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    Boaventura de Sousa Santos

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    A Europa e a guerra da Ucrânia

    O sociólogo Boaventura de Sousa Santos explica o que está acontecendo ao redor da Ucrânia e os movimentos dos principais atores na crise

    Soldado ucraniano perto de Donetsk (Foto: Reuters)

    Por Boaventura de Sousa Santos

    Os exigentes desafios que o mundo enfrenta neste momento – da crise climática à pandemia, do agravamento da Guerra Fria ao perigo de uma confrontação nuclear, do aumento das violações dos direitos humanos ao crescimento exponencial do número de refugiados e de pessoas com fome – exigem mais do que nunca uma intervenção ativa do ONU, cujo mandato inclui a manutenção da paz e da segurança colectivas e a defesa e promoção dos direitos humanos. Entre muitas áreas de intervenção em que a ONU pode intervir, uma das mais importantes é a da paz e segurança, e diz respeito concretamente ao agravamento da Guerra Fria. Iniciada por Donald Trump e prosseguida com entusiasmo por Joe Biden, está em curso uma nova Guerra Fria que tem aparentemente dois alvos, a China e a Rússia, e duas frentes, Taiwan e Ucrânia. 

    Parece insensato que uma potência em declínio, como são os EUA, se envolva numa confrontação em duas frentes simultaneamente. Além disso, ao contrário do que se passou com a Guerra Fria anterior, visando a União Soviética, a China é uma potência de grande poder económico e um importante credor da dívida pública dos EUA. Está a ponto de ultrapassar os EUA como a maior economia mundial e, segundo a National Science Foundation dos EUA, teve pela primeira vez em 2018 uma produção científica superior à dos EUA. Acresce que a lógica aconselharia os EUA a ter a Rússia como aliada e não como inimiga, não só para a separar da China, como para acautelar as necessidades energéticas e geoestratégicas da sua aliada histórica, a Europa. A mesma lógica aconselharia a UE a ter presente as relações históricas e económicas da Europa central com a Rússia (até à Ostpolitik de Willy Brandt).

    É particularmente preocupante que os neocons (os políticos e estrategas ultra-conservadores que desde o ataque às Torres Gémeas em 2001 dominam a política externa dos EUA) acirrem simultaneamente as hostilidades com a Rússia e apelem para que os EUA se preparem para uma guerra com a China no final da década, uma guerra quente de tipo novo (a guerra com os meios da inteligência artificial). O poder midiático internacional dos neocons é impressionante. Tal como aconteceu em 2003 com os preparativos da invasão do Iraque, assistimos a uma unanimidade alarmante dos comentaristas de política externa no mundo ocidental. De repente, a China, que até agora era um parceiro comercial importante e confiável, passa a ser uma ditadura que viola massivamente os direitos humanos e uma potência malévola que quer controlar o mundo, desígnios que têm de ser neutralizados a todo o custo. 

    Por sua vez, a Rússia, até agora um parceiro estratégico (caso do acordo nuclear com o Irã), é agora um país governado por um presidente autoritário e agressivo, Vladimir Putin, que quer invadir a democrática Ucrânia. Para a defender, os EUA ajudarão militarmente e, para isso, a Ucrânia deve juntar-se à OTAN. Esta narrativa, apesar de ser falsa, é reproduzida sem contraditório no Washington Post e no New York Times, é depois ampliada pela Reuters e Associated Press e secundada pelos briefings das embaixadas dos EUA. Os comentaristas ocidentais apenas a regurgitam acriticamente. Perante isto, é urgente que se faça ouvir e sentir a intervenção da ONU para travar a escalada de uma terceira guerra mundial.

    A ONU tem informação abundante que lhe permite contrariar esta narrativa e intervir ativamente para neutralizar o seu potencial destrutivo. A Ucrânia é um país etnolinguisticamente dividido entre um ocidente predominantemente ucraniano e um oriente predominantemente russo. Ao longo da década de 2000, as eleições e os inquéritos de opinião revelaram a oposição entre um ocidente pró-União Europeia e pró-OTAN, por um lado, e um oriente pró-Rússia, por outro. Em termos de recursos energéticos, a Ucrânia depende em 72% do gás natural da Rússia, tal como acontece com outros países europeus (a Alemanha depende em 39%), o que dá uma ideia do poder de negociação da Rússia neste domínio. Desde o fim da União Soviética, os EUA vem tentando retirar a Ucrânia da órbita da Rússia e integrá-la na órbita do mundo ocidental e, de fato, transformá-la num bastião pró-norteamericano na fronteira da Rússia. Esta estratégia tem tido pilares: integrar a Ucrânia militarmente na OTAN (aprovada na Cúpula de Bucareste de 2008, tal como a Geórgia, outro país com fronteira com a Rússia) e economicamente na União Europeia. 

    A revolução laranja, ou melhor, o golpe de 22 de Fevereiro de 2014, fortemente apoiado pelos EUA, foi o pretexto para acelerar a estratégia ocidental. Teve a sua causa imediata na recusa do presidente Yanukóvytch em assinar um acordo de integração económica com a UE que deixava de fora a Rússia. Seguiram-se protestos, muita agitação social e uma repressão governamental brutal que levaram a mais de 60 mortes (sabe-se hoje que havia grupos fascistas fortemente armados entre os manifestantes). Em 22 de fevereiro, o presidente foi obrigado a sair do país. A “promoção da democracia” conduzida pelos EUA tinha dado resultado: a “revolução laranja” iniciava a sua política anti-russa. A Rússia tinha avisado que a integração da Ucrânia à OTAN e sua integração exclusiva na União Europeia constituía uma “ameaça direta” à Rússia. Nos meses seguintes, a Rússia ocupou a Crimeia onde já tinha uma importante base militar.   

    Em 2014 e 2015 celebraram-se os protocolos de Minsk com a intermediação da Rússia, França e Alemanha. Reconhecia-se a especificidade etnolinguística da região do rio Don (Donbas) (maioritariamente de língua russa) e previa-se o estabelecimento, a cargo da Ucrânia e segundo a lei ucraniana, de um sistema de autogoverno para a região (que abrange áreas dos distritos de Donetsk e Luhansk). Estes protocolos nunca foram cumpridos pela Ucrânia. A tensão voltou agora a aumentar com a suposta intenção da Rússia de invadir a Ucrânia. E é mesmo provável que o faça (certamente limitada à Ucrânia oriental etnicamente russa) se a OTAN, os EUA e a EU continuarem sua política de hostilização.  

    Perante tudo isto, é de perguntar se quem tem vindo a criar perturbação nesta região do mundo é a Rússia ou os EUA. Todos nos recordamos da crise dos mísseis de 1962, quando a União Soviética se propôs instalar mísseis em Cuba. A reação norte-americana foi terminante; tratava-se de uma ameaça directa à soberania dos EUA e em nenhum caso se aceitariam tais armas na sua fronteira. Chegou a soar o alarme de uma guerra nuclear. Foi esta reação muito diferente da reação actual da Rússia perante a perspectiva de a Ucrânia vir a integrar a OTAN? 

    Em 2017, foi tornado público o relato da reunião entre o Secretário de Estado norte americano James Baker e Mikhail Gorbachev realizada em 9 de fevereiro de 1990. Nessa reunião foi acordado que se a Rússia facilitasse a reunificação da Alemanha, a OTAN “não se expandiria um centímetro para leste”. Apesar disso e de extinto o Pacto de Varsóvia, nove anos depois a Polônia, Hungria e República Checa juntavam-se à OTAN. E nenhum comentarista se lembra que em 2000, quando chegou ao poder, Vladimir Putin manifestou publicamente o desejo de a Rússia vir a integrar a OTAN e também para a Rússia “não ficar isolada na Europa”. Tanto o acordo de 1990 como o pedido de 2000 os pedidos foram recusados.     

    Em face disto, a ONU sabe que a Rússia não é a única potência agressiva no conflito atual, e que bastaria que os acordos de Minsk fossem cumpridos pela Ucrânia para a hostilidade cessar. Porque é que a Ucrânia não pode permanecer um país neutro como a Finlândia, a Áustria ou a Suécia? Se houver guerra nesta região, o teatro de guerra será a Europa, e não os EUA. A mesma Europa que há pouco mais de 70 anos se ergueu de um inferno de duas guerras mundiais que levaram a cerca de 100 milhões de mortes. Se a ONU quer ser a voz da paz e da segurança que consta do seu mandato, tem de assumir uma posição muito mais ativa e mais independente da dos países envolvidos. Tem de averiguar in situ o que se passa nos territórios onde as grandes potências se digladiam e se preparam para guerras de hegemonia em que provavelmente serão os aliados menores a sofrer as consequências e a pagar com vidas (Taiwan ou Ucrânia) –  as chamadas proxy wars—mesmo se a política agressiva do “regime change” visa a Rússia e a China, eventualmente com resultados semelhantes aos que teve no Iraque, na Líbia ou no Afeganistão. 

    O mundo precisa ouvir vozes autorizadas que não repitam o script imposto pelos rivais. A mais autorizada de todas é a da ONU.

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    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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