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    Roberto Numeriano

    Jornalista e professor com doutorado e pós-doutorado em estudos sobre a atividade de Inteligência de Estado

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    A Inteligência de Estado e a soberania nacional no mundo multipolar

    O Estado brasileiro não possui uma Inteligência civil e militar capacitada para o desafio de uma defesa proativa da soberania nacional

    (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

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    O mundo multipolar em formação requer dos Estados considerar a questão da soberania nacional nos marcos de um novo tipo de contencioso social, econômico e político-ideológico. Trata-se da guerra híbrida, constituída por táticas de cerco, ataque e/ou infiltração em ambientes territoriais ou espaços institucionais, a fim de dissuadir ou anular adversários e inimigos. Nenhum governo ou Estado nacional poderá se considerar prevenido em face do alcance e da dinâmica de blitzkrieg dessas operações bélicas se não instituir uma atividade de Inteligência de caráter preditivo, capacitada também para detectar e anular os ataques.  

    O Estado brasileiro não possui uma Inteligência civil e militar capacitada para o desafio de uma defesa proativa da soberania nacional. Uma das razões reside, por assim dizer, num paradigma que opera como uma espécie de “cunha” doutrinária: desde a criação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), em 1999, a atividade permanece limitada ao espectro essencialmente informativo. Esta realidade se explica em parte pelo fato de que há, ainda, passadas mais de duas décadas, uma identidade doutrinária criptomilitar na formação dos quadros e na gestão da atividade, a qual infiltra e baliza a análise dos fenômenos sociais, políticos, econômicos, ideológicos e culturais. O paradigma informativo constitui uma dimensão importante e necessária da atividade, sem dúvida. No entanto, a gênese geopolítica e geoeconômica em processo, acelerada com o surgimento e/ou protagonismo de novos atores (Brasil, China e Índia, por exemplo), requer a instituição do paradigma preditivo como a dimensão analítica e operacional fundamental da Inteligência brasileira na esfera civil e militar.

    O provimento de informações aos agentes estatais deve ultrapassar, em extensão e profundidade, a típica análise de possibilidades e probabilidades óbvias em cada cenário. Ou conseguimos “enxergar” para além do entorno imediato os desafios ao Estado e à sociedade brasileira (prevenindo também os cercos, as infiltrações e os ataques na guerra híbrida), ou a Inteligência será apenas um grande e caro aparato ineficaz para antecipar cenários e mesmo para agir no gerenciamento de crises. Chegar por último no teatro das batalhas geopolíticas / geoeconômicas e a seguir ser responsabilizada pelos resultados adversos ao interesse nacional não pode ser o destino da Inteligência brasileira.

    Para combater os adversários e inimigos nos marcos da guerra híbrida radicalizada por contenciosos geopolíticos e geoeconômicos, é necessária a refundação da Abin a partir de uma nova política da atividade de Inteligência sob um paradigma essencialmente preditivo (busca esta que é a pedra de toque dos serviços de Inteligência mais avançados na teorização e na prática do que é a atividade). Esta nova política requer a refundação da Abin sob um conceito institucional ampliado nos termos de sua missão estatal e precisa ser concebida sob três grandes premissas, a saber: a) Respeito aos direitos e garantias constitucionais fundamentados na Carta Magna de 1988; b) Eficácia no provimento de conhecimento estratégico, de caráter informativo e/ou preditivo; e c) Responsividade (accountability) em face dos meios e métodos de fiscalização e controle da atividade (estatais e públicos), quanto às suas ações sigilosas, elaboração de relatórios e alvos institucionais.

    De fato, a Abin não deve se revestir de uma função policialesca nem servir como órgão ancilar de ações policiais repressivas dos órgãos que compõem o Sisbin, tampouco criminalizar militantes políticos e se infiltrar em movimentos sociais. É necessário instituir e operar uma ruptura em face de sua identidade criptomilitar, legado autoritário do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), de trágica memória para a democracia brasileira.

    Os “soldados” e “comandantes” da guerra híbrida são quase sempre invisíveis. Mas o alvo é sempre único: submeter a soberania nacional no plano material (as riquezas e os potenciais econômicos nacionais) e no plano simbólico (anular e/ou mitigar qualquer capacidade de análise crítica e reação de forças políticas e instituições nacionais contra este novo jugo). O Estado brasileiro e a sociedade estão sob ataque de agentes internos e externos que, aberta ou veladamente, sob interesses escusos e antinacionais, pretendem alcançar seus objetivos econômicos, sociais, políticos e ideológicos enquanto, na prática, tornam a soberania nacional um mero conceito normativo na Carta Magna de 1988.

    A atividade de Inteligência de Estado não pode mais viver nas ilusões de um mundo “cor de rosa”, imaginando existirem “nações amigas”. Se não são inimigas veladamente, no mínimo são, antes de tudo, interessadas na defesa de seus projetos geopolíticos / geoeconômicos nos diversos cenários das relações interestatais. Cremos mesmo que a profunda crise econômica, social e política brasileira, que vem esgarçando, perigosamente, até os laços de convivência respeitosa e democrática entre os partidos e grupos sociais que pensam e agem em campos opostos, é uma agenda de poder cultivada por interesses de elites internas e externas que pretendem anular o Brasil como pátria soberana e forte no cenário mundial.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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