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    Laís Vitória Cunha de Aguiar

    Aos 16 anos passou a escrever para a ONG australiana Climate Tracker, que treina jovens para serem jornalistas climáticos, e com isso publicou para a EcoDebate e outros meios de comunicação. Participou dos Jornalistas Livres como freelancer e por um ano do Mídia Ninja. Publica eventualmente no Brasil 247 e Brasil De Fato. Formada em Línguas Estrangeiras Aplicadas ao Multilinguismo no Ciberespaço e coordena o Parlamento Mundial da Juventude no Brasil.

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    A esperança amarga do Norte

    "Não há como, caso a situação política não se altere, o estado do Amazonas realmente seja um potência no âmbito da sustentabilidade"

    Floresta amazônica (Foto: Agência Brasil)

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    - Moça, você sabe o que está acontecendo? Por que toda aquela gente de amarelo e 22 saiu correndo e gritando? 

    - Ah, é o Flávio Bolsonaro chegando por causa das eleições. 

    - Será que se eu vaiar apanho? 

    - Ah, com certeza apanha. - E sorriu.- Esse povo é assim. 

    - Nossa, sério? 

    - Com certeza… 

    - E essa pedra diferente que você está vendendo, é o quê? 

    - Amazonita, mas com certeza os chineses já devem estar patenteando pra eles. - Tem muito turista chinês por aqui, né? 

    - Tem em todo lugar, nossa. - Disse de forma exasperada, como se não gostasse dos chineses. 

    Depois de comprar duas amazonitas, entrei no portão de embarque do aeroporto de Manaus, mas não sem antes pensar o quão crucial é Manaus para o Brasil e para o mundo. Ter um governo de extrema direita nesse local é sinônimo de uma destruição que deveríamos evitar a qualquer custo, não apenas em termos ambientais, mas também humanos. 

    Vi várias ocupações irregulares em áreas que deveriam ser preservadas, mas não acredito que a solução seja retirar estas pessoas, e sim aprendermos como as cidades podem realmente trabalhar com a biodiversidade, com a natureza. De certa forma, nossos indígenas fazem isso muito antes do Brasil assim ser intitulado. 

    Precisamos pensar com urgência em novas soluções, mas é necessário que estas soluções sejam coletivas e envolvam diversos setores da sociedade: vários âmbitos da academia, das comunidades, do governo e mesmo da iniciativa privada. Fui participar do Congresso P&D, de projeto e design, e por mais que muitos projetos envolvessem as comunidades e pensassem de forma sistêmica, a quantidade de projetos que o fazem ainda não me parece suficiente para trazer um impacto real no Brasil, ainda mais pensando na região norte, onde o congresso ocorreu. 

    Em Manaus, seja no MUSA, Museu Amazônico, ou no INPA, Instituto Nacional de Estudos Amazônicos, ou na própria UFAM, a Samsung é uma das patrocinadoras de todos, e sua importância para a geopolítica regional não deveria ser descartada. Todos os ambientes patrocinados pela Samsung são importantes para a soberania do Brasil, para o entendimento de quem nós somos, mas infelizmente pouquíssimas pessoas conhecem ou valorizam, e mesmo que não valorizemos, aparentemente o mercado exterior valoriza. Em termos teóricos, isso já é de conhecimento geral, mas ver isso na prática me deixou angustiada. 

    Vi uma apresentação de uma jovem, ainda na graduação, cujo trabalho foi patrocinado pela Samsung. Vi laboratórios de metais, de tecnologia, de serigrafia, e tantos outros também patrocinados pela Samsung. Poucas universidades públicas de design no Brasil tem essa estrutura, mas em compensação, a maioria dos projetos ali desenvolvidos tem importância para as empresas de tecnologia e para os jovens que já querem sair empregados, mas não têm um impacto real nas comunidades que cercam a universidade. 

    Para minha surpresa, a própria UFAM é uma reserva ambiental, e faz isso com maestria, com florestas e arquitetura convivendo em certa harmonia, até onde é possível, afinal qualquer ocupação humana traz um certo nível de estresse para o meio-ambiente. Esse formato de integração com a natureza poderia ser útil para pensar como as pessoas podem permanecer nas áreas que ocuparam trazendo um estresse mínimo para o meio-ambiente, e realmente espero que haja outros setores da universidade pensando sobre isso com as comunidades. 

    Ouvir no jornal que a Ponta Negra está secando não é o mesmo que ver ou ouvir a comunidade local explanando a situação: 

    - Sabe, aqui é normal ter período de estiagem e período de chuva, mas nunca foi assim não. Antes não tinha tanta areia assim no rio, mas colocaram porque antes a água chegava até em cima da rua. 

    - Pera, então aterraram o rio? 

    - É, acho que chama isso mesmo. Só que aí, agora toda vez que o rio tá baixo, cria tipo uns buracos na areia que se você estiver nadando é pego eles. Em outros espaços fica tipo uma areia movediça. 

    - Nossa, que perigo. Foram muitos acidentes? 

    - Vários acidentes antes deles decidirem que dependendo do nível da água, a praia precisa ser fechada. Quando tem muita água, também é preciso fechar. 

    - Por quê? 

    - A areia também cria uns buracos quando tá com muita água. 

    - Aí parece que tem buraco sempre… 

    - Tem um nível de água que é seguro, mas agora tá fechado. 

    - A população local usa esse espaço da praia? 

    - Claro, sempre que tá aberto a gente vai nos finais de semana com nossa farofa. Essa seca tá trazendo outros problemas, tipo a comida que agora tá mais cara porque normalmente chega pelo rio, mas agora está mais difícil pra chegar, a vida tá mais difícil. 

    - Uau, só pelo rio? 

    - A gente tá muito isolado aqui…E não produzimos muita comida por aqui. 

    Essa foi uma das conversas que tive com um dos Ubers, mas em quase todos que peguei perguntava o que achavam da seca, se tinha relação com o desmatamento, e todos responderam que sim. Cada vez que alguém falava que estava muito quente, eu aproveitava para perguntar sobre isso, especialmente fora da universidade, pois queria saber a opinião da população local. Cada um focava em um aspecto do desmatamento, como nas cidades, ou aos arredores, mas ninguém falou em soja ou agronegócio. Para uma população que claramente está ligada a partidos que apoiam o agronegócio, as respostas foram surpreendentes, é como se eles não relacionassem o que estão passando com a política no geral.

    No que eu achava que seria meu último dia em Manaus, fui até o Mirante ver a vista, e para minha surpresa me deparei com um político gravando um vídeo, saudando Manaus e suas riquezas naturais, mesmo que em seu projeto de governo não houvesse uma vírgula falando sobre a conservação. O momento, no entanto, era mais irônico ainda, pois em volta do píer que estávamos, no que seria uma praia, havia plástico e mais plástico, vários tipos de lixo. A câmera dele obviamente não estava voltada para esse lado. Ele mencionou o quão incrível é o rio Solimões, ignorando completamente a tragédia da seca que perturba o rio. É interessante pensar o quanto um simples ângulo de uma câmera consegue ocultar, o quanto uma narrativa bem construída consegue deturpar a realidade. 

    Ao fazer um passeio pelo rio Solimões com colegas, a nossa guia, a qual oculto o nome por uma questão de privacidade dela, foi mostrando os portos gigantes, com guindastes que deixavam os produtos nos navios, e nessa mesma região também vimos muito plástico na água. Os portos estavam vazios por causa da quantidade de água. 

    Ela também foi mostrando as mais diversas feiras, a melhor feira de peixe, a melhor feira para frutas, tudo na beira do rio. Explicou que há dois anos teve uma cheia tão grande que a feira das frutas precisou virar feira flutuante, e usaram umas balsas compridas para os comerciantes conseguirem vender. Vimos um duto gigante para o escoamento de soja aos grandes navios. Mais um local parado por causa da seca. 

    A produção de soja, cuja maioria vai para o exterior, está conectada com o desmatamento da Amazônia, achei interessante pensar que a própria produção do alimento que traz toda essa destruição está prejudicado. Isso sim é karma rápido.

    Mas no meio de tudo isso, os botos sobrevivem. A melhor parte foi vê-los soltos, em seu próprio ambiente, e aparentemente saudáveis. O guia conhecia todos os botos por nome, e sabia nos explicar diversas questões sobre eles, tendo feito um curso no próprio INPA para tratar dos botos. Ele era o único com autorização para alimentá-los. Para minha surpresa, os botos esperavam que ele desse o peixe, não retiraram da mão dele. Às vezes brigavam entre si, mas pareciam respeitar muito o humano deles. 

    Apesar deles parecerem saudáveis, é difícil não se preocupar quando há tantos fatores que podem prejudicá-los, desde os plásticos nos rios, a poluição da água, falta de alimento, até a própria seca do rio. 

    - Tinha uma comunidade de ribeirinhos mais pra lá, pro lado do rio Amazonas, as casas deles eram todas nos rios, mas a última chuva levou tudo, sobraram aquelas ali, vocês conseguem ver? 

    Como a distância era grande, quase não vimos, mas imaginar a violência de um rio tão grande não era difícil. Com a seca, no entanto, o rio não parecia violento. Em relação a outras mudanças climáticas, no MUSA (Museu da Amazônia), os fungos secaram por causa do tempo

    seco, e as borboletas morreram. No INPA (Instituto de Pesquisa da Amazônia), o mesmo ocorreu com as borboletas do local. 

    - Pois é, o Brasil todo vai ficar sem água se a Amazônia secar. - Ouvi um dos Ubers que pegamos conversando com meu professor. Ele não foi o único que concluiu esse raciocínio em relação à Amazônia. Os outros trataram como uma questão local. 

    Uma guardinha local excluiu a questão do desmatamento local como responsável pela seca: 

    -Não, é uma questão global, não dá para falar assim… - Enquanto isso, a poucos metros, era possível ver o quanto o rio secou. 

    Nunca tinha imaginado nem o tamanho dos navios nem o tamanho da seca. Em fotos, parece que tudo perde um pouco a proporção. Os guindastes que colocam e retiram os produtos nos navios são enormes, mas atualmente não há nenhum navio ali, por causa da seca. 

    A situação é muito complexa: o estado de Amazonas, que poderia ser um exemplo para sustentabilidade no Brasil, tem pastores falando sobre acidentes na TV e luta política entre políticos de direita. Não vejo como, caso a situação política não se altere, o estado do Amazonas realmente seja um potência no âmbito da sustentabilidade. No entanto, ainda sinto esperança ao ver o INPA, a Universidade Federal de Manaus e tantos outros locais em que os cientistas resistem, apesar da política. É uma esperança amarga com senso de urgência.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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