A grande mentira da vitimização dos neofascistas
Bolsonaro e sua tropa de choque, capitaneada por seus filhos incultos, atrevidos e agressivos, adotam o mesmo padrão. Criam crises para, nelas, se fazerem de vítimas. Tudo – as “corporações”, o “sistema”, permeados do “marxismo cultural” – conspira contra “a nova forma de governar”, contra “o projeto escolhido pelos eleitores”, como se projeto houvesse que “eleitores” pudessem conscientemente escolher, aponta o ex-ministro Eugênio Aragão
A pequena república da Áustria está em polvorosa. Uma gravação de vídeo pôs a nu intenções rasteiras da cúpula do FPÖ – o Freiheitliche Partei Österreichs (trad. “Partido Liberal da Áustria”), que, apesar de carregar o adjetivo “liberal” no nome, não passa de um ninho de nazistas saudosistas – de vender ativos estratégicos da economia do país a oligarcas russos, em troca de apoio financeiro e eleitoral. A interceptação conspirativa teria se dado em julho de 2017, às vésperas das eleições federais austríacas, que levariam o FPÖ ao poder, como parceiro minoritário do governo de coalizão com o conservador ÖVP – Österreichische Volkspartei (trad. “Partido Popular Austríaco”).
Os protagonistas do animado convescote regado a muito álcool e clandestinamente interceptado – ocorrido numa vila de veraneio em Ibiza, alugada a quase mil euros por noite – são o presidente do partido (o estridente Heinz-Christian Strache, hoje vice-premiê na coligação de centro-direita que governa a Áustria), o atual líder da bancada do FPÖ no Conselho Nacional, o parlamento austríaco (o pau-para-toda-obra de Strache, Johann Gudenus, filho de um negador do holocausto condenado) e a suposta sobrinha de um oligarca russo de nacionalidade letã. A bilionária é apresentada a Strache por Gudenus, como quem tencionaria investir no mínimo meio bilhão de euros na economia da república alpina. Para tanto, propõe-se a ajudar o FPÖ em troca de facilidades em contratos públicos.
A conversa gira em torno da lavagem de ajuda financeira por meio de uma entidade de utilidade pública não vinculada ao partido, como forma de desviar das exigências legais de registro de doações partidárias no tribunal de contas e de limitação de doações estrangeiras. Afinal, lembra Gudenus a Strache, o dinheiro não seria de procedência “completamente regular”.
A investidora confidencia que estaria prestes a adquirir metade das cotas do principal periódico austríaco, a Kronen-Zeitung, com conversas já bem avançadas com os herdeiros do fundador do jornal. Sugere-se que a compra poderia acontecer antes das eleições para ajudar o FPÖ na campanha. Strache se entusiasma com a perspectiva de, segundo o próprio, poder fazer 34 porcento dos votos ao invés dos 27 porcento previstos, se contar com ajuda de um diário desse porte. Em compensação, a bilionária poderia dar como certo o controle sobre as concessões de autoestradas, hoje com a concessionária Strabag, controlada por um desafeto do chefe do FPÖ. Segundo Strache, se o FPÖ ganhasse com ajuda da russo-letã, “todos os contratos seriam seus”.
Strache adora se apresentar para o público como o único político limpo, diferente dos demais, um cumpridor das leis, que não se mistura com a lama da política dominante. E, na sua conversa indecente com a bilionária faz questão de dizer que “tudo tem que ser de acordo com a lei”, ainda que proponha negócios francamente escusos e fale em limpar a mídia de jornalistas que se oponham ao FPÖ, tratando a classe como a das “maiores prostitutas do planeta”. Elogia o premiê direitista húngaro, Victor Orbán, que, com apoio de um empresário endinheirado, conseguiu assumir todo controle sobre a imprensa de seu país.
A divulgação do vídeo pela bávara Süddeutsche Zeitung e pela revista alemã Der Spiegel desencadeou uma tormenta na política austríaca, já bastante abalada com a parceria entre conservadores e neonazistas que se intitulam de liberais. O jovem premiê Sebastian Kurz, do ÖVP, foi obrigado, diante da comoção pública, a por fim à coalizão e pedir ao Presidente Alexander van der Bellen a dissolução do parlamento e a convocação de novas eleições.
Strache, aos costumes, pediu desculpas a seu eleitorado pelo passo em falso, mas não mostrou propriamente arrependimento, preferindo atacar forças do establishment que não querem uma nova forma de se fazer política.
O discurso é sempre o mesmo entre direitistas que não se conformam com as regras da democracia verdadeiramente liberal-burguesa. Chegam ao poder pelas regras dessa democracia, mas a tacham de “injusta” e “desleal” para com sua forma “diferente” de governar. Acusam a democracia e suas instituições de “sabotar” a direita no poder.
Strache não é diferente de Jair Bolsonaro, sempre à espreita de inimigos, ao invés de se colocar argumentativamente contra os que contestam, dentro do jogo democrático, suas ideias e iniciativas simplórias e rasteiras. E nisso ambos têm longa tradição.
Matéria do Der Spiegel lembra hoje da forma de agir dessa direita desde a época da chegada ao poder de Adolf Hitler, em 1933. A comparação com o que acontece no Brasil de hoje é inevitável. Diz-se na revista alemã:
“Strache permanece Strache. Depois de o mundo inteiro poder testemunhar sua tentativa, inspirada no modelo húngaro, de remodelar o panorama da mídia em seu país com investimentos russos, queixa-se – em sua coletiva de imprensa no sábado – duma campanha "jogada a partir do exterior".
Em completa distorção da situação, trata como escândalo o fato da interceptação clandestina, sem admitir o óbvio: que não teria havido nada para interceptar, se não tivesse formulado tais planos concretos para a transformação da Áustria. A única fonte daquilo que corretamente chama de “lixeira” é ele mesmo. É por isso que nenhum poder no mundo poderia salvá-lo: afundou-se num barco que ele mesmo construiu.
No entanto, toda sua declaração de renúncia foi uma tentativa de dividir a responsabilidade com os outros.
Alguns, como o conselheiro político israelense Tad Silberstein e o satirista alemão Jan Böhmermann, mencionou pelo nome, mas, acima de tudo, entregou-se a insinuações. Apontou para redes e agrupamentos, num tom sinistro, com um horizonte cheio de nuvens cinzentas escuras, em que cada qual da audiência que lhe é simpática pode reconhecer outra coisa.
O poder capaz de mudar – e até de explodir – todas as regras, que tanto fascina a extrema direita, depende de tais projeções. É preciso ser apontado um motivo pelo qual o sistema deve ser derrubado e este é melhor identificado ao atribuir a si o papel da suposta vítima. Somente quando se puder provar que, na relação com um poder superior hostil, todos os meios anteriores de compromisso e de solução de controvérsias são injustos e ameaçadores, é que se pode criar uma situação de emergência legal capaz de legitimar medidas mais extremas. Dificilmente alguma outra imagem pode mobilizar melhor tais energias e aliviar os escrúpulos que a da ameaça de poderes omnipotentes a agirem clandestinamente.
Após a Primeira Guerra Mundial, essa função foi cumprida pela lenda da adaga nas costas, segundo a qual a Primeira Guerra Mundial teria sido vencida pela Alemanha, se, no foro doméstico, imprensa, os políticos e os judeus não tivessem traído os soldados. Durante décadas, os judeus, comunistas e social-democratas foram, aos olhos da direita, os agentes de uma sempre subestimada ameaça – o que alimentou um ódio irracional a desencadear impiedosamente sua atividade cruel e a praticar os maiores crimes da história da humanidade.
Hoje, os tempos e os movimentos são outros, mas os padrões pelos quais se justificam atitudes radicais permanecem semelhantes. Eles [n.t. - a direita radical] não confiam na troca de razões e argumentos, no discurso público, mas apenas na mecânica do poder. Se você demitir jornalistas críticos, estará livre das críticas nesta visão de mundo mecânica. Eis que a ameaça nunca diminui – a possibilidade que a direita tem, na Europa, de alcançar o sucesso eleitoral e assumir a responsabilidade, de acordo com esta lógica, não é prova da fairness do sistema. Qualquer falha dos planos da direita, como o Brexit, não é prova de sua inadequação. Tudo aponta para poderes superiores e ocultos que exigem resposta adequada. Não se trata de concepção, de propostas políticas e possibilidades, mas de proteção e necessidade...”
Bolsonaro e sua tropa de choque, capitaneada por seus filhos incultos, atrevidos e agressivos, adotam o mesmo padrão. Criam crises para, nelas, se fazerem de vítimas. Tudo – as “corporações”, o “sistema”, permeados do “marxismo cultural” – conspira contra “a nova forma de governar”, contra “o projeto escolhido pelos eleitores”, como se projeto houvesse que “eleitores” pudessem conscientemente escolher.
Ainda antes das eleições e durante a campanha, era a Justiça Eleitoral que não prestava, ao adotar um sistema de votação, a urna eletrônica, talhada para “roubar” a vitória de Bolsonaro. O partido adversário foi demonizado como pervertido, com a mentira da “mamadeira de piroca” e o “kit gay” para as crianças nas escolas. Quando ganharam as eleições, já no governo, se puseram a “despetizá-lo”, mesmo que houvesse dois anos que o governo já não era do PT. A partir daí, não se passou uma semana sem uma declaração polêmica de Bolsonaro ou de seus ministros, a causar rebuliço no espaço político. Tem sido tanto vento na farinha, que não se conseguiu cozer um único pão. O governo da direita tem sido um vazio de ideias e projetos e um ataque permanente a todas as instituições e aos atores públicos, como se nada prestasse e tudo tivesse que ser destruído para levar adiante “uma nova forma de governar”, que ninguém, ao certo, sabe o que é.
Para deixar bem claro, os eleitores de Bolsonaro não votaram em projeto nenhum. Votaram contra “tudo que aí está”, mas não votaram a favor de nada, até porque seu candidato fugiu do debate de ideias como o diabo foge da cruz, com medo, de certo, de ser posta à evidência a grande fraude que era sua candidatura. Não pode, por isso, o Sr. Bolsonaro dizer que faz isso ou aquilo porque “o eleitor” assim escolheu. Ele, o eleitor, não escolheu nada. Apenas repudiou. E não se faz um governo somente com repúdios.
Mas agora que percebe dilapidado todo seu ativo político, com a insatisfação contra seu governo crescendo de semana a semana e sem qualquer apoio sólido no legislativo para dar curso a seus projetos de lei mal elaborados e não negociados com a sociedade, quer dar a entender que é impossível governar com as instituições – chamadas de modo pouco definido de “corporações” – porque todas conspirariam contra seu mandato.
É a ladainha de sempre: incapaz de ver que causou ele mesmo sua vulnerabilidade, Bolsonaro distribui a responsabilidade aos outros, “às corporações” que infestam o estado e “tornam o Brasil disfuncional”. Não há diferença entre o Sr. Strache e o Sr. Bolsonaro, afora que o primeiro foi flagrado com a mão na botija e o segundo talvez ainda espere sê-lo, o que não é difícil, dadas as tortas relações de sua família com o submundo do crime carioca. É só uma questão de tempo. E aí veremos se pedirá para sair, como o Sr. Strache, ou se conclamará sua turba para tentar o golpe no grito e na marra.
Esperemos as cenas dos próximos capítulos.
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