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Heba Ayyad

Jornalista internacional e escritora palestina

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A Frota Fantasma Russa e os temores do Ocidente

"Rússia conseguiu contornar sanções ao encontrar novos clientes"

(Foto: Sputnik / Alexey Filippov)

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Durante a primeira semana de julho de 2024, a União Europeia impôs novas sanções à Rússia devido à sua guerra na Ucrânia. Desta vez, visam a frota de navios-tanque de Moscou que transportam gás natural liquefeito por toda a Europa, além de uma série de empresas envolvidas nesta operação, e uma lista de 50 funcionários russos liderada pelo presidente Vladimir Putin e pelo ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov.

Esta rodada de sanções visa especificamente impedir a Rússia de utilizar os portos da União Europeia para enviar gás a terceiros, a fim de restringir suas exportações de gás e forçá-la a recorrer a rotas mais caras. A União Europeia estima que cerca de 4 a 6 bilhões de metros cúbicos de GNL russo foram enviados para países terceiros através de portos da UE durante o último ano.

A mídia costuma chamar esta frota de navios-tanque russos de "frota fantasma" devido à dificuldade de monitorá-la e rastreá-la. Este nome é geralmente usado para se referir a grupos de navios misteriosos cuja localização exata não pode ser rastreada, sua rota traçada ou sua propriedade atribuída a um país ou empresa específica. Esses navios são geralmente utilizados por países que enfrentam sanções comerciais, como Irã, Coreia do Norte ou Rússia, para evitar essas sanções, em particular os navios fantasmas russos, que têm missões militares, levantando assim mais preocupações na Europa e no Ocidente.

Como os navios se transformam em fantasmas?

Aqui surge uma questão importante: como podem navios tão enormes serem escondidos? A resposta é que os navios antigos geralmente não seguem os mais recentes padrões de segurança conhecidos no mundo marítimo e utilizam o que é conhecido como "Sistema de Identificação Automática" (AIS), um sistema de rastreamento instalado nos navios que determina sua localização através da troca eletrônica de dados com outros navios próximos, estações de monitoramento e satélites, em tempo real e automaticamente, sem interferência do navio. Ao desativar os transponders AIS, o navio pode simplesmente desaparecer no mar.

Essencialmente, o AIS é utilizado para melhorar a segurança marítima, fornecendo informações em tempo real sobre a posição de uma embarcação (latitude e longitude), velocidade, rumo, nome da embarcação e número IMO, tipo e dimensões da embarcação. Mais importante ainda, ajuda a monitorar e gerir o tráfego marítimo, a identificar atividades suspeitas e a melhorar as operações de segurança. Isso é precisamente o que a Rússia, ou qualquer país que queira esconder suas atividades marítimas dos olhos da supervisão internacional, não deseja. Para desabilitar este sistema nas naves alvo, simplesmente transformando-as em fantasmas.

Além de desabilitar o sistema de identificação automática, há diversas manobras realizadas pelos russos, como transferências de petróleo ou gás russo e até mesmo outras mercadorias que são frequentemente transferidas de um navio para outro em águas internacionais, e isso pode ocorrer uma ou mais vezes. Isso complica o processo de rastreamento e obscurece a origem e o destino da remessa.

Além disso, os navios fantasmas russos possuem estruturas de propriedade complexas, uma vez que a propriedade dos navios é registrada em países que têm regulamentos menos rigorosos, além de criar múltiplas e diversas empresas falsas que possuem múltiplas referências jurídicas, tornando-as difíceis de rastrear e revelar sua identidade. Isso às vezes inclui documentos com informações imprecisas que os navios carregam sobre sua identidade e a origem de sua carga.

É claro que a Rússia também se beneficia de seus esforços para esconder seus navios dos portos de países que são amigos, solidários ou, pelo menos, neutros em relação a eles, desde que esses países se beneficiem do processo de camuflagem em favor dos russos, permitindo que esses navios atraquem e realizem seu trabalho com o mínimo de escrutínio. Junto a isso, os navios russos percorrem rotas marítimas alternativas que são menos monitoradas pelas potências ocidentais para reduzir os riscos de embargo.

Mais empresas fantasmas

Quando essas empresas, criadas para encobrir os navios, são expostas por alguma razão, a marcha da "frota fantasma" não para. Surgem mais empresas alternativas para controlar os mesmos navios, que mudam completamente sua identidade e são inseridos numa complexa rede burocrática. Por exemplo, a empresa indiana de gestão de navios Jatik emergiu subitamente como um grande transportador de petróleo russo após o início da guerra na Ucrânia em 2022. Após seus navios passarem pelo escrutínio internacional, essas embarcações foram vendidas para outras empresas até então desconhecidas.

Nos meses seguintes, mais navios de formas semelhantes se juntaram à Frota Sombria a um ritmo extraordinário. Após doze meses de guerra, a frota cresceu para cerca de 600 navios-tanque, juntamente com outros tipos de navios. Estimativas conservadoras indicam que a Rússia opera atualmente 400 navios-tanque dentro de sua frota furtiva.

Para ocultar esses navios, especialistas estimam que dezenas de empresas marítimas ligadas ao governo russo foram criadas para esse fim. Elas estão envolvidas numa rede de complexidade comparável às empresas privadas de segurança russas, com mudanças constantes. As empresas são criadas rapidamente para fins específicos, mas também acabam rapidamente, sendo substituídas por novas empresas, num fenômeno semelhante ao movimento de bolhas na superfície da água fervente, que surgem por segundos e depois colapsam para serem substituídas por novas bolhas.

Essas empresas não são utilizadas apenas para ocultar o movimento de navios furtivos. Conforme destacado pela Windward, uma empresa especializada em gestão de riscos marítimos, a guerra da Rússia contra a Ucrânia levou ao surgimento de uma nova classe de navios chamada 'Frota Cinzenta'. Esses navios não são totalmente furtivos, mas é difícil verificar sua propriedade e o cumprimento das sanções, pois frequentemente mudam de bandeira (que indica o país de registro do navio) e utilizam a cobertura dessas empresas de fachada para fazer isso. Atualmente, estima-se que existam cerca de 1.000 navios cinzentos em todo o mundo, além de aproximadamente 1.400 navios fantasmas, embora seja difícil determinar os números precisos devido à ambiguidade que envolve esse tipo de atividade.

Da Libéria ao Gabão... Amigos russos em serviço

A bandeira hasteada por um navio, conhecida no mundo marítimo como "bandeira de conveniência" ou "flâmula de navio", é essencial para a questão da ocultação da identidade das frotas furtivas e cinzentas. Ela indica o país onde o navio está registrado, mesmo que a empresa que o opera seja afiliada a outro país. Geralmente, as empresas registram navios em países onde os procedimentos são legal e financeiramente fáceis de serem cumpridos, incluindo países como Libéria, Panamá, Malta, Grécia, Ilhas Marshall e Gabão.

No Mar Báltico, por exemplo, uma arena de competição geopolítica entre Rússia e Europa, tem-se observado um número crescente de navios que arvoram a bandeira da Libéria. Essas bandeiras aumentaram significativamente desde 2022, indicando um aumento nas operações de navios fantasmas. Acredita-se recentemente que o Gabão se tornou um destino favorito para os navios furtivos russos, com o número de navios registrados no Gabão tendo dobrado durante o primeiro semestre de 2023. Estima-se que a grande maioria dos petroleiros sob essa bandeira não tenha um proprietário conhecido, apontando para a Rússia como potencial beneficiária.

Parece que a Rússia encontrou uma maneira de se movimentar no mundo dos vastos mares, contornando as sanções ocidentais, mesmo que parcialmente. Mas o que muitas vezes é esquecido é o impacto desses navios fantasma na indústria naval global. Os russos, e possivelmente outros países sancionados utilizam, e compram, navios antigos que podem ser facilmente camuflados, aumentando assim a probabilidade de que uma porcentagem significativa desses navios tenha mais de vinte anos de idade. A frota global de petroleiros tem crescido desde o início da guerra russa contra a Ucrânia e é provável que continue a crescer.

Existem muitos riscos associados ao aumento do número de navios antigos que possuem equipamento técnico deficiente, níveis precários de manutenção e cobertura de seguro insuficiente. O aumento da probabilidade de acidentes no mar é o risco mais óbvio. O American Enterprise Institute relata que só em 2023 ocorreram mais de 40 incidentes atribuídos a navios fantasmas, desde falhas de motores até incêndios, explosões e colisões.

Apesar desses riscos, os navios fantasmas desempenham um papel indispensável para os países sancionados, especialmente aqueles que dependem fortemente das exportações. No caso da Rússia, por exemplo, as sanções ocidentais têm como objetivo sufocar as atividades comerciais do país e tornar a vida diária dos cidadãos mais difícil, levando-os a questionar as políticas do regime, estabelecendo um teto para os preços e bloqueando as companhias marítimas do Ocidente, entre outras medidas, enquanto o resto do mundo participa de suas exportações.

Porém, a Rússia conseguiu contornar essas sanções ao encontrar novos clientes, utilizando extensivamente navios fantasmas para enviar petróleo e gás através de embarcações que aparentemente não são russas. Às vezes, até mesmo portos europeus são utilizados para exportar petróleo e gás para terceiros. A Rússia começou a expandir essa frota com as sanções econômicas impostas pelos países ocidentais após a anexação da Península da Crimeia em 2014 e investiu ainda mais após a guerra contra a Ucrânia em 2022.

Mas tudo o que foi dito acima, por mais importante que seja, não é o único objetivo desses navios, e é precisamente isso que preocupa o Ocidente atualmente, uma vez que esses navios poderiam ser usados como parte da guerra híbrida que a Rússia está atualmente travando contra o Ocidente. A guerra híbrida é definida como uma estratégia que combina a guerra tradicional com a guerra irregular, onde existem forças armadas regulares de natureza tradicional que utilizam táticas e equipamentos militares padrão, misturados com táticas de guerra irregular, tais como sabotagem de infraestruturas inimigas ou ataques cibernéticos.

Há vários meses, um documentário investigativo exibido na Noruega, Dinamarca e Finlândia, entre outros países, afirmou que "navios fantasmas" russos percorriam o local das explosões nos gasodutos Nord Stream, que transportam gás da Rússia para a Alemanha e Europa Ocidental através do Mar Báltico, na época das explosões em setembro de 2022. Os jornalistas que prepararam o documentário usaram dados de código aberto para examinar o navio russo de pesquisa marinha "Sibiryakov", o rebocador "SP-123" e um terceiro navio da frota russa, cuja identidade não foi determinada, pois o sistema de identificação automática de todos esses navios estava desligado. Este é um sinal distintivo de atividade de navios fantasmas.

A pesquisa investigativa da equipe mostrou que o primeiro navio visitou a área próxima ao local da explosão do Nord Stream em junho de 2022, e outro navio entrou na área posteriormente: o "Sibiryakov", um navio de pesquisa científica cuja tripulação pode operar equipamentos subaquáticos e lançar veículos para trabalhar debaixo d'água, e o rebocador SP-123 estava presente na área apenas cinco dias antes do início das explosões.

Isso não é considerado uma prova definitiva do envolvimento direto da Rússia na operação Nord Stream, mas apenas apontar isso, mesmo à distância, aumenta os receios ocidentais, especialmente com uma grande torrente de ataques cibernéticos russos contra governos europeus, além dos esforços russos para desenvolver armas a distâncias incomuns, superando as capacidades do Ocidente, ou pelo menos colocando-os em um dilema, como mísseis anti-satélite que poderiam causar grandes danos à infraestrutura desses países.

Os navios fantasmas são, portanto, apenas um dos vários meios que os russos utilizaram para alcançar um certo grau de equilíbrio e dissuasão contra seus inimigos ocidentais, especialmente depois que a guerra na Ucrânia durou tanto tempo e parece que, em certo ponto, não terminará com uma vitória decisiva como os russos inicialmente desejavam. A Rússia está, portanto, readaptando sua estratégia na Ucrânia para se ajustar à chamada 'guerra eterna'. O termo geralmente refere-se a um estado de guerra contínuo, sem condições claras para seu fim. A adaptação russa ao novo estilo de guerra tem como seu cerne as sanções em curso, que não parecem que estão próximas do fim.

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