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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    A estrada de Damasco ou como a guerra da Síria foi ganha

    Depois da aliança Damasco-Curdos, a Síria pode vir a se tornar a maior derrota para a CIA desde o Vietnã

    (Foto: Kurdishstruggle via Flickr)

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    Especial para o Consortium News

    Tradução de Patricia Zimbres

    O que vem acontecendo na Síria, depois de um novo acordo negociado pela Rússia, muda radicalmente a totalidade do jogo geopolítico. Tentei resumir isso em um único parágrafo, da seguinte maneira:

    Trata-se "de uma situação quadruplamente vantajosa. Os Estados Unidos salvam a face fazendo uma retirada que Trump pode vender como sendo uma tentativa de evitar um conflito com a Turquia, aliada na OTAN. A Turquia tem a garantia - dada pelos russos - de que o exército sírio irá controlar a fronteira turco-síria. A Rússia evita a escalada da guerra e mantém vivo o processo Rússia-Irã-Turquia. E a Síria acabará por recuperar o controle de seus campos petrolíferos e de todo o nordeste do país".

    A Síria talvez seja a maior derrota para a CIA desde o Vietnã.

    E, no entanto, isso nem de longe esgota a história.

    Permitam-me que eu apresente um breve esboço, em traços históricos amplos, de como viemos parar aqui.

    Tudo começou com uma intuição que tive no mês passado, na fronteira tríplice do Líbano, Síria e Palestina ocupada, seguida de uma série de conversas em Beirute com analistas libaneses, sírios, iranianos, russos, franceses e italianos, todos de primeira linha, tomando também como base minhas viagens à Síria a partir dos anos 1990, tudo isso somado a uma bibliografia selecionada, em francês, disponível no Antoine's, de Beirute.

    Os Vilayets

    Comecemos no século XIX, quando a Síria consistia em seis vilayets, ou províncias otomanas, sem contar Monte Líbano, que desde 1861 tinha status especial em benefício dos cristãos maronitas e de Jerusalém, que era uma sanjak (divisão administrativa) de Istambul.
    Os vilayets não definiam a extremamente complexa identidade síria: por exemplo, os armênios eram a maioria no vilayet de Maras, os curdos em Diyarbakir - ambas agora parte da Turquia, na Anatólia do sul, e os vilayets de Alepo e Damasco, ambos árabes sunitas.

    A Síria do século XIX era a epítome do cosmopolitismo. Não havia fronteiras internas nem muros, tudo era interdependente.

    Então os europeus, tirando partido da Primeira Guerra Mundial, intervieram. A França apoderou-se do litoral sírio-libanês e, mais tarde, dos vilayets de Maras e Mosul (hoje Iraque). A Palestina foi separada do Cham (o "Levante") para ser internacionalizada. O vilayet de Damasco foi dividido em dois: a França ficou com o norte e os britânicos com o sul. A separação entre a Síria e as terras libanesas, preponderantemente cristãs, veio mais tarde.

    Sempre houve a questão complexa da fronteira Síria-Iraque. Desde a Antiguidade, o Eufrates atuou como uma barreira, por exemplo, entre o Cham dos Umayyads e seus ferrenhos rivais da outra margem do rio, os abássidas mesopotâmios.

    James Barr, em seu esplêndido A Line in the Sand, (Uma Linha na Areia), observa corretamente que o Acordo Sykes-Picot impôs ao Oriente Médio o conceito europeu de território: sua "linha na areia" codificava uma separação delimitada entre estados-nação. O problema é que, em inícios do século XX, não havia estados-nação na região.

    O nascimento da Síria tal como a conhecemos hoje foi um trabalho paulatino, envolvendo os europeus, a dinastia hachemita, nacionalistas sírios interessados na construção de uma Grande Síria incluindo o Líbano, e também os maronitas de Monte Líbano. Um fator importante é que poucos, na região, lamentaram deixar de depender da Medina hachemita e, com a exceção dos turcos, a perda do vilayet de Mosul, que se transformou no Iraque após a Primeira Guerra Mundial.
    Em 1925, os sunitas assumiram proeminência de fato na Síria, quando os franceses unificaram Alepo e Damasco. No decorrer da década de 1920, a França estabeleceu também as fronteiras do leste da Síria, e o Tratado de Lausanne, em 1923, obrigou os turcos a abrir mão de todas as possessões otomanas, mas não os excluiu do jogo.

    Não demorou muito para que os turcos começassem a gradualmente avançar sobre o mandato francês, bloqueando assim o sonho de autonomia curda. A França acabou por ceder: a fronteira turco-síria correria paralela à rota da lendária Bagdahbahn - a estrada de ferro Berlim-Bagdá.

    Na década de 1930, a França cedeu ainda mais: o sanjak de Alexandretta (hoje Iskederum, na província de Hatay, Turquia), foi finalmente anexado pela Turquia em 1939, quando apenas quarenta por cento da população era turca.

    A anexação levou ao exílio dezenas de milhares de armênios e foi um golpe tremendo para os nacionalistas sírios. E foi também um desastre para Alepo, que perdeu seu corredor para o Mediterrâneo Oriental.

    Em suas estepes do leste a Síria era ocupada por tribos beduínas. Ao norte, pelo conflito turco-curdo. E ao sul, a fronteira era uma miragem no deserto, que só foi traçada com o advento da Transjordânia. Apenas a frente ocidental, com o Líbano, foi estabelecida e consolidada depois da Segunda Guerra Mundial.

    Essa Síria emergente, nascida de conflitos entre turcos, franceses, britânicos e uma miríade de interesses locais, obviamente não poderia satisfazer a nenhuma dessas comunidades, como de fato não aconteceu. No entanto, o coração da nação consistia no que era descrito como a "Síria útil". Nada menos que sessenta por cento do país era - e continua sendo - praticamente vazio. Mas, em termos geopolíticos, isso se traduz como "profundidade estratégica" - o cerne da questão na guerra atual.

    De Hafez a Bashar

    A partir de 1963, o partido Baath, secular e nacionalista, assumiu o controle da Síria, consolidando finalmente seu poder em 1970, com Hafez-al-Assad que, em vez de se apoiar unicamente na sua minoria alauíta, construiu uma gigantesca e hipercentralizada máquina estatal conjugada a um estado policial. Os principais atores a se recusarem a entrar no jogo foram os membros da Irmandade Muçulmana, que acabaram sendo massacrados na pesadíssima repressão de Hama, em 1982.

    Secularismo e estado policial: foi assim que o frágil mosaico sírio foi preservado. Mas já em 1970, grandes fraturas começaram a se manifestar: entre as principais cidade e a periferia paupérrima; entre o oeste "útil" e o leste beduíno; entre árabes e curdos. Mas as elites urbanas nunca se opuseram à vontade férrea de Damasco: o compadrio, afinal, era bem lucrativo.

    A partir de 1976, Damasco passou a intervir pesadamente na guerra civil do Líbano a convite da Liga Árabe, na condição de "força pacificadora". Na lógica de Hafez al-Assad, enfatizar a identidade árabe do Líbano era de importância essencial para a recuperação da Grande Síria. Mas o controle sírio sobre o Líbano começou a se desfazer em 2005. Após o assassinato do ex-primeiro-ministro libanês Rafiq Hariri, muito próximo à Arábia Saudita,  o Exército Árabe Sírio acabou por se retirar.

    Bashar al-Assad assumiu o poder em 2000. Ao contrário de seu pai, ele entregou a gestão da máquina estatal aos alauitas, evitando assim a possibilidade de um golpe, mas alienando totalmente do homem comum sírio, que continuava pobre.

    Isso a que o Ocidente chama de Primavera Árabe começou na Síria, em março de 2011, sendo ao mesmo tempo uma revolta contra os alauitas e uma revolta contra Damasco. Totalmente instrumentalizada por interesses estrangeiros, a revolta irrompeu nas extremamente pobres e desoladas periferias sunitas: Deraa ao sul, no leste desértico e nos subúrbios de Damasco e Alepo.

    O que não foi compreendido no Ocidente é que esse "banquete de mendigos" não se voltava contra a nação síria em si, mas contra um "regime". Jabhat al-Nusra, em um exercício de relações públicas, chegou mesmo a romper seus laços com a al-Qaeda e mudar seu nome para Fatah al-Cham, e depois para Hayat Tahrir al-Cham ("Organização para a Libertação do Levante") Apenas o ISIS/Daesh declarou estar lutando pelo fim do Sykes-Picot.

    Em 2014, o campo de batalha perpetuamente móvel estava mais ou menos definido: Damasco contra a Jabhat al-Nusra e o ISIS, com um papel periclitante no nordeste para os curdos, obcecados em preservar os cantões de Afrin, Kobane e Qamichli. Mas o ponto principal é que cada katiba ("grupo de combate"), cada bairro, cada vilarejo e, na verdade, cada combatente, estavam permanentemente mudando de lado.  O resultado foi uma nébula estonteante de jihadis, criminosos, mercenários, alguns deles ligados à al-Qaeda, outros ao Daesh, alguns treinados pelos americanos, outros apenas tentando ganhar um dinheirinho rápido.

    Por exemplo, os salafistas, - generosamente financiados pela Arábia Saudita e pelo Kuwait e em especial pelo Jaish al-Islam, chegaram a fazer alianças com o curdos do PYD, na Síria, e com os jihadis do Hayat Tahrir al-Cham (a al-Qaeda da Síria, agora reorganizada e com efetivos de trinta mil combatentes). Enquanto isso, os curdos do PYD (uma emanação do PKK dos turcos curdos, que Ancara vê como "terroristas") lucraram com toda a maldita confusão - somada à deliberada ambiguidade de Damasco - na tentativa de criar sua Rojava autônoma.

    Aquela Profundidade Estratégica Turca

    A Turquia mergulhou de cabeça. Turbinada pela política neo-otomana do ex-chanceler Ahmet Davutoglu, a lógica era a de reconquistar partes do Império Otomano e se livrar de Assad, porque ele havia ajudado os rebeldes curdos do PKK na Turquia.

    O Strategik Derinlik ("Profundidade Estratégica") de Davutoglu, publicado em 2001, foi um sucesso estrondoso na Turquia por reivindicar a volta dos gloriosos oito séculos de um vastíssimo império, comparado aos míseros 911 quilômetros das fronteiras traçadas pelos franceses e pelos kemalistas. Bilad al Cham, a província otomana que reunia o Líbano, a Palestina histórica, a Jordânia e a Síria, continuou sendo um ímã poderoso no inconsciente sírio e turco.

    Não é de admirar que Recep Erdogan, da Turquia, estivesse tão entusiasmado: em 2012, ele chegou a se gabar de estar se preparando para rezar na mesquita de Umayyad, em Damasco, após a mudança de regime, é claro. Desde 2014 ele vem usando de força para tentar criar uma zona segura dentro das fronteiras sírias - na verdade, um enclave turco. Para conseguir isso, ele usou um bando de atores bastante infames - das milícias estreitamente ligadas à Irmandade Muçulmana até gangues turcas barra-pesada.

    Com a criação de um Exército Livre Sírio, a Turquia, pela primeira vez, permitiu que grupos armados estrangeiros operassem dentro de seu território. Um campo de treinamento foi montado em 2011, no sanjak de Alexandretta. O Conselho Nacional Sírio foi também criado em Istambul, formado por um bando de figuras apagadas da diáspora, que há décadas não punham os pés na Síria.

    Ancara possibilitou a criação de uma verdadeira Estrada Jihadista - com homens da Ásia Central, Cáucaso, Magreb, Paquistão, Xinjiang que estavam em vários pontos do norte da Europa sendo contrabandeados livremente de um lado para o outro. Em 2015, Ancara, Riad e Doha montaram o temido Jaish al-Fath ("Exército da Conquista"), que incluía a Jabhat al-Nusra (al-Qaeda).

    Ao mesmo tempo, Ancara mantinha uma relação extremamente ambígua com o ISIS/Daesh, comprando seu petróleo contrabandeado, tratando jihadistas em hospitais turcos e dando zero atenção a informações sobre os jihadistas coletadas e desenvolvidas em território turco. Por pelo menos cinco anos, o Serviço de Inteligência turco forneceu apoio logístico e político à oposição síria, ao mesmo tempo em que armava uma galáxia de salafis. Afinal, Ancara acreditava que o ISIS/Daesh só existia devido ao "mal" perpetrado pelo regime Assad.

    O Fator Russo

    A primeira grande mudança de cenário foi a espetacular entrada da Rússia no verão de 2015. Vladimir Putin havia convidado (link) os Estados Unidos a se juntarem à luta contra o Estado Islâmico, da mesma forma que a União Soviética havia se aliado aos Estados Unidos contra Hitler, negando a ideia americana de que se tratava de uma tentativa russa de restaurar sua glória imperial. Mas o plano americano, no governo Barack Obama, era outro: apostar obstinadamente nas desordenadas Forças Democráticas Sírias (SDF), uma mistura de curdos e árabes sunitas lutando a norte do Eufrates até Raqqa e Deir ez-Zor, com o apoio do poderio aéreo e das Forças Especiais dos Estados Unidos, para esmagar o ISIS-Daesh.

    Raqqa, transformada em ruínas pelas bombas do Pentágono, pode ter sido tomada pelo SDF, mas Deir ez-Zor foi tomada pelo Exército Árabe Sírio de Damasco. O objetivo maior dos Estados Unidos era manter o território ao norte do Eufrates sob consistente domínio americano, usando seus representantes, o SDF e o PYD/YPG curdos. Esse sonho americano desfez-se, lamentado igualmente por democratas e republicanos imperiais.

    A CIA vai querer o escalpo de Trump até o Dia do Juízo Final.

    O Fim do Sonho Curdo

    Pensem em um mal-entendido cultural. Por mais que os curdos sírios acreditassem que a proteção americana representava o endosso de seus sonhos de independência, os americanos parecem nunca ter entendido que, no "Grande Oriente Médio", não se pode comprar uma tribo. No máximo pode-se alugar uma. E eles irão usar você segundo seus próprios interesses. Vi isso acontecer desde o Afeganistão até a província iraquiana de Anbar.

    O sonho curdo de um território autônomo e contíguo, de Qamichli a Mabij, acabou. Os árabes sunitas que vivem nesse perímetro irão resistir a qualquer tentativa de domínio curdo.

    O PYD sírio foi formado em 2005 por militantes do PKK. Em 2011, sírios do PKK vieram de Qandil - a base do PKK no norte do Iraque - para montar a milícia YPG para o PYD. Em áreas predominantemente árabes, os curdos sírios controlam o governo porque, para eles, os árabes não passam de um bando de bárbaros, incapazes de construir sua sociedade "democrática, socialista, ecológica e multicomunitária".

    Dá para imaginar o quanto os conservadores líderes tribais sunitas odeiam os curdos. Não há a menor possibilidade de esses líderes virem algum dia a apoiar os curdos contra o Exército Árabe Sírio ou contra o exército turco: afinal, esses líderes tribais passam boa parte do tempo em Damasco buscando o apoio de Bashar al-Assad. E agora, os próprios curdos aceitaram esse apoio frente à invasão turca, para a qual Trump deu sinal verde.

    A leste de Deir ez-Zoz, o PYD/YPG já teve que dar adeus à região que é responsável por cinquenta por cento da produção do petróleo sírio. Damasco e o Exército Árabe Sírio agora estão dando as cartas. O que resta ao PYD/YPG é se resignarem à proteção de Damasco e da Rússia contra a Turquia, e com a chance de exercerem soberania nos territórios exclusivamente curdos.

    A Ignorância do Ocidente

    O Ocidente, com sua típica arrogância orientalista, nunca entendeu que os alauitas, cristãos, ismaelis e druzos da Síria sempre privilegiarão a proteção de Damasco, comparada ao uma "oposição" monopolizada por islamitas radicais, para não dizer jihadistas. O Ocidente também não entendeu que o governo de Damasco, por sobrevivência, poderá sempre contar com as formidáveis redes do partido Baath, somadas aos temidos mukhabarat - os serviços de inteligência.

    A Reconstrução da Síria

    A reconstrução da Síria pode custar até 200 bilhões de dólares, e Damasco já deixou claro que os Estados Unidos e a União Europeia não são bem-vindos. A China estará na linha de frente, juntamente com a Rússia e o Irã. Esse projeto seguirá estritamente as regras do manual da integração eurasiana - e os chineses tentarão ressuscitar o posicionamento estratégico da Síria na Antiga Rota da Seda.

    Quanto a Erdogan, em quem praticamente ninguém confia, e um pouquinho menos neo-otomano que em um passado recente, ele parece ter entendido que Bashar al-Assad "não vai embora", e que ele terá que aprender a conviver com esse fato. Ancara fatalmente continuará envolvida com Teerã e Moscou na busca de uma solução ampla e constitucional para a tragédia síria por meio do que era o "processo Astana", mais tarde desenvolvido em Ancara.

    É claro que a guerra pode não ter sido ganha por completo. Mas, apesar de tudo, é evidente que uma nação síria unificada e soberana fatalmente irá prevalecer sobre todas as cepas perversas de coquetéis molotov geopolíticos tramados nos laboratórios sinistros da OTAN/GCC (Conselho de Cooperação do Golfo). A história acabará por nos mostrar que, servindo de exemplo ao Sul Global, a guerra da Síria permanecerá como o grande ponto de virada.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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