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    Flávio Barbosa

    Cronista, psicanalista

    28 artigos

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    A divisão do mundo

    Presidente dos EUA, Joe Biden (Foto: REUTERS/Evelyn Hockstein/File Photo)

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    O senhor Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, com a anuência de líderes europeus e ocidentais, esses últimos mais por uma fragilidade óssea e um senso duvidoso de oportunidade do que por qualquer grandeza de espírito, resolveram dividir o mundo de um modo muito conveniente para eles ocidentais – nós latino-americanos, para tristeza de alguns, estamos fora --, a saber, o lado do mundo livre e das democracias: o Ocidente, e do outro lado, o mundo autocrático e das tiranias: a Rússia, a China, a Venezuela, Cuba e países da Eurásia.

    É peculiar essa definição/distinção, é verdadeiramente curiosa essa democracia do mundo livre, ou como bem define uma banda manguebeat de Pernambuco: Mundo Livre S/A. O grande comércio de democracia que existe desse lado do Globo. Aliás, comércio de democracia e de liberdade, de corpos e de direitos, de subjetividades e de valores porque esse mundo livre de acordo a definição do Senhor Joe Biden de fato opera como um grande negócio onde esses ativos acima mencionados são especulados e precificados como em uma autêntica Bolsa de Valores.

    Esse mundo livre e democrático, se nos recordamos bem, não teve o menor problema em desestabilizar regimes soberanos mundo a fora, tampouco de promover invasões e guerras donde bem entendessem, sequer de forjar situações que “justificassem” as campanhas militares que se empreendiam, claro, em nome da paz e dos direitos humanos de povos oprimidos por seus estados nacionais e líderes indigestos... mas, indigestos para quem? Essa questão cabe em muitas situações.

    É possível que povos asiáticos, africanos, latino-americanos e do Oriente Médio se ressintam dessa definição do Sr. Biden e tenham muitas dúvidas quanto a veracidade dela, mas, como não são ocidentais, a força de suas palavras tem valor relativo, menor, em resumo: não contam. 

    A cruzada libertária e democrática dos Estados Unidos e Europa ocidental evoca memórias fortes nos povos “autocráticos”. A China teria de lembrar e associar esse enunciado dos líderes ocidentais às Guerras do Ópio, travada na primeira metade do século XIX por ordens da conservadora e moralista rainha Vitória. Essa guerra fora travada pelo império inglês contra a China em razão de que o mercado chinês não se interessava pela manufatura inglesa tanto quanto o mercado inglês se interessava pelas sedas e porcelanas chinesas gerando um enorme déficit na balança comercial inglesa frente à China, até que a Inglaterra, da moralista rainha Vitória, encontrou um produto que teve grande penetração na China, o ópio. Este produto é extraído de substância ativa da papoula, vegetal em que a Inglaterra produzia na sua colônia ao lado da China, a Índia, e provocou uma grave crise sanitária na China forçando as autoridades sanitária e política desse país a tomar medidas duras contra o comércio do ópio no país.

    A Inglaterra não gostou das sanções do governo imperial chinês, sentiu-se comercialmente prejudicada já que esse produto, o ópio, entrava no mercado chinês por intermédio de comerciantes ingleses e estadunidenses, sobretudo os primeiros. Em nome da liberdade comercial, valor caro ao mundo anglo-saxônico e o seu liberalismo econômico, a Inglaterra tendo as suas reclamações não atendidas pelo governo imperial, resolveu atacar militarmente a China. Tinha uma grande vantagem na armada e nas peças de artilharia de suas forças, pois era a grande potência industrial da época, e assim invadiu a China cobrando fortes reparações de guerra e comerciais dela, entre outras, que a China não sancionasse o produto inglês, o ópio. Interessante como as sanções possam ter conveniências tão distintas entre uma e outra época ou entre uma e outra circunstância para um mesmo Estado.

    Foram duas Guerras do Ópio da Inglaterra contra a China e por razões semelhantes, a saber, como a China sofrera forte epidemia do ópio em sua população resolveu, mesmo depois do primeiro revés militar, sancionar novamente esse comércio e seus agentes dentro e fora da China. Resultado: a Inglaterra invadiu de novo a China e dessa última empreitada isolou Hong Kong da China e a tornou colônia da Inglaterra, além de assegurar a Portugal o controle de Macau, ilha ao lado de Hong Kong.

    Vocês leitores e leitoras dirão: mas faz muito tempo isso... Eu diria: sim, é verdade, faz muito tempo; e até muita coisa mudou de lá pra cá no contexto da geopolítica. O império inglês já não existe como antes, aquele em que a rainha Vitória dizia que era o Império “onde o sol nunca se punha”, pois de onde você mirasse o globo terrestre haviam colônias inglesas. Agora restam as ilhas Malvinas, argentinas, e outras possessões menores, contudo, o orgulho e o espírito colonial e imperialista mudaram no Reino Unido? A fleuma hegemonista, dominante, apagou, adormeceu, naquele Reino?

    Os Estados Unidos sucessores do imperialismo anglo-saxônico, por exemplo, em nome da liberdade e da defesa intransigente da democracia invadiu o Vietnã, que lutou bravamente contra o colonialismo francês e depois o inglês, e os venceu, inclusive aos Estados Unidos. Esse grande país, os EUA, também invadiu os vizinhos vietnamitas do Laos e do Camboja, e um pouco mais adiante, a Coreia; tudo, evidentemente, para combater os autocratas da outra parte da linha traçada hoje e antes por Washington, Londres, Paris, Roma, Bruxelas e Berlin.

    Os africanos também têm muito do que se recordar quando provocados por esse traçado do mundo desenhado pelo Senhor Biden. O escravismo dos povos africanos pelos europeus e depois Senhores de terras americanos entre os séculos XV e XIX que enriqueceu as matrizes europeias e consolidou potências econômicas como Estados Unidos e Brasil deixando no coração da humanidade um legado incurável de racismo contra os povos negros.

    O regime do Apartheid no século XX na África do Sul, por exemplo, teve o ostensivo apoio de Washington, e o grande líder da resistência sul-africana, Nelson Mandela, que ficou mais de vinte anos preso pelo regime de Pretória, neste período fora proibido pelo governo estadunidense de entrar em seu território pois classificado de terrorista. Como o mundo dá suas voltas, Nelson Mandela liberto foi o principal avalista do acordo que celebrou com o último presidente africâner (sul-africanos de origem holandesa e inglesa), Frederick De Klerk, e pôs fim ao regime do Apartheid, doravante já escancarado para o mundo a quem cabia de fato a promoção de um sistema político de terror. Mandela foi eleito presidente da África do Sul e patrocinou a pacificação daquele país. Nenhuma outra liderança branca de origem europeia teria condição de fazer pela paz e a inclusão dos negros no Estado de Direito como fez Mandela. Então, de terrorista, os Estados Unidos passaram a ver Mandela como um símbolo da paz. Mas Mandela que lutara incansavelmente contra o regime do Apartheid teria sido antes, de fato, um terrorista? Washington desde sempre não sabia disso?

    As veias abertas da América Latina como bem escreveu o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano são outras memórias vivas de como o Ocidente constitui no mundo o lado da civilização e da dignidade humana, dos direitos e da paz. Foram séculos de exploração e saqueio, obra ainda não finda e absolutamente compreendida pelos latino-americanos cada vez que tentam constituir em cada um de seus países um governo soberano e de inclusão e desenvolvimento social. Um governo de respeito e preservação aos povos originários e seus territórios e tradições.

    A Europa que vive um raquitismo impressionante de lideranças, e uma memória cada vez mais curta de sua própria História, de certo que tem por conveniência o esquecimento do que representou a sua empresa colonial e escravista nesse mundo em que o sol nunca se punha. Lembremos que, apesar de declinado, esse colonialismo europeu ainda não cessou totalmente; citei um pouco antes as Ilhas Malvinas (que se localizam no mar territorial da Argentina e a quinze mil quilômetros da Inglaterra, mas é ocupada por esta, e dela recebe o nome de Falklands), ademais, as Guianas francesas que pertencem à França, embora faça fronteira física com o Brasil na região amazônica. A Martinica nas Antilhas, sob o domínio da França, e também nessa região as Ilhas Virgens britânicas e as Ilhas Virgens estadunidenses. E não esqueçamos de Porto Rico, constituído como o “quinquagésimo primeiro estado dos Estados Unidos”, mas que não tem direito a representação no Congresso Nacional desse país. Na realidade Porto Rico não é um estado, mas um território não incorporado dos EUA, por isso sem direito a representação no Parlamento Central em Washington, nem seus naturais podem votar nas eleições do país controlador, portanto, território, é um eufemismo de colônia.

    Do lado da Oceania e no Pacífico Sul tem-se o Havaí nas cercanias da Polinésia, bem distante do território dos Estados Unidos mas que também pertence a esse país. Apesar de não noticiado pela mídia dos EUA e do Ocidente há grupos separatistas no Havaí que lutam por sua independência. Acima da América do Norte tem-se o Alaska, antigo território russo, contudo vendido em 1867 pelo czar Alexandre II, da última dinastia do império russo, os Románov, aos Estados Unidos, um negócio muito polêmico na época. Alegou-se à ocasião que fizeram isso temendo que a Inglaterra, que dominava o Canadá, estendesse o seu domínio ao Alaska, tomando-o da Rússia. Bem, diferente da situação de Porto Rico, Havaí e Alaska foram incorporados como estados na matriz, os EUA.

    Esse desenho do mundo, essa Tordesilhas tardia, dá uma medida do quanto procede a linha traçada pelo senhor Biden conforme o seu discurso da luta do Bem contra o Mal. E nós latino-americanos com as memórias que temos da escravidão, do massacre dos povos originários, do saqueio de nossos minérios forjando riquezas nas Cortes europeias e os regimes de exceção que funcionaram como prepostos das classes dominantes endógenas e potências hegemônicas como os Estados Unidos, Inglaterra, França, podemos, sim, compreender as significações disso.

    Ora, se é verdade que o mundo se divide entre o lado livre e democrático e o lado autocrata e ditatorial que tal a parte libertária do mundo reconhecer e reparar, ressarcir, os danos materiais e morais, as mortes que causou por seus processos colonialistas e imperialistas nos países, continentes e povos que tiveram o dissabor de sentir no lombo o chicote da purgação libertária e o abc da gramática da democracia e civilização ocidental?

    A Inglaterra que não suportou o sancionamento do governo imperial chinês em face a invasão do ópio em seu território pelos comerciantes ingleses – com graves custos sanitários para a população local -- não tem qualquer drama de consciência em propor sancionamento, mais: cancelamento de países que não rezam por suas receitas libertárias e modelo de democracia. A União Europeia (UE) com o legado de sua empresa colonial eugenista também não! E os Estados Unidos que ungidos pelos pais peregrinos que os colonizaram a ser o farol do mundo livre e cristão não observam qualquer pudor em ser os xerifes do mundo, a régua moral da humanidade, na eterna batalha dos cara pálidas contra os peles vermelhas em sua versão globalizada.

    Seria então de pensar que a democracia, a liberdade e os direitos que se nos propagandeiam massivamente o Ocidente com os seus poderosos alto-falantes seja uma utopia hollywoodiana ou a tragédia não escrita por William Shakespeare? That´s the question.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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