A encalacrada em que se meteu a Europa
O apoio a uma guerra que interessa basicamente aos EUA colocou o continente em uma situação quase sem saída
A guerra na Ucrânia, que sobreveio em um contexto de baixo crescimento mundial, agravou dramaticamente a situação da Europa. O apoio a uma guerra que interessa basicamente aos EUA colocou o continente em uma situação quase sem saída. Por um lado, a continuidade da guerra agravará a crise econômica dos países da Europa, por outro, o final da guerra possivelmente se dará em bases que oficializarão uma vitória da Rússia, e uma derrota fragorosa da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, formada por 32 países).
Podemos entender melhor a situação da Europa analisando as condições da Alemanha, primeira economia e o país mais industrializado do Velho Continente. Durante muitas décadas, a prosperidade alemã, que tornou o país o terceiro maior exportador do mundo, foi baseada em energia barata, originária da Rússia. A partir de fevereiro de 2022, com o início da guerra na Ucrânia, esse suprimento foi praticamente interrompido, com o boicote imposto à Rússia, que respondeu à agressão. A Europa como um todo passou a importar gás natural liquefeito dos EUA, cerca de 30% mais caro, com importantes impactos sobre a inflação e a competitividade das economias. Coincidência ou não, com a guerra na Ucrânia, os Estados Unidos passaram à condição de maior exportador mundial desse produto.
O preço maior do insumo, em um contexto de crise mundial, impactou a economia alemã, que contraiu 0,3% em 2023 e, neste ano, deve cair novamente, ou, na melhor hipótese, ficar estagnada. Outros países europeus estão se saindo um pouquinho melhor na economia, mesmo assim apresentando desempenhos pífios, com exceção, possivelmente, da Espanha, que deve crescer 3% neste ano.
A produção interna da Alemanha está praticamente estagnada há cinco anos, o nível do PIB de 2024 é apenas meio ponto percentual superior ao nível existente antes da pandemia do coronavírus. A taxa de investimentos nem ao menos chegou ao patamar existente em 2019. O último ano em que o produto alemão cresceu fortemente foi em 2018, quase seis anos atrás. Em um cenário de grande incerteza política, as empresas resistem em fazer investimentos em novos equipamentos e construção e os consumidores represam gastos, em face do aumento do desemprego.
Numa conjuntura em que o setor privado não investe, qualquer que seja a razão, o setor público poderia estimular a retomada investindo em setores estratégicos, como pesquisa e tecnologia, infraestrutura, habitação. A Alemanha, por exemplo, necessita de renovação da frota de trens, novas pontes, rodovias e escolas. O problema é que o país tem aumentado significativamente os seus gastos militares, que chegarão a US$ 73,41 bilhões em 2024. Esse é um valor recorde na história do país, em termos absolutos, e corresponde a 2,01% do PIB. Para efeitos comparativos, o último ano em que a Alemanha gastou 2% do PIB em defesa foi em 1992. Esse aumento de gastos com a indústria militar decorre diretamente da guerra na Ucrânia, já que a Alemanha tem enviado armas e munições para a frente de batalha.
Tudo ainda é muito incerto, mas a eleição de Donald Trump deve tornar as coisas ainda mais difíceis para a Europa, em alguns aspectos. Trump já manifestou várias vezes que acabará com o financiamento da segurança da Europa, através do financiamento da Otan. Deve também reduzir substancialmente o fluxo de recursos para financiar a guerra na Ucrânia, conforme já manifestou várias vezes. O presidente eleito dos EUA, em mais de uma ocasião, defendeu que uma das bases para o fim da guerra é a aceitação da Ucrânia do território já conquistado pela Rússia (entre 20% e 25% do território ucraniano).
Enquanto isso, a Rússia, o país mais sancionado da história, cresce acima da média do crescimento global. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta um crescimento de 3,2% para o país neste ano, estimativa superior ao crescimento projetado para todas as economias que compõem o G7. A previsão do FMI, a propósito, pode ser superada com folga, se levarmos em conta o crescimento do segundo trimestre, que chegou a 4%, em relação ao mesmo período de 2023. No primeiro trimestre esse crescimento foi de 5,4%.
Com o boicote econômico inédito, ao invés de se colocar de joelhos, a Rússia estabeleceu acordos bilaterais com países que não aderiram, evitando o desabastecimento significativo no mercado russo. A partir das sanções, o país começou a ampliar novos mercados no Leste Asiático e no Sul Global. Como a Rússia dispõe de muitos recursos naturais (o Banco Mundial estima que o valor total dos recursos naturais da Rússia chegue a US$ 75 trilhões) e dispõe de uma indústria bastante razoável (petróleo e gás, produtos químicos, defesa, componentes eletrônicos, construção naval etc.), ela vem conseguindo contornar as dificuldades decorrentes do boicote, encontrando alternativas. As exportações de petróleo foram redirecionadas em quase 100% para a China e a Índia. Antes da guerra entre 40% e 45% do volume total exportado de petróleo e produtos petrolíferos tinha como destino a Europa, volume que caiu para 4% ou 5%.
Nesse reposicionamento do tabuleiro geopolítico global, a Rússia se converteu no maior fornecedor de petróleo para a China, o que aproximou ainda mais os dois países no período recente, em termos políticos e diplomáticos. Ao mesmo tempo, as exportações de manufaturados chineses para a Rússia aumentaram expressivamente. Com o boicote dos países do Ocidente, a China tornou-se a grande fornecedora de equipamentos e produtos tecnológicos vitais para a Rússia, que vão de máquinas industriais a smartphones. Esse processo elevou para US$ 240 bilhões de dólares o comércio bilateral no ano passado, crescimento superior a 25% em relação ao ano anterior.
A Rússia dispõe de uma série de aspectos estruturais e conjunturais que, se bem articulados, podem garantir o desenvolvimento econômico, a começar pela disponibilidade de matérias primas. Mas sem dúvida, um dos motores da economia russa neste momento tem sido a guerra. Em 2024, por exemplo, os gastos militares aumentaram em quase 70%, em relação ao ano passado. Desde o início da guerra as fábricas de armamento da Rússia passaram a trabalhar a pleno vapor, para produzir o equipamento necessário, o que gerou a movimentação da produção de insumos e componentes, e empregos em toda a cadeia de produção de armamentos.
A taxa de desemprego na Rússia, atualmente, é de 2,4%, o que significa pleno emprego, bem abaixo dos 5,9%, em média, na União Europeia. Em suma, não é que a Rússia tenha vencido completamente as sanções comerciais, porque elas são muitas e envolvem alguns dos principais países industriais do mundo. Mas o país encontrou uma forma de lidar com as sanções e reduzir seus impactos sobre a economia e a sociedade russa.
Um dado que enfraquece muito a tese de que a Rússia é um país “imperialista” é o de que praticamente a metade de todas as receitas do país decorrem da venda de petróleo e gás. Essa é uma pauta exportadora típica de países atrasados. Nações desenvolvidas seguem uma regra básica, que é não basear suas exportações em commodities, agrícolas ou minerais. Com o boicote, a Rússia deixou de vender para os Estados Unidos, Reino Unido e países da União Europeia e as importações chinesas compensaram essa perda de receita, decorrente das sanções.
Os países do G7 tentaram inclusive impor um limite ao preço global do petróleo, visando limitar as receitas da Rússia e tornar o boicote econômico mais eficaz. Mas a China ignorou essa iniciativa e seguiu comprando petróleo russo acima do preço limite estabelecido. A Índia, que também não aderiu às sanções, continuou comprando petróleo russo, se beneficiando inclusive de atraentes descontos. No ano passado a China importou 8 milhões de toneladas de gás liquefeito de petróleo (GLP) da Rússia, através do gasoduto Power of Sibéria 1, em funcionamento desde 2019. A intenção dos dois países é ampliar esse comércio, com a fabricação de um novo gasoduto, que já está sendo encaminhado.
Apesar da guerra, das sanções, e do roubo das reservas internacionais por parte dos países ocidentais, a Rússia tem conseguido fazer sua economia crescer acima da média mundial. O país conseguiu nos últimos anos ampliar o volume de comércio em 60% com a Ásia e 42% com a América Latina. A Rússia tem demonstrado também capacidade de absorver as mudanças tecnológicas, no setor financeiro, no comércio eletrônico e na administração pública. A resiliência da economia russa é bastante surpreendente, dado o nível de sanções que sofreu, que poderia afundar a economia do país. O Kremlin evitou uma recessão com base na renda do petróleo e direcionando seus gastos para o esforço de guerra, que hoje representa um terço do orçamento federal.
Tais escolhas políticas obviamente produzem suas consequências, como o aumento da dependência da exportação de petróleo e gás e dos gastos militares. Mas um país que tem a maior extensão territorial e o maior volume de recursos naturais do planeta (especialmente petróleo e gás) e tem sido ameaçado há séculos pelos inimigos, pagaria um preço muito mais alto pela hesitação e inércia. A Rússia tem demonstrado que desenvolvimento econômico é um fator diretamente relacionado com a luta pela soberania e defesa dos interesses nacionais. Esse aspecto marca uma diferença crucial com a Europa Ocidental, cujos países entraram de cabeça em uma aventura militar, com custos imensos para suas economias.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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