A desindustrialização do Vale do Silício e o triunfo da China
"Os EUA passaram a desprezar o setor industrial. A ideia de que, desde que o “trabalho de conhecimento” permaneça nos EUA, não importa o que irá acontecer com os empregos industriais. Esse tipo de mentalidade rompeu a cadeia de experiência produtiva das empresas americanas, tão importante para a evolução tecnológica" , escreve Paulo Gala
Os americanos adoram a ideia de alguns caras numa garagem que inventam algo capaz de mudar o mundo. Startups são maravilhosas, mas não podem, por si, aumentar o emprego no setor de tecnologia. De igual importância é aquilo que vem depois do momento mágico de criatividade de garagem, quando a tecnologia passa da invenção para a produção em massa. É nessa a fase em que as empresas aumentam de escala. Tratam de detalhes de projeto, descobrem como produzir de forma acessível, constroem fábricas e contratam milhares de pessoas. Aumentar a escala é difícil, mas necessário para que a inovação tenha relevância. Aqui muitas vezes o papel do estado como garantidor de demanda é fundamental. Foi assim no caso dos painéis fotovoltaicos demandados por satélites da NASA por exemplo. E todas tecnologias militares e do programa aeroespacial americano. O aumento de escala costumava dar certo no Vale do Silício. Empreendedores inventavam novas coisas. Investidores lhes davam dinheiro para construir seus negócios. Se os fundadores e investidores dessem sorte, a empresa crescia e chegava a uma oferta pública inicial que atraía dinheiro para financiar mais crescimento. Esse foi o caso por exemplo da Intel. Em 1968 alguns engenheiros e seus amigos investidores injetaram $3 milhões para fundar a Intel (INTC), produzindo chips de memória para a indústria de computadores. Desde o começo o maior desafio era dar volume à produção dos chips. Construíram fábricas nos EUA, contrataram engenheiros e criaram uma enorme rede de colaboradores até se tornar uma empresa bilionária. Em 1980, 10 anos depois do IPO, a Intel empregava cerca de 13.000 pessoas nos EUA.
A Tandem Computers passou por um processo semelhante, seguida pela Sun Microsystems, Cisco (CSCO), Netscape e assim por diante. Algumas empresas morreram ou foram absorvidas por outras, mas cada sobrevivente aumentava o complexo ecossistema tecnológico que ficou conhecido como Vale do Silício. Com o passar do tempo os salários aumentaram. A China surgiu. Empresas americanas descobriram que podiam realizar sua produção e até mesmo sua engenharia de maneira mais barata no exterior. Quando faziam isso, suas margens aumentavam. A administração ficava satisfeita e os acionistas também. O crescimento continuava e com lucratividade ainda maior. A máquina de empregos do Vale do Silicio começava a engasgar. Em 2012 o emprego industrial no setor de computadores dos EUA tinha já caído para cerca de 166.000 vagas a menos do que antes da montagem do primeiro PC, o MITS Altair 2800 em 1975. Nesse meio tempo emergiu na Ásia um setor de fabricação de computadores altamente eficaz, empregando milhares de operários, engenheiros e gestores. A maior dessas empresas é a Hon Hai Precision Industry em Shenzen, também conhecida como Foxconn. A empresa cresceu a uma velocidade estarrecedora, primeiro em Taiwan e depois na China. Seu faturamento se aproximando de Apple, a Microsoft, a Dell e a Intel. A Foxconn emprega mais de 800.000 pessoas, mais do que o total mundial consolidado de da Apple, Dell, Microsoft, Hewlett-Packard, Intel e Sony. A Foxconn produz computadores para a Dell e HP, produzia celulares para a Nokia (NOK), consoles Microsoft Xbox 360, placas-mãe da Intel e incontáveis outros dispositivos. Cerca de 300.000 colaboradores da Foxconn produziam produtos da Apple no sul da China em 2015. A Apple, por seu lado, tinha cerca de 30.000 colaboradores nos EUA. Isso quer dizer que para cada trabalhador da Apple nos EUA havia 10 pessoas na China produzindo iMacs, iPods e iPhones. A mesma proporção aproximada de 10-para-1 se mantinha para a Dell, para a fabricante de discos rígidos Seagate Technology (STX) e outras empresas de tecnologia dos EUA.
O trabalho de alto valor agregado e grande parte dos lucros ficam nos EUA. Mas o grande volume de empregos foi para a Asia. Desde os primórdios do Vale do Silício, o dinheiro investido nas empresas aumentou dramaticamente, mas produziu cada vez menos empregos. Os EUA se tornaram enormemente ineficientes na geração de empregos de tecnologia para os americanos.
Há mais em jogo nessa história do que a mera exportação de empregos. Em relação a algumas tecnologias, tanto o ganho de escala quanto a inovação se dão no exterior. É o caso das baterias elétricas avançadas, as baterias de íons de lítio. As baterias estão para os veículos elétricos como os microprocessadores estão para os computadores. Mas, ao contrário do que se dá com estes, a participação americana na produção de baterias de íons de lítio é ínfima. Um novo setor precisa de um ecossistema eficaz em que o knowhow tecnológico se acumule, experiência gere experiência, e desenvolvam-se relacionamentos estreitos entre fornecedor e cliente. Os EUA perderam sua liderança em baterias há 30 anos, quando pararam de produzir dispositivos eletrônicos de consumo. Então, quem produzia baterias ganhou a exposição e os relacionamentos necessários para aprender a fornecer baterias para o mercado mais exigente de laptops e, depois, para o ainda mais exigente mercado automotivo. As empresas americanas não participaram da primeira fase e, por isso, não estavam presentes para o que veio a seguir. A China tomou esse mercado dos EUA.
Os EUA passaram a desprezar o setor industrial. A ideia de que, desde que o “trabalho de conhecimento” permaneça nos EUA, não importa o que irá acontecer com os empregos industriais. Esse tipo de mentalidade rompeu a cadeia de experiência produtiva das empresas americanas, tão importante para a evolução tecnológica. Os EUA entregaram o vale do sílicio para o livre mercado; que levou toda a produção para a Ásia do leste com a ajuda de seus governos! O desenvolvimento acelerado das economias asiáticas proporciona diversos exemplos disso. Os “Projetos Dourados”, uma série de iniciativas digitais encabeçadas pelo governo chinês no final da década de 1980 e nos anos 1990 são grandes exemplos disso. Pequim estava convencida da importância das redes de comunicação e eletroeletrônica – usadas para transações, comunicação e coordenação – para a potencialização da geração de empregos, especialmente nas partes menos desenvolvidas do país. Por isso esses projetos gozaram de financiamento público prioritário. Com o tempo, contribuíram para o desenvolvimento acelerado da infraestrutura informacional chinesa e para o crescimento econômico do país. A China triunfou.
Referencias:
https://www.bloomberg.com/news/articles/2010-07-01/andy-grove-how-america-can-create-jobs
https://www.hbs.edu/faculty/Publication%20Files/12-105.pdf
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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