unidade do real é fragmentada em esferas paralelas. O mentiroso mente para si próprio e se orgulha de uma Weltanschauung (cosmovisão) invertida, que ora destila o ódio, ora a sedução extorsiva da miséria. Vê-se na loteria do “Familião”, no domingo global, que consagra um fetiche para os indivíduos se libertarem da pobreza, o dinheiro; não o engajamento em movimento social ou partido político. O “valor como espetáculo” exprime a pura essência do rentismo, o não trabalho. É hora de botar o bloco na rua, com garra e esperança. O lema agora é – “Ouse vencer”.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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