A divina comédia humana: a transição política em Fortaleza
"Assim como na canção de Belchior, a transição na Prefeitura de Fortaleza e a crise política no Ceará evocam um misto de drama, ironia e oportunidades"
“Quando você entrou em mim como um sol no quintal”
A eleição municipal de Fortaleza em 2024 foi marcada por um embate decisivo: de um lado o desconhecido Evandro Leitão (PT), representando uma ampla coalizão democrática, e, do outro, André Fernandes (PL), símbolo da barbárie política e do avanço do fascismo. A disputa se tornou um marco na luta pela preservação dos valores democráticos e contra o retrocesso político e social.
O resultado foi a vitória de Evandro, consolidando um campo democrático que reuniu diversas forças políticas e sociais para enfrentar o radicalismo de Fernandes, conhecido por sua verborragia incendiária e por representar uma ameaça ao tecido institucional. A eleição, contudo, foi apenas o início de um cenário de desafios, pois a transição revelou-se tão disputada quanto a própria campanha.
Com a vitória do campo progressista, a vice de Evandro, Gabriella Aguiar (PSD), assumiu a coordenação de transição que deveria ser marcada por algum nível de cooperação, mas que rapidamente se transformou em uma arena de embates administrativos e políticos. Gabriella destacou a dificuldade de obter informações claras da gestão de José Sarto (PDT), essencial para planejar os primeiros 100 dias de governo.
Enquanto Sarto nega qualquer falta de transparência, alegando que todas as solicitações da equipe de transição foram registradas e respondidas conforme os prazos estabelecidos, o Ministério Público do Ceará (MPCE) precisou intervir, solicitando esclarecimentos sobre os entraves relatados pela equipe de Evandro.
A transição tem mostrado que a batalha pela governabilidade não terminou com as urnas. Ao contrário, a resistência do campo fascista e a própria dinâmica interna entre aliados da democracia continuaram a influenciar o cenário político, mantendo acesa a tensão entre as forças em disputa.
"O amor é uma coisa mais profunda que um encontro casual"
Um importante capítulo da novela da transição em Fortaleza é a eleição para a presidência da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), que transbordou os limites da política institucional e se tornou uma disputa profundamente pessoal, enraizada nos laços familiares que definem parte significativa do poder no estado. O grupo liderado pelo senador Cid Gomes (PSB) viu na indicação de Fernando Santana (PT), próximo do governador Elmano de Freitas (PT), um movimento que ignorava e enfraquecia sua influência, gerando uma crise de confiança dentro da base aliada.
Para os Ferreira Gomes, família e política sempre caminharam juntas, mesmo sem a metralhadora-farol de Ciro. Por isso a exclusão do grupo nas articulações, que precisa mostrar força sem a mão pesada do irmão pedetista, foi interpretada como um golpe não apenas político, mas também pessoal. O impacto foi particularmente sentido entre os membros mais próximos do clã, que consideraram a situação como o ápice de um processo de afastamento entre Cid e os principais atores do governo estadual: Elmano e Camilo Santana (PT). Esse sentimento não ficou restrito ao senador: Lia Gomes (PDT), irmã de Cid e deputada estadual, assumiu a linha de frente ao reivindicar os sentimentos do irmão e explicitar o incômodo gerado pela condução do processo. Para ela, o afastamento do grupo em decisões cruciais representava uma afronta à confiança construída ao longo de anos de aliança.
Nesse contexto, Eudoro Santana (PSB), uma figura respeitada tanto na família quanto na política cearense, adotou um tom conciliador. Como presidente do PSB no estado e pai do ministro Camilo Santana, Eudoro avaliou a crise como resultado de erros mútuos, que poderiam ter sido evitados com maior diálogo e consideração pelas sensibilidades de cada lado. Sua intervenção de pai que separada briga, ajudou a conter a escalada do conflito, ainda que as marcas da disputa permanecessem evidentes.
O desfecho ocorreu com a retirada da candidatura de Fernando Santana e a eleição de Romeu Aldigueri (PDT), um nome articulado pelo grupo de Cid Gomes, para a presidência da Alece. A vitória consolidou a posição do PDT na Casa e reafirmou a capacidade do grupo de Cid reorganizar suas forças depois do chafurdo que ele mesmo faz. O episódio expôs as fragilidades das alianças políticas e revelou como os laços familiares podem tanto fortalecer quanto tensionar relações de poder. A intervenção de Lia Gomes, por exemplo, ao reivindicar a legitimidade dos sentimentos do irmão revela que não basta fazer alianças de forma pragmática, pois desse jeito não se é feliz direito porque a política no Ceará é uma coisa mais profunda que um encontro casual.
Soma-se a este capítulo a indicação de Onélia Santana, atual secretária de Proteção Social do Ceará e esposa de Camilo, ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-CE). Amplamente apoiada pela base governista na Assembleia Legislativa, sua nomeação enfrenta críticas de setores da oposição, que apontam práticas patrimonialistas no processo. A escolha de Onélia frustrou expectativas da ex-governadora Izolda Cela (PSB), que havia manifestado interesse pela vaga, mas viu sua demanda preterida. Curiosamente a indicação de Onélia acontece dentro de uma tendência observada entre outras esposas de ministros do governo Lula, como Aline Peixoto (esposa de Rui Costa), Rejane Dias (esposa de Wellington Dias), Renata Calheiros (esposa de Renan Filho) e Marília Góes (esposa de Waldez Góes), que também assumiram cargos vitalícios em tribunais de contas. Que coisa…
"Onde nada é eterno"
Nos últimos meses de sua gestão, o prefeito José Sarto, ele próprio médico, assistiu à saúde pública de Fortaleza mergulhar em um cenário crítico. A crise mais emblemática ocorreu no Instituto Doutor José Frota (IJF), maior hospital de emergência do estado e referência nacional na formação de emergencistas. Lá, a falta de insumos básicos, medicamentos essenciais e equipamentos escancarou as fragilidades da administração municipal. Relatos de atrasos no atendimento, adiamento de cirurgias e escassez até mesmo de analgésicos motivaram o Ministério Público do Ceará a ingressar com uma ação civil pública contra a Prefeitura, incluindo Sarto e outros gestores como responsáveis pelo colapso.
O caos não se restringiu ao IJF. Postos de saúde relataram desabastecimento de itens como seringas e luvas, enquanto ambulâncias ficaram fora de operação por falta de manutenção. Esse cenário desenhou um sistema em colapso, em que a população mais vulnerável enfrentou as consequências mais severas. Paralelamente, a gestão municipal foi marcada por decisões que, para muitos, representaram uma espécie de retaliação política, dificultando a transição para a próxima administração. Contratos questionáveis e descaso em áreas críticas sugerem manobras para criar entraves ao sucessor, encerrando a administração de Sarto sob críticas severas à sua postura como gestor e médico.
Como se não bastasse a crise no IJF e nos postos de saúde, Fortaleza agora enfrenta uma nova alta nos casos de Covid-19, com um aumento significativo nas últimas semanas. Entre 24 e 30 de novembro, foram registrados mais de 3 mil casos, representando um aumento de mais de quatro vezes em relação à semana anterior (752 casos). A taxa de positividade dos exames atingiu 50%, o que significa que metade dos testes realizados deram resultado positivo para a doença.
Em Fortaleza, 37% dos casos estaduais foram registrados, concentrando 1.023 casos na última semana. Diante desse cenário, a gestão municipal anunciou a ampliação dos pontos de vacinação para grupos prioritários em 6 postos de saúde.
Enquanto isso, a crise financeira também impactou a maior festa da cidade, o Réveillon de Fortaleza. Reconhecido como o maior do Brasil, superando o Réveillon do Rio de Janeiro conforme levantamento da plataforma norte-americana Semrush, o evento foi reduzido de três dias para apenas um. O prefeito alegou que as parcerias financeiras obtidas foram insuficientes para bancar todas as atrações, frustrando expectativas de turistas, empresários e moradores. A programação original, que incluía grandes nomes como Marisa Monte foi reconfigurada, mantendo apenas alguns artistas, como o cearense Matuê, que se apresenta na noite do dia 31 no Aterro da Praia de Iracema.
A decisão gerou apreensão entre os setores turístico e hoteleiro, que haviam se preparado para o evento em sua versão ampliada. A estimativa de impacto econômico de R$ 4 bilhões e a ocupação projetada de 95% dos hotéis agora estão sob revisão, com operadores temendo cancelamentos de reservas. Para os críticos, essa reconfiguração não apenas simboliza o fim de uma gestão marcada por desorganização, mas também sinaliza as dificuldades que o prefeito eleito, Evandro Leitão, encontrará ao assumir.
A festa de virada, que por anos posicionou Fortaleza como destino nacional e internacional, tornou-se um reflexo de como decisões políticas e financeiras podem moldar a percepção de uma gestão. "Nada é eterno", cantou Belchior. As vitórias, como a conquista do título de maior Réveillon do Brasil, são efêmeras, mas os impactos de uma administração desestruturada permanecem e ressoam muito além da passagem de ano.
"Enquanto houver espaço, corpo, tempo"
Diante do caos na saúde pública em Fortaleza, o prefeito eleito Evandro Leitão buscou socorro no governo federal. Em uma reunião em Brasília com o presidente Lula, foram discutidas medidas emergenciais para superar a grave situação deixada pela gestão de José Sarto. O encontro reuniu nomes de peso, como os ministros Camilo Santana e Rui Costa (Casa Civil), o governador Elmano de Freitas e o deputado José Guimarães (PT), destacando a importância do tema na agenda política nacional.
O encontro também resultou em um anúncio significativo para a saúde pública do Ceará: o envio de R$ 68,5 milhões em emendas parlamentares para o Instituto Doutor José Frota (IJF) e para o Hospital da Universidade Estadual do Ceará (Uece), ainda em construção. As verbas, garantidas pelo mandato da senadora Augusta Brito (PT) e pelo ministro Camilo, representam 100% do montante disponível para emendas no Senado Federal. Desses recursos, cerca de R$ 34 milhões serão destinados ao IJF, enquanto a outra metade será utilizada para a conclusão das obras do Hospital da Uece, com previsão de iniciar o atendimento à população no início de 2025.
No Hospital e Maternidade Dra. Zilda Arns Neumann, o Hospital da Mulher de Fortaleza, onde denúncias de trabalhadores revelaram uma situação crítica, incluindo cancelamento de cirurgias, atrasos salariais e falta de insumos básicos, o Ministério Público do Ceará (MPCE) reagiu, solicitando a relação atualizada de medicamentos e insumos em estoque, o consumo médio dos últimos meses, além de detalhes sobre cirurgias realizadas, canceladas e o funcionamento dos leitos de UTI. O governo do estado anunciou nesta segunda-feira, 9 de dezembro, a liberação de R$ 19,1 milhões em recursos federais do MInistério da Saúde, sendo R$ 9,6 milhões destinados ao IJF e R$ 9,5 milhões para a Santa Casa de Misericórdia, que opera hoje com ¼ da capacidade de seus leitos.
Além da saúde pública, o encontro em Brasília abordou outro tema de grande relevância para o Ceará: a ampliação da capacidade do Eixão das Águas. Esse sistema de infraestrutura hídrica é fundamental para garantir o abastecimento de água em um estado frequentemente afetado por secas prolongadas. O contrato assinado durante a reunião representa um avanço estratégico para a segurança hídrica da região, reforçando o compromisso do governo federal com investimentos estruturais no Ceará.
Depois de pular etapas fundamentais no processo de ascensão dentro do partido — como a entrada, adaptação e a escolha interna pelo colegiado, Evandro se apresentou como uma opção "alienígena" que a militância precisou engolir e apoiar, especialmente diante da urgência de enfrentar um candidato fascista. Agora, sob a proteção de seus padrinhos, Evandro Leitão queima a largada mais uma vez, aproximando-se do presidente da República e se apresentando como o nome responsável pela superação da maior crise de saúde pública da quarta maior capital do país, e a única governada pelo PT.
"Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia"
Evandro Leitão irá iniciar sua gestão como prefeito de Fortaleza em um cenário marcado por desafios administrativos e políticos que testam não apenas sua liderança, mas também sua capacidade de articulação. Neófito no executivo municipal, Evandro é um político cujo perfil foi moldado no legislativo estadual, onde ocupou a presidência da Alece. Agora, sua adaptação ao novo papel dependerá profundamente das articulações construídas pelos líderes e grupos que viabilizaram sua eleição.
Embora cercado por uma coalizão, essa rede não é um bloco homogêneo. A aliança que o elegeu não se baseia em solidariedade, mas em uma espécie de frente ampla, onde os compromissos mais importantes permanecem longe dos holofotes públicos. A relação de Evandro com figuras de destaque no cenário político cearense, como o governador Elmano de Freitas e o ministro Camilo Santana, será fundamental para navegar pelas dificuldades impostas na gestão que assume. No entanto, esses aliados têm seus próprios interesses e prioridades, que podem limitar o apoio incondicional ao novo prefeito.
Paralelamente, Evandro enfrentará uma oposição renovada e motivada. O "downgrade" político de deputados estaduais como Soldado Noelio (União) e Priscila Costa (PL) que se voltam agora para o cenário municipal, além do apêndice bíblico e político do futuro ex-deputado Carmelo Neto (PL) promete um embate mais intenso e barulhento na Câmara de Fortaleza. Esses opositores usarão o microfone e as redes sociais para amplificar críticas à gestão, buscando se consolidar como inimigos de um governo que terá pouco tempo para apresentar resultados concretos.
Soma-se a isso a atuação estratégica de figuras como o ex-prefeito Roberto Cláudio, que já demonstrou habilidade em articular alianças à direita e à extrema direita e que estaria em vias de se filiar ao União Brasil. A filiação ampliaria sua capacidade de reorganizar a oposição em Fortaleza e poderia fortalecer grupos que buscarão pressionar o novo prefeito e criar obstáculos para sua gestão.
Apesar de todas as dificuldades, Evandro terá uma oportunidade única para demonstrar que pode transformar desafios em avanços concretos. Sua gestão será testada em duas frentes principais: a reconstrução de serviços essenciais, como a saúde pública, e a manutenção de alianças políticas que garantam a estabilidade necessária para governar.
O verso de Belchior simboliza o tipo de compromisso que Evandro precisará manter com os problemas da cidade e com os acordos políticos que o sustentam. Estar “colado” não significa apenas proximidade, mas também a habilidade de articular, negociar e manter os diversos interesses alinhados, enquanto enfrenta uma oposição que, embora fragmentada, já demonstra sinais de articulação e capacidade de mobilização.
Evandro Leitão terá de lidar com as expectativas de um eleitorado exausto, que virou o jogo voto a voto, enquanto equilibra interesses muitas vezes conflitantes dentro de sua base e fora dela.
"Fazendo tudo e de novo dizendo sim à paixão, morando na filosofia"
A política no Ceará é marcada por gestos grandiosos, tensões viscerais e demonstrações emocionais que moldam os líderes masculinos do estado. Esses momentos, por mais humanos que pareçam, não simbolizam uma desconstrução de gênero. Ao contrário, reafirmam o poder masculino em um cenário onde os homens têm liberdade para chorar, desabar e até fraquejar publicamente, enquanto as mulheres enfrentam expectativas rígidas de comportamento e profissionalismo.
O alívio da tensão nas eleições municipais de 2024, por exemplo, escancarou o quanto os temperamentos e a carga emocional dos líderes cearenses definem os rumos do estado. A vitória apertada de Evandro Leitão, confirmada apenas com 99,42% das urnas apuradas, levou o então prefeito eleito a quase desmaiar durante o discurso na Avenida da Universidade. Evandro precisou ser levado ao hospital, incapaz de lidar com a pressão acumulada.
Enquanto isso, a vice-prefeita eleita, Gabriela Aguiar assumiu a agenda de vitória. Gabriela, que havia dado à luz há apenas 20 dias, circulou pela cidade, interagiu com militantes e manteve a linha diante das demandas públicas e políticas do momento. Seu esforço destaca a diferença gritante de expectativas entre homens e mulheres na política: enquanto a exaustão de Evandro foi vista como um sinal de humanidade, a presença de Gabriela foi interpretada como um dever, sem direito à vulnerabilidade ou reconhecimento por sua resistência.
Essas cenas são ilustrações vívidas do temperamento visceral dos homens cearenses, que transitam entre a força e a fragilidade sem serem julgados por isso. O Ceará, com seus líderes tão marcados por paixões e rompantes, é um espelho de uma política que vive de grandes gestos e frases emblemáticas. A quase queda de Evandro durante o discurso, os repetidos choros de Camilo em momentos marcantes e a presença aperreada de Cid em articulações revelam um quadro onde a intensidade emocional é permitida e até celebrada entre os homens.
Gabriela Aguiar, Izolda Cela, Luizianne Lins e outras figuras femininas continuam a lutar por espaço em um ambiente político que as sobrecarrega com exigências desproporcionais.
"Eu canto"
As disputas e tensões que marcaram a transição de governo em Fortaleza não se encerram com a posse de Evandro Leitão. Pelo contrário, os desdobramentos políticos e administrativos desse período continuarão reverberando nas relações de poder no Ceará e criando novos capítulos em uma história que exige atenção, denúncia e memória ativa.
Como observadora desse cenário, eu canto. No Brasil 247, busco traduzir as complexidades do Nordeste para uma visão muitas vezes míope do Sudeste. É por isso que recorro a Belchior como uma ferramenta paulofreireana, que conecta a linguagem da resistência com a interpretação crítica da realidade.Como Belchior escreveu: "Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto." Aqui, o canto não é dramático nem solene; é um gesto cotidiano, um ato de insistência em observar, questionar e amplificar as vozes daqueles que precisam ser ouvidos. Afinal, a política não se faz apenas nos corredores do poder, mas também na construção das histórias que são contadas sobre ela – e na força de quem se recusa a deixar essas narrativas em silêncio.
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