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    João Quartim Moraes

    professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular).

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    A equação comunismo = nazismo

    A assimilação do comunismo ao nazismo é um postulado básico do pensamento quase único neoliberal

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    Por João Quartim Moraes, no portal A Terra é Redonda

    Que os liberais ataquem Losurdo está na lógica da luta de ideias. Que partam críticas de autores autoidentificados como esquerda também não surpreende. Afinal, discutir é preciso… Surpreende desagradavelmente, entretanto, o baixo calão de dois ou três ataques rasteiros e raivosos, ao mais barulhento dos quais dediquei um comentário no portal da revista Princípios [:http://grabois.org.br/portal/artigos/155223/2020-09-18/besouro-cacando-aguia], ao qual remeto o leitor eventualmente interessado.

    Os que, no Brasil, entraram com mais seriedade na discussão da obra de Losurdo destacaram três tópicos principais: Stalin, totalitarismo e liberalismo. A conexão entre eles é clara, mas é contra Stalin, história crítica de uma lenda negra que se concentraram as críticas. Elas tardaram muito, considerando que a versão brasileira do livro foi publicada em 2010. Temos uma hipótese para explicar a súbita explosão desse retardado zelo antilosurdiano. Ela se resume em dois nomes: Jones Manoel e Caetano Veloso.

    Os dois outros tópicos mais importantes da discussão também demandam comentário. Deles nos ocuparemos mais tarde, numa segunda parte dessas anotações de contra crítica. Aqui nos limitamos a (1) trazer informação básica sobre as muito subestimadas dimensões da obra de Losurdo e de sua difusão no Brasil e (2) mostrar como a satanização de Stalin serve de cavalo de batalha para a grande operação ideológica da reação liberal: identificar o comunismo ao nazismo.

    Losurdo no Brasil

    Os escritos de Domenico Losurdo começaram a ser conhecidos e traduzidos no Brasil em meados dos anos 1990. Desde então, ele nos visitou regularmente, correspondendo ao interesse crescente suscitado nos meios intelectuais e acadêmicos pela renovadora originalidade de sua crítica, pela sempre fina ironia de seus comentários, pela extraordinária capacidade de dissolver os preconceitos e pressupostos latentes do senso comum liberal, pela rigorosa e eloquente dialética de sua argumentação.

    Tanto quanto sei, baseando-me em minhas próprias lembranças e anotações, a primeira dessas visitas teve caráter acadêmico: um curso de duas semanas (de 15 a 24 de agosto de 1995) com o tema “Os dilemas da Democracia” no Departamento de Sociologia do IFCH/Unicamp. A iniciativa doconvite foi da professora Walquíria Leão Rego, que conhecia bem as ideias de Losurdo, tanto assim que em 1999, em parceria com sua colega Elide Rugai Bastos, publicou o livro Intelectuais e Política – A Moralidade do Compromisso, no qual, como assinalou Ricardo Mussi em elogiosa resenha, é discutida a “situação do intelectual” no “novo contexto” resultante das “grandes transformações” que afetaram o planeta (sem contudo alterar sua esfericidade). As autoras centram a análise em três autores italianos, que como muitos outros seus compatriotas, tinham na obra de Gramsci a grande referência análise histórica do papel dos intelectuais”. Losurdo é um dos três.

    Do curso de agosto 1995 ficou um pouco conhecido, mas importante, registro. Cadernos de Sociologia nº 2, de julho/dezembro 1996, publicado pelo IFCH, transcreveu exposições e debates do seminário então promovido sobre o tema “pensar a democracia à esquerda”, com textos das intervenções de Losurdo, Walquíria Leão Rego e Carlos Nelson Coutinho, bem como das questões propostas pelos participantes aos expositores. Nesse debate estão presentes os grandes temas políticos de nosso tempo, discutidos em suas manifestações concretas numa conjuntura internacional fortemente marcada pelo desmonte da URSS e pela retomada das guerras imperialistas de recolonização do planeta, conduzidas pela máquina de guerra da Otan.

    Desde então Losurdo nos visitou muitas vezes, até o final de sua vida. Nas múltiplas atividades de que participou, ele lançou e comentou as traduções em português de alguns de seus livros mais importantes, nos quais, combinando rigor teórico e maestria dialética, ele defendeu e ilustrou a causa da construção histórica da ideia de uma humanidade efetivamente universal. Transcendendo os meios acadêmicos, ao longo desses anos sua influência estendeu-se pela esquerda brasileira, particularmente entre os anti-imperialistas e comunistas. Até o final de 2019, entretanto, o reconhecimento da excepcional importância de sua obra não ultrapassou os ambientes da inteligência crítica. Foi a muito comentada entrevista de Caetano Veloso com Jones Manoel, um dos mais fortes cérebros da nova geração de marxistas, que tornou seu nome amplamente conhecido. Fato extremamente positivo para a cultura política da esquerda brasileira, já que a notoriedade multiplica os leitores e mobiliza os críticos, intensificando o debate. Sobretudo considerando que entre 1995 e 2019 são bem raras as referências a Losurdo fora do círculo editorial e político marxista, em contraste com o fluxo quase ininterrupto de textos a seu respeito publicados nos últimos meses. Sem dúvida, esse surto se explica em boa medida por uma reação ao efeito Jones Manoel/Caetano Veloso.

    O interesse, a qualidade e os objetivos dos textos que veiculam essa reação são desiguais; mostraremos em que e por que em tópico ulterior desta contra crítica. Notamos apenas, por ora, que bem antes de se tornar um dos mais importantes autores marxistas de seu tempo, Losurdo já obtivera amplo reconhecimento acadêmico por seus estudos notáveis sobre a conexão da filosofia com a história político-cultural alemã (Kant, Fichte e principalmente Hegel publicados entre 1983 e 1989; na década seguinte, publicou estudos sobre Heidegger e  Nietzsche). Ele pôs em evidência as respostas de cada um desses filósofos aos problemas e dilemas com que se defrontava a cultura da época, procurando mostrar como eles se posicionavam na luta entre a afirmação e a negação da universalidade da condição humana.A partir de janeiro de 1991 (no auge do desmantelamento da URSS), ele escreveu sucessivos artigos em defesa do legado da Revolução de Outubro 1917, entre eles o notável estudo histórico-crítico Da Revolução de Outubro à Nova ordem internacional (novembro de 1993), publicado em versão brasileira na revista Crítica Marxista (1997-1998, nºs. 4-5-6) e reproduzido no Vermelho em 7/11/2015.Em suas obras políticas destacam-se, entre os temas fundamentais: a crítica da ideologia liberal em seu percurso histórico e em sua cristalização neoliberal; os vínculos da questão nacional com a dominação neocolonial e a opressão racial; o exame crítico das experiências socialistas e dos impasses do “marxismo ocidental”.

    Stefano Azzarà, colega de Losurdo na Universidade de Urbino e seu mais próximo parceiro no projeto intelectual de pensar criticamente nosso tempo, agregou a “Domenico Losurdo 1941-2018, in memoriam”, densa síntese de seu legado político-filosófico (tradução brasileira na coletânea Losurdo, presença e permanência, recentemente publicada pela editora Anita Garibaldi), uma “Bibliografia completa e approvata di Domenico Losurdo” com 200 títulos (livros, capítulos de livros, artigos) publicados entre 1983 e 2017. Os dois textos foram originalmente publicados no nº 1/2018 de Materialismo Storico, a revista semestral de filosofia, história e ciências humanas lançada em 2016 por Losurdo e Azzarà.

    Evidentemente, não seria razoável esperar que a pletora de críticas em reação ao que podemos chamar o efeito Jones Manoel/Caetano Veloso se apoiasse numa visão panorâmica de uma obra de tão grande envergadura. Mesmo entre os leitores assíduos (nos quais me incluo) que têm acesso aos textos originais ainda não traduzidos para nosso idioma, poucos podem dizer que leram tudo que era importante. Quanto aos que provavelmente só se interessaram por Losurdo quando resolveram participar da reaçãoliberal à ampla difusão de suas ideias estimulada pelos escritos de Jones Manoel, e que, portanto, têm um contacto recente e fragmentário com sua obra, a maioria contentou-se em mobilizar o espectro de Stalin para condenar o “neo stalinismo” que alegam nela ter descoberto. Com isso contribuíram para que o público liberal e mais ainda o cripto fascista, recusando como sutileza ideológica a distinção entre stalinismo e comunismo, trata-os como dois nomes políticos do mesmo Satanás.

    Forçando a equação

    A assimilação do comunismo ao nazismo é um postulado básico do pensamento quase único neoliberal. Quando sub pensadores fascistoides do clã Bolsonaro alegaram que o nazismo era de esquerda, houve risos nos meios intelectualmente civilizados. Mas em sua rude mentalidade de milicianos bíblicos, os Araújo e consortes apenas tiravam a consequência de seu silogismo: se comunismo e nazismo são iguais e se o comunismo é de esquerda, o nazismo também é. Na cretinice da conclusão araujesca não há, pois, erro lógico. Cretina é a premissa comunismo=nazismo. Longe, porém de ser sustentada apenas pelos bolsonaristas, ela prospera no ambiente político e ideológico do chamado “Ocidente”.

    Note-se, entretanto que Araújo é um tanto vacilante em sua avaliação do nazismo. É muito difícil, com efeito, a um extremista de direita não simpatizar com o Führer do Reich de mil anos. A isso somam-se razões afetivas. Como lembrou oportunamente a Folha de São Paulo, quando o pai dele (ao qual ele se refere com devoção filial, louvando seu anticomunismo radical) era procurador geral da República em plena ditadura militar, o criminoso nazista Gustav Wagner, ex-comandante do campo de extermínio de Sobibor (onde pereceram cerca de 300.000 judeus, prisioneiros soviéticos e ciganos), que vivia clandestinamente no Brasil, foi identificado pelos caçadores de nazistas. Os governos da Alemanha, Polônia, Áustria e Israel solicitaram sua extradição. Graças ao zelo protetor de Araújo pai, os pedidos de extradição do monstruoso Wagner foram negados pelo STF.

    Não há mais nazistas explícitos no governo Bolsonaro. Havia o secretário da Cultura Roberto Alvim, que em janeiro de 2020 citou aprobativamente Goebbels numa declaração pública. Tiveram de demiti-lo: afinal a extrema direita bolsonarista apoia irrestritamente o governo israelense e seu patrono estadunidense. O recado aos demais nazistófilos do governo era claro: gostam do Reich de Mil Anos? Guardem para si esse sentimento. Mesmo porque os inigualáveis crimes do Führer contra a humanidade foram cometidos em nome de uma teratológica exacerbação do nacionalismo alemão (“povo de senhores”) que contrasta com a subserviência de Bolsonaro e de seu ultra sabujo ministro do exterior ao império do dólar e do Pentágono. Nem Hitler, nem Mussolini teriam em relação a uma potência estrangeira atitudes reverenciais como as do atual governo brasileiro.

    Marcar alguma distância em relação ao nazismo tem outras utilidades para o cripto fascismo colonizado. A principal é tentar assimilá-lo ao comunismo, para pôr ambos fora da lei. Assumiu tal iniciativa, em 1º de setembro de 2020, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP), que o jornalista Mário Conti numa lista de mini retratos de personagens do bolsonarismo publicada na Folha, assim descreveu: “Fez carreira na Polícia Federal e não passou de escrivão. Deputado, continua um escrivão com cérebro de escrivão de polícia”. O projeto de lei de sua autoria (PL 4425/2020) confirma o esboço biográfico feito por Conti. É policialesco em baixo nível: manipula as leis preexistentes, ignorando a principal delas, a lei 7.716/89, que considera crime: “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, com pena de reclusão de um a três anos e multa e que no parágrafo 1º do artigo 20, prevê o “crime de divulgação do nazismo”, bem como a lei n. 9459 de 15 de maio de 1997, que nela introduziu pequenas alterações. A finalidade dessas leis é condenar o racismo e, por isso mesmo, a doutrina cuja propaganda elas vedam é o nazismo, que é intrinsecamente racista, dividindo a humanidade entre raças superiores e raças inferiores, preconizando a dominação daquelas sobre estas e, uma vez no poder,  exterminou, com sistemática frieza de psicopatas, os judeus, os ciganos e os soviéticos.

    Essa lei não serve, pois ao projeto macarthista de criminalizar os comunistas. Por isso o deputado Bolsonaro deixou-a de lado, para recorrer a uma lei dos tempos da ditadura (nº 7.170, de 14 de Dezembro de 1983), que “define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento” e à lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional”.  Seu plano de voltar aos bons tempos da guerra fria altera essas duas leis. Na de 1983 ele insere: “Art. 22-A É vedada qualquer referência a pessoas, organizações, eventos ou datas que simbolizem o comunismo ou o nazismo nos nomes das ruas, rodovias, praças, pontes, edifícios ou instalações de espaços públicos”. Na de 1996, levando adiante o pensamento tenebroso de Abraham Weintraub e da Damares que viu Jesus na goiabeira, ele estipula: “Artigo 12, inciso XII – Adotar medidas destinadas a conscientizar os estudantes sobre os crimes cometidos por representantes dos regimes comunista e nacional-socialistas (nazistas), elaborar e aperfeiçoar livros, programas e medidas sobre a história dos regimes totalitários comunista e nacional socialistas (nazistas), recordando que os regimes comunista e nazista são responsáveis por massacres, pelo genocídio, por deportações, pela perda de vidas humanas […]”.

    A passagem que grifamos dispensa maiores comentários. Ela escancara os objetivos a que pode servir a doutrina liberal ao juntar comunistas e nazistas na vala comum do “totalitarismo”. O assunto é grave, mas a “Justificação” do PL 4425/2020, que  se inspira no “escritor Olavo de Carvalho”, o sinistro cartomante especialista em injúrias do mais baixo calão, desafia o ridículo ao excluir o fascismo (o qual, no entanto, se considerava explicitamente um regime totalitário) em seu projeto de repressão policial. Os bolsonaristas jogam o nazismo às piranhas para passar a boiada macarthista do anticomunismo, mas são tão evidentes as semelhanças de seu movimento com o prototípico “mito” mussoliniano, que eles não se atrevem a renegá-lo. Entregam Adolfo para preservar Benito. Sem esmorecer no ridículo, a “Justificação” cita como “principais exemplos” de “genocídio”, o nazista Adolph Hitler e os comunistas Josef Stalin, Mao Tsé-Tung, PolPot, Fidel Castro e mais recentemente Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Um grande boi de piranha com bigodinhos para passar a boiada de seis comunistas.

    Losurdo sabia do que estava falando ao criticar a equação liberal.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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