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    Armando Boito

    Armando Boito é professor titular de Ciência Política da Unicamp e autor, entre outros livros, de Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT

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    A democracia em pedaços

    "Os militares foram avançando cuidadosa e sistematicamente. Hoje, estão no governo com o grupo fascista e ameaçam abertamente a democracia", escreve o professor de Ciência Polícia da Unicamp Armando Boito

    (Foto: Marcos Corrêa/PR)

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    Por Armando Boito 

    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    A democracia brasileira encontra-se seriamente ameaçada. O campo autoritário, composto pela ala militar e pela ala fascista do Governo Bolsonaro, está forte e, apesar de pressionado pelo Superior Tribunal Federal (STF) durante este mês de maio, ainda detém a iniciativa política. A resistência ao fascismo, composta pelo campo liberal conservador e pelo campo democrático e popular está fraca, dividida e na defensiva. Aproximamo-nos perigosamente, neste mês de maio de 2020, de uma ditadura fascista.

    Essa situação política é muito mais complexa do que aquela que conhecíamos sob os governos encabeçados pelo PT. Tínhamos uma polarização partidária moderada que opunha na cena política o PT ao PSDB e que girava basicamente em torno da definição da política econômica e social – neoliberalismo ou neodesenvolvimentismo? Nenhum desses dois campos era homogêneo, congregavam classes e de frações de classe com interesses conflitantes, mas, a despeito desse fato, era a divisão fundamental e cada força tratava de acomodar-se, mesmo que criticamente, de um lado ou de outro da linha que dividia a política nacional.

    Desde a crise do impeachment, surgiram conflitos novos, outros, até então fracos, ganharam nova dimensão, e todos eles se entrecruzaram com os conflitos antigos que, embora deslocados para um plano secundário, permanecem ativos no processo político. Na situação atual, os interesses das diversas forças sociais em presença possuem múltiplas facetas que ora aproximam tais forças, ora as repelem e, em consequência, a linha que as divide tornou-se muito móvel e flexível.

    A polarização partidária moderada desapareceu, os partidos tradicionais da burguesia entraram em crise, o micro Partido Social Liberal (PSL) tornou-se grande graças ao tsunami eleitoral em 2018, o sistema partidário tornou-se fluido e as instituições do Estado tornaram-se os atores centrais da cena política. No sistema judiciário nasceu um partido em sentido lato, a Lava-Jato; os militares, cuja atuação era difusa, discreta e puramente defensiva durante os governos do PT, tornaram-se um grupo politicamente organizado e são força destacada no governo e o Superior Tribunal Federal (STF) protagoniza conflitos agudos com o Executivo Federal.

    O golpe de 2016 e o nascimento do movimento fascista [1]

    Até 2015, a política brasileira apresentava uma divisão de campos relativamente simples. Tínhamos, de um lado, o campo neoliberal mais ortodoxo, e, de outro, o campo neodesenvolvimentista [2]. O primeiro representava os interesses do capital internacional, da fração da burguesia brasileira integrada a esse capital e se apoiava principalmente nos segmentos rico e remediado da classe média. Possuía, também, alguma base no movimento operário – basta lembrar as oscilações da Força Sindical. No plano partidário, o principal representante desse campo político era o PSDB.

    O segundo campo representava os interesses da grande burguesia interna brasileira, fração burguesa dependente do capital estrangeiro, mas que mantém conflitos moderados com esse capital. A política neodesenvolvimentista, de intervenção do Estado para estimular o crescimento econômico e proteger moderadamente o mercado interno atendia, prioritariamente, os interesses dessa fração. Tal política se apoiava em amplos setores das classes populares – operariado, campesinato, baixa classe média e, segmento muito importante, os trabalhadores da massa marginal [3].

    A intervenção do Estado no combate à pobreza e uma moderada expansão de direitos sociais contemplavam, ainda que secundariamente, os interesses desses segmentos populares. Formou-se, na verdade, uma frente política ampla e heterogênea que denominamos frente neodesenvolvimentista e essa frente era representada no plano partidário pelo PT. Essa divisão entre neoliberais ortodoxos e neodesenvolvimentistas não ameaçava o regime democrático e a percepção dominante era a de que a democracia estava consolidada no Brasil.

    Porém, em outubro de 2014, diante da quarta derrota consecutiva na eleição presidencial, o PSDB decidiu abandonar o jogo democrático e deu início a uma nova fase da ofensiva política restauradora do campo neoliberal, ofensiva que vinha em curso desde 2013. O afastamento da ex-presidente Dilma em maio de 2016 revelou debilidades da frente política neodesenvolvimentista, debilidades oriundas, de resto, de características de longa duração da política brasileira, e promoveu duas alterações de grande importância.

    Na cúpula da frente neodesenvolvimentista, a grande burguesia interna, tal qual ocorrera em outros momentos da história política do país, oscilou politicamente. Dividiu-se entre a adesão ao movimento golpista e uma posição de neutralidade prejudicial ao governo. Na base dessa mesma frente, o principal apoio social do lulismo – o enorme contingente de trabalhadores da massa marginal – não se mobilizou em defesa do governo de cuja política era também beneficiário. A relação populista dos governos do PT com esse segmento popular, relação que bloqueava a organização política desses trabalhadores, cobrou o seu preço no momento da crise – tampouco em 1964 ocorrera mobilização popular contra o golpe de Estado.

    Quanto ao resultado da deposição de Dilma, o Governo Temer, de um lado, e perseguindo os objetivos da força política dirigente do golpe do impeachment, mudou o rumo da política econômica, social e externa do Estado brasileiro e, de outro, representou uma situação de instabilidade na democracia brasileira. Temer passou a legislar prioritariamente para o capital internacional e para a fração burguesa integrada a esse capital – privatização com preferência para o capital estrangeiro, política de enxugamento do orçamento do BNDES, maior abertura comercial etc. Mas, legislou também para a grande burguesia interna, embora o fizesse principalmente, quando atacava, em nome de toda a classe burguesa, e não apenas de uma de suas frações, os interesses dos trabalhadores – reforma neoliberal do direito do trabalho, emenda constitucional do teto de gastos, projeto de reforma da previdência  e outras medidas.

    Com o Governo Temer, a democracia fora violada, entrou numa fase de instabilidade, mas predominava entre as forças golpistas a defesa de uma estratégia de “intervenção política cirúrgica”: uma ruptura da democracia que fosse pontual e limitada no tempo para, após a eleição de 2018 e contando com um presidente eleito, poder retomar a “normalidade democrática”. Tratava-se de partidos políticos, de meios de comunicação e de agentes do Judiciário que professavam um liberalismo político conservador.

    Embora tivessem assumido uma posição autoritária e golpista em 2016, ainda atribuíam algum valor à liberdade de expressão, ao direito de associação, à representação política pelo sufrágio etc. As coisas, porém, não se passaram como desejavam e previam esses liberais. Ocorreu que o movimento pela deposição do Governo Dilma organizado pela alta classe média adquiriu força e dinâmica próprias e as candidaturas do campo neoliberal ortodoxo, apesar de fortalecido pela adesão da maior parte da grande burguesia interna, essas candidaturas revelaram-se eleitoralmente inviáveis. A grande burguesia e os seus representantes liberais decidiram, então, pragmaticamente, abraçar a candidatura neofascista de Jair Bolsonaro e principalmente após o então candidato à presidência anunciar que entregaria o Ministério da Fazenda para o ultraliberal – estamos agora nos referindo ao liberalismo econômico – Paulo Guedes.

    O neofascismo e o seu candidato nasceram de duas fontes. Em primeiro lugar, da depuração do movimento reacionário da alta classe média pela deposição do Governo Dilma. Nem todas as organizações e grupos que empolgaram aquele movimento tomaram o caminho do fascismo, mas todos eles sem exceção apoiaram, movidos pelo antipetismo, o candidato fascista. O seu objetivo era barrar a modesta ascensão social das camadas populares que fora propiciada pelo neodesenvolvimentismo. Em segundo lugar, o neofascismo recebeu apoio, já no seu período inicial, dos proprietários de terra, principalmente das regiões Centro-Oeste e Sul, proprietários cujo principal objetivo era adquirir cobertura legal para se armarem e para tratarem, literalmente, a ferro e fogo os camponeses, indígenas e quilombolas.

    A grande burguesia chegou mais tarde. Até o início de 2018, mantivera-se afastada do movimento neofascista, mas em meados daquele ano decidiu adotá-lo. Bolsonaro foi então maquiado para se tornar um candidato como outro qualquer e venceu a eleição de 2018, graças também a outros fatores que não interessa analisar aqui. No segundo turno da eleição presidencial, dirigentes do PSDB asseguravam que o candidato fascista não representaria ameaça alguma ao regime democrático.

    Os fascistas, os militares e os liberais.

    Já no Governo Temer, um novo ator passou a atuar abertamente no processo político: o grupo militar. Num crescendo, esse grupo foi assumindo uma posição tutelar sobre as instituições democráticas. Recordemos dois marcos desse processo. O General Sergio Etchegoyen, Ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República durante o Governo Temer, dispensou a Dilma Rousseff, então afastada da presidência, mas ainda residindo no Palácio da Alvorada, o tratamento que se dispensa a um prisioneiro e, dois anos depois, o então Comandante do Exército, Gal. Eduardo Villas Bôas, fez, em 03 de abril de 2018, intervenção pública ordenando que o STF recusasse o habeas corpus solicitado pela defesa do ex-presidente Lula.

    Nesse meio tempo, os militares de alta patente, da ativa e da reserva, se pronunciaram impunemente sobre tudo o que lhes convinha para barrar a volta do Partido dos Trabalhadores ao governo. Como reagiram os liberais? Pouco tempo antes, com a abertura do processo de impeachment, eles já tinham recusado o resultado da eleição de 2014, lançado o voto popular no descrédito e minado, por consequência, a força da representação política que é arma de que dispõem os partidos e o Congresso Nacional diante das pretensões autoritárias da burocracia de Estado – civil ou militar.

    Agora, aceitaram também a escalada dos generais sobre a vida política, afinal barrar o PT era, segundo seus cálculos, fundamental para que o país pudesse voltar à dita “normalidade democrática”. Os militares foram, então, avançando cuidadosa e sistematicamente. Hoje, estão no governo com o grupo fascista e ameaçam abertamente a democracia.

    Examinemos mais de perto essas três forças e as relações entre elas. Primeiro, é necessário dizer que o fundamental do jogo político se dá entre elas porque a esquerda e a centro-esquerda foram jogadas para o fundo da cena política. Acumularam derrota atrás de derrota desde maio de 2016, estão fragilizadas e na defensiva. Em segundo lugar, destaque-se que fascistas, militares e liberais conservadores são três forças que representam interesses da burguesia.

    O fascismo é um caso especial. Não era burguês, nasceu de baixo para cima. Era um movimento de classe média que, mesmo contando com o apoio de setores da burguesia, mantinha uma dinâmica própria. Contudo, para chegar ao governo o fascismo teve – tal qual ocorrera com o fascismo original na Itália e na Alemanha – de se curvar politicamente diante da burguesia e passar a representar, uma vez no governo, os interesses da classe capitalista.

    No caso do fascismo original, Mussolini e Hitler cuidaram da implantação da hegemonia do grande capital na passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista [4]; no caso do Brasil, o Governo Bolsonaro, seguindo o que fora iniciado no Governo Temer, organiza a hegemonia do capital internacional e da fração da burguesia brasileira integrada a esse capital contando, até aqui, com a participação subordinada da grande burguesia interna nesse arranjo de poder.

    Em terceiro lugar, fascistas, militares e liberais conservadores defendem, a despeito de diferenças menores, a política econômica e social neoliberal e uma política externa de alinhamento passivo e doutrinário com os EUA. Há, então, uma unidade de fundo entre elas; mas, há também diferenças. As diferenças entre militares e fascistas são de menor importância, estão juntos no governo e agem de modo harmonioso. A diferença maior é entre a corrente política liberal conservadora e os dois grupos anteriores. Hoje, no Brasil, a oposição ao governo Bolsonaro é dirigida pela corrente burguesa liberal e isso tem consequências.

    O grupo fascista controla o governo. O seu objetivo estratégico é eliminar a esquerda do processo político nacional, objetivo que Bolsonaro proclamou durante a campanha e continua a proclamar e a perseguir uma vez no governo, objetivo de resto que é o que direciona esse grupo para a implantação de uma ditadura no Brasil. Esse grupo é composto pelo presidente Bolsonaro e pela maioria dos ministros civis – aí incluído Paulo Guedes que não está no governo por pragmatismo, mas, como mostram suas declarações e entrevistas, por partilhar as ideias fascistas do seu chefe. Nesse grupo, os ministros representam diferentes tendências ideológicas emanadas das bases fascistas.

    Damares Alves zela pela politização do patriarcalismo e Abraham Weintraub, lídimo representante da fração da classe média conquistada pelo autoritarismo, zela pela luta contra a esquerda e a plutocracia que, segundo ele, seriam aliadas [5]. Ele cultiva também o sentimento de repulsa àquilo que os fascistas denominam velha política, mas que é, na verdade, repulsa à política democrática. Ricardo Salles é o homem dos grandes proprietários, principalmente da Região Centro-Oeste, que aderiram ao fascismo antes mesmo que a grande burguesia financeira e internacional o fizesse.

    Sergio Moro não fazia parte desse grupo. Representava a classe média liberal e conservadora que, diante dos governos do PT, assumiu uma posição autoritária e golpista, mas sem se converter doutrinariamente ao autoritarismo – movimentos como o MBL e o Vem Pra Rua já tinham abandonado Bolsonaro antes mesmo de Sergio Moro deixar o governo. Bolsonaro dá a última palavra em todas as decisões governamentais. Demonstra determinação e não se intimida diante dos generais.

    Esses últimos, ao contrário, e apesar da grande influência no governo, não conseguiram impedir Bolsonaro de demitir os ministros da Saúde da Justiça e abaixaram a cabeça até mesmo diante das ofensas e deboches proferidos pelo mentor intelectual do grupo fascista, o escritor Olavo de Carvalho. Estão unidos ao grupo fascista pelo ódio à esquerda, que foi revigorado devido ao trabalho, sob o Governo Dilma, da Comissão Nacional da Verdade que pôs a nu o compromisso da instituição militar com a tortura, pela aspiração à implantação de um regime ditatorial no Brasil e, não menos importante, estão unidos aos fascistas também pelos escandalosos privilégios salariais e previdenciários que o Governo Bolsonaro lhes propiciou.

    O que afasta esse grupo do grupo fascista é algo adjetivo: o tipo de regime ditatorial que mais conviria ao Brasil. Os fascistas pleiteiam, como ocorreu com o fascismo original, uma ditadura com mobilização política e com luta cultural. Olavo de Carvalho tem um diagnóstico claro sobre a ditadura militar: teve méritos na economia, mas deixou o campo da cultura livre para a esquerda atuar, isto é, não criou um movimento cultural, que Carvalho chama eufemisticamente de conservador, para disputar a hegemonia com a esquerda. O resultado, continua o ideólogo fascista, foi que na primeira crise política do regime, a esquerda ocupou posição hegemônica nas instituições culturais e estabeleceu um longo reinado de 1994 a 2016 – esse ideólogo e seus seguidores consideram tanto o PSDB quanto o PT igualmente “de esquerda” ou “comunistas”.

    Ele e seu grupo almejam uma ditadura, mas não uma ditadura burocrática, sem mobilização política, que é o modelo que mais seduz os militares. Claro, podem, como antidemocráticos que são, chegar a um acordo até mesmo sobre um regime ditatorial misto, que combinasse elementos do fascismo com elementos da ditadura militar. Os conflitos entre esses dois grupos são, portanto, secundários, moderados e passíveis de acomodação.

    O conflito mais sério é aquele que opõe a corrente liberal conservadora ao governo composto por fascistas e por militares. Essa corrente representa, prioritariamente, o grande capital internacional e a fração da burguesia brasileira a ele integrada. Por que, então, surgem conflitos entre os representantes tradicionais dessa fração burguesa e o Governo Bolsonaro que, como argumentei, tem priorizado os interesses dessa mesma fração? Tanto no fascismo original, quanto no fascismo brasileiro, a burguesia não logra converter o movimento fascista em mero instrumento passivo dos seus desígnios. Bolsonaro tem de dar alguma satisfação à sua base social, isto é, aos caminhoneiros, ao pequeno comércio e a segmentos da classe média. A burguesia favoreceu a ascensão do fascismo ao poder, ganhou muito com isso, mas, agora, não logra controla-lo como o desejaria.

    A corrente liberal conservadora congrega partidos políticos, como o PSDB e o DEM, e a grande imprensa, como a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, e tem o controle de importantes instituições do Estado, a começar pelo STF. Poderiam objetar: como denominar liberais atores que participaram do golpe de 2016? O pensamento e a política liberal, de Stuart Mill a John Rawls, da UDN ao PSDB, nunca descartaram medidas autoritárias para prevenir o avanço do movimento operário e popular.

    Nos momentos de crise, o liberalismo aproxima-se do autoritarismo, mas sem aderir doutrinariamente a esse último e isso faz diferença. A corrente politicamente liberal conservadora, hoje, opõe-se ao grupo fascista na sua caminhada para implantar uma ditadura no Brasil. Ocorre que essa corrente é também, como já indicamos, neoliberal, ou seja, defende o Estado mínimo no terreno da economia.

    Ora, Paulo Guedes tem uma política econômica radicalmente neoliberal e, por isso, conta com o apoio da burguesia que deu o golpe de 2016 e da corrente liberal conservadora a ela ligada. Essa corrente sabe muito bem separar, quando criticam o Governo Bolsonaro, o joio do trigo. Poupam Paulo Guedes e concentram a crítica na figura do presidente. Estão divididos entre a resistência ao fascismo e o apoio à política econômica do governo fascista. Não parecem suficientemente decididos a brecar a ofensiva fascista.

    A ofensiva política fascista

    Uma percepção talvez dominante na imprensa realça unilateralmente as dificuldades atuais – agora, deste mês de maio – efetivamente enfrentadas pelo Governo Bolsonaro. Alguns concebem um suposto encurralamento do governo pelo STF e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Outros, mais comedidamente, falam da existência de um equilíbrio de forças entre as partes em conflito. Entendo que essas análises são equivocadas. Parece-me que o governo fascista está na ofensiva política rumo a uma ditadura, age com desenvoltura e rompe, sucessivamente, um limite após o outro. Testa as forças democráticas e não encontra resistência à altura. Essa ofensiva é visível no interior do governo, nas instituições do Estado e também no âmbito mais amplo da sociedade.

    Na análise das mudanças no Ministério da Saúde e da Justiça ocorridas em abril, a imprensa destacou unilateralmente o desgaste sofrido pelo governo. Sim, houve desgaste, mas houve também um aumento do controle do grupo fascista sobre a equipe governamental. Em primeiro lugar, graças às duas substituições no Ministério da Saúde, o governo pôde avançar na sua linha de ignorar a epidemia para manter – é o que imagina – a acumulação de capital. A militarização desse ministério foi uma decisão ousada que acabou com toda hesitação e ambiguidade da política nessa área que é, na atual conjuntura, uma área vital dos governos em todo o mundo. Impera agora inconteste a linha fascista diante da epidemia: morra quem tiver que morrer, mas a acumulação capitalista não pode parar. Em segundo lugar, com a substituição no Ministério da Justiça, o governo assumiu o controle da Polícia Federal (PF).

    O Diário Oficial da União publicou decisões que reestruturam os cargos de direção e o funcionamento da PF em todo o país e não somente no Rio de Janeiro. Além de colocar a si próprio, seus familiares, amigos e correligionários fora do alcance da Justiça, Bolsonaro dá mostras de que poderá converter a PF na sua polícia política – peça institucional imprescindível de uma ditadura fascista.

    Os governadores que implantaram a quarentena para enfrentar a epidemia estão sendo alvo de operações espalhafatosas com o suposto objetivo de combater a corrupção – entenda-se: a corrupção pode existir, mas o objetivo de tais operações é outro e não propriamente combatê-la. Esses governadores estão sendo encurralados. É certo que existem sinais contraditórios. A mesma PF está agindo duramente, desde o dia 27 de maio, na investigação do chamado “Gabinete do Ódio”, produtor bolsonarista de fake news. Parece que há resistência interna ao bolsonarismo no interior da PF. Nos próximos dias, teremos um quadro mais claro da situação.

    O fascismo está muito mais forte então no governo e nas instituições do Estado do que estava antes da epidemia. Manteve o apoio das Forças Armadas, contrariando aqueles que achavam que sua linha de ignorar a epidemia o desgastaria diante dos militares, e assumiu o controle da PF. No que respeita ao Congresso Nacional, Bolsonaro logrou obter apoio do chamado Centrão e, ao menos no momento atual, está afastada qualquer possibilidade de impeachment ou o êxito de qualquer outro processo contra ele que dependa de aprovação com maioria qualificada no Congresso Nacional.

    No nível da sociedade, até aqui, apenas a direita faz manifestações de rua – manifestações em apoio ao governo, à sua política genocida diante da epidemia e pelo fechamento do STF e do Congresso Nacional. Há ainda a possibilidade de armamento de grupos fascistas. Um podcast do site A Terra é Redonda analisou, com muita propriedade e valendo-se das informações propiciadas pelo vídeo da famigerada reunião ministerial de 22 de abril passado, aquilo que denominaram a “Uma agenda oculta” do governo e que consiste, em poucas palavras, no armamento dos seus apoiadores para o combate aos opositores, inclusive aqueles que integram a oposição liberal [6].

    É possível que estejam sendo organizadas, a partir das chamadas Milícias, dos Clubes de Tiro, dos Clubes de Caça e de outros pontos de apoio verdadeiras milícias do neofascismo brasileiro. A cada lance do jogo político, multiplicam-se as ameaças do grupo militar – as últimas mais graves foram proferidas pelo Gal. Augusto Heleno, chefe do GSI; a primeira ameaçando o STF e a segunda afirmando que Bolsonaro irá se rebelar contra eventual ordem da Justiça para que ele entregue para perícia o seu telefone celular. A cúpula do grupo fascista, pela voz do deputado Eduardo Bolsonaro, já defende abertamente o golpe de Estado – a questão, afirmou o deputado, não é “se”, mas “quando”.

    Diante de tais ameaças, as autoridades civis se calam ou, quando muito, tomam atitudes tímidas. O autoritarismo fascista e militar avança e os liberais conservadores não organizam uma verdadeira contraofensiva. A instituição do Estado que melhor representa o liberalismo conservador na conjuntura é o STF. As suas iniciativas contra o chefe do Executivo Federal são as principais ações de resistência ao avanço do campo autoritário. O movimento popular, os partidos políticos de esquerda e de centro-esquerda estão na retaguarda. E isso não se deve apenas e tão-somente à epidemia.

    Seria possível organizar carreatas em defesa do processo que o STF, por intermédio do Ministro Alexandre Moraes – sim, liberal e conservador! – move contra o chamado Gabinete do Ódio. Convém lembrar: não há entre o STF e o Executivo Federal uma diferença de fundo no que respeita à política econômica e social ultraliberal do governo. Do que se trata é de uma luta entre aqueles que querem implantar uma ditadura, e que controlam o Executivo Federal, e os que tomam a defesa, ainda que muito timidamente, da democracia, e que controlam o STF. A esquerda não pode ficar indiferente diante desse conflito.

    Nós não nos encontramos, porém, numa conjuntura política estável. A epidemia, o desemprego e a perda de renda continuam crescendo. A atitude de Bolsonaro diante da epidemia já abalou o apoio ao seu governo junto à classe média. As pesquisas de opinião indicam, de um lado, uma perda de apoio do governo na classe média rica e remediada, como já vinham sugerindo os panelaços em bairros de alta renda, e, de outro lado, uma melhoria, ainda que moderada, da imagem do governo junto aos setores populares.

    O desespero da população de baixa renda torna-a sensível à proposta de reabertura precoce das atividades econômicas e o auxílio emergencial de R$600,00 reforçou a aproximação de Bolsonaro com esses setores. Ou seja, os efeitos políticos da situação econômica e sanitária têm sido, até aqui, contraditórios. De resto, o agravamento da crise econômica e sanitária não favorece mecanicamente a oposição democrática e popular. Se houver a percepção majoritária de que mergulhamos no caos, um golpe para “restaurar a ordem” poderá ser bem recebido até por segmentos que normalmente não o aceitariam. Porém, se a oposição lograr a deixar clara a responsabilidade do governo federal no agravamento da epidemia, no aumento dos pedidos de recuperação judicial ou de falência e no crescimento do desemprego, quando tudo isso se agravar – e isso é para breve – poderemos lograr a depor o fascismo do poder governamental.

    Notas

    [1] Em artigo publicado no site A Terra é Redonda justifiquei em detalhes porque é correto caracterizar o Governo Bolsonaro como fascista, embora não tenhamos, até aqui, uma ditadura fascista no Brasil. Ver Armando Boito “A terra é redonda e o Governo Bolsonaro é fascista”. (https://aterraeredonda.com.br/a-terra-e-redonda-e-o-governo-bolsonaro-e-fascista/).

    [2] Desenvolvo essa análise no meu livro Reforma e crise política no Brasilos conflitos de classe nos governos do PT. São Paulo e Campinas: Editora Unesp e Unicamp. 2018.

    [3] Santiane Arias e Sávio Cavalcante fazem uma análise detalhada da composição social do movimento pelo impeachment. Ver “A divisão da classe média na crise política brasileira (2013-2016)”. In Paul Boufartigue, Armando Boito, Sophie Bérroud e Andréia Galvão (orgs.), O Brasil e a França na mundialização neoliberal – mudanças políticas e contestações sociais. São Paulo: Editorial Alameda. 2019. Pp. 97-125.

    [4] Nicos Poulantzas, Fascisme et dictature. Paris: François Maspero. 1970.

    [5] Ver a palestra o atual ministro da educação no Congresso Conservador de São Paulo. Esse evento foi realizado no Hotel Transamérica nos dias 11 e 12 de outubro de 2019. As palestras encontram-se no Youtube. Eis o link para acessar a palestra de Abraham Weintraub: https://www.youtube.com/watch?v=4ZJavgrhwQc.

    [6] Ver “Uma agenda oculta”, podcast com Leonardo Avritzer, Eugênio Bucci e Ricardo Musse. Aterraeredonda https://aterraeredonda.com.br/uma-agenda-oculta/

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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