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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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A, E, I, O, U

O Auê das vogais e o mistério das consoantes

Alfabeto (Foto: Reprodução)

Começamos com elas e por elas. As primeiras letras que a vida nos apresenta são as vogais, repetidas na ordem de sempre. Ou algum de nós já ouviu as cinco fora dessa sequência? Primeiro faladas e então escritas, quase desenhadas a lápis. A volta do U, o pingo do I...

Só depois de certa intimidade, garantida pelo tempo, entramos no território nebuloso das consoantes. Se com as vogais é jogo aberto, sem disfarce, com as consoantes é uma vida inteira na corda bamba: J ou G, Z ou S, X ou CH? Se majestade é com J por que gemada é com G? Jegue e gelado; gente e jeito. Quem explica? Mesa e Reza; Acesa e Alteza, como assim? Xá e chá; xaréu e chapéu; xixi, xoxo, Xuxa, e aí aparece chuchu? Fala sério?

Comecei a ler numa escola em Vila Isabel, no Rio. Junto com o Português, aprendi a admirar o Carioquês. Gírias, trocadilhos e palavras inventadas surgem no verão pra morrer na primeira chuva do outono.

Nascem e se espalham incontroláveis. Do Pechincha ao Leblon, da Tijuca à Paciência. Sacolejam no trem da Central, escalam o topo do Boréu, dominam as rádios. De repente, a cidade inteira repete a novidade. E se vai pra novela, ecoa pelo Brasil.

Há alguns anos nasceu a melhor e mais inspiradora de todas, na minha opinião. Duvido que saia de moda. "Ó Ô AUÊ AÍ, Ó!" Em vez de uma, cinco palavras. Uma frase inteira só de vogais. Com acentos variados, verbo, sujeito, complemento e o que mais quisermos. Múltipla, é como camiseta branca, vai bem em todas.

Serve de alerta pra arrastão na praia, de comentário na arquibancada quando um time parte pro ataque; de bronca em filhos ou alunos, de aviso de congestionamento ali na frente, de samba que atravessou.

Tá tudo dito ali: Ó Ô AUÊ AÍ, Ó! Fácil de falar, facílima de entender.

Eu ainda nas primeiras frases e minha avó me apresentou um gênio da escrita, também um apaixonado pelo som das letras. Escreveu assim Rubem Braga em Viúva na Praia, setembro de 1958: “Ivo viu a uva; eu vi a viúva...” O sabiá das crônicas – para muitos, o maior - descreve a formosa mulher de luto em seu maiô preto na manhã quente de Ipanema: “O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro da viúva...o sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.”

Minha avó, também viúva, explicou que viúva era dessas poucas palavras com mais vogais que consoantes. Sonora e misteriosa, como tantas viúvas.

Há ainda palavras que abraçam as cinco vogais.  Uma festa de sons. Cajueiro é um exemplo do domínio das vogais sobre as sisudas consoantes. Bequimão, cidade maranhense, é outra.  Sequóia e Maloqueira também.

Nas brincadeiras de forca, muito comum em infâncias remotas, começar pelo A e suas colegas sempre foi a melhor estratégia. Com a vida digital e suas ansiedades surgiram as abreviaturas em que se engolem vogais. Pq, vc, tbm, blz, são algumas.

O oposto me atrai: palavras compridas e sob o comando de uma solitária vogal. Saborosas de falar, costumam ser herança dos povos indígenas.

Maracanã, estádio, rio e bairro. Serelepe, esquilo ligeiro ou moleque fujão. Iriritimimirim, estação de trem no interior capixaba Surucucu, tipo de cobra ou terra de yanomami.

Meu pai me ensinou a melhor de todas: Borogodó. Num caderno de caligrafia reforçou a importância da letra, redondinha como a lua cheia: “é uma vogal só, mas sem o Ó, não tem palavra nenhuma.”

Com meu melhor professor, o Edgar, aprendi pra sempre o que quer dizer o tal do Ó do Borogodó.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.