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    Fernando Lionel Quiroga

    É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

    38 artigos

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    A Lei de Bases e a asfixia do Estado argentino sob Javier Milei

    A partir de agora, a Argentina poderá conhecer de perto quem escolheu para governar o país

    Javier Milei. Foto: Reuters / Agustin Marcarian

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    A Câmara dos Deputados da Argentina concluiu, em 30/04/2024, a votação da Lei de Bases com 142 votos a favor, 106 votos contrários e 5 abstenções. A "Ley de Bases y Punto de Partida para la Libertad de los Argentinos" - antiga “Lei Ônibus”, rejeitada em fevereiro deste ano - materializa o projeto de mercado representado pelo presidente eleito, Javier Milei. A partir de agora, a Argentina poderá conhecer de perto quem escolheu para governar o país. As consequências sociais da reforma deverão se refletir nos próximos meses, mostrando os efeitos das medidas previstas na nova lei. A ingenuidade daqueles que veem nas políticas de ajuste a solução para os problemas econômicos servirá como catalisador para a indignação generalizada do povo argentino. Da Argentina, podemos esperar uma intensificação brutal da desigualdade social. Em breve, as notícias deverão registrar um aumento exponencial de moradores de rua, violência e abandono social. A depressão coletiva, semelhante à que se produziu na Grécia, é o que podemos esperar da Argentina. O neoliberalismo - a última versão do capitalismo - está no centro da reforma do Estado. Argumentos como aqueles que afirmam que o Estado deve ser "desinchado", pois é ele quem produz a desigualdade, como declarou Gabriel Bornoni de "La Libertad Avanza", afirmando que a lei é destinada aos trabalhadores da Argentina, e que tal reforma pressupõe a dissolução dos organismos visando extinguir o "Estado elefante", resume a receita que sustenta a narrativa contada em microcapítulos (memes, fakenews e congêneres da desinformação que proliferam nas redes sociais), cuja função é difundir a velha premissa de que o "Estado" é o causador das crises e dos problemas sociais (o demônio, por assim dizer), e o "mercado" é a única solução para os problemas econômicos (o redentor das mazelas sociais). Mas o que está em jogo no neoliberalismo não é apenas a lógica das privatizações, mas a posse espiritual do Estado, agora controlado pelos superpoderes do chefe do executivo, colocando em risco o próprio sistema democrático e os direitos do cidadão.

    Na lógica interna em que está assentada a falácia de que o problema da crise decorre da ideia ultrapassada de que o inchaço do Estado é o expediente colonizador cuja intencionalidade é também a antiga lógica do extrativismo. Assim como nos dias atuais, a empatia tornou-se um conceito de moda, justamente em um contexto político onde o individualismo torna-se cada dia mais intenso, assim também os movimentos decoloniais e identitários, no epicentro das ciências humanas são o termômetro de que o colonialismo não deve ser apenas compreendido por seus ecos, seus efeitos sombrios após a violência de seus primórdios, mas como sinal de que sua vitalidade está em pleno desenvolvimento. E, o mais grave: assim como "empatia" pode ser o conceito-de-tróia de uma sociedade cujo consumo volta-se cada vez mais para uma fragmentação cujo resultado tende a chegar ao seu mais alto grau de saturação, isto é, a um novo tipo de massificação fabricada pela dimensão do desejo rastreado por algoritmos, assim o decolonialismo e identitarismo pedem por uma interpretação que supere as questões meramente culturais, pedindo uma leitura a partir de sua lógica interna, isto é, aquela que pode ser a armadilha conceitual-chave à serviço do poder econômico. Deste modo, cabe o alerta: nunca como antes as ciências humanas (incluindo a astuciosa filosofia) estiveram tão ameaçadas sob a infusão de conceitos-de-tróia (isto é, aqueles conceitos que, sob a aparência de crítica, possuem em seu interior a potência contrária) - como se vê de modo mais bem acabado no "gramscismo", utilizado pela extrema-direita brasileira. Neste sentido, o que está em jogo na reforma do Estado argentino não é apenas o modo como se entende o Estado, não é apenas uma noção de abordagem conceitual. Tal é o argumento estratégico de uma estrutura conhecida de todos: o colonialismo e seu propósito implicado na dominação e exploração dos recursos naturais, econômicos e humanos em benefício do colonizador. Nada menos do que o aprovado na Lei de Bases: a abertura privatista sobre recursos naturais sem qualquer interferência do Estado e a espoliação dos direitos dos trabalhadores e dos aposentados: fortes sinais de uma exploração econômica sem precedentes. Traduzindo, a Lei de Bases é a imposição de uma lei de escravização do povo argentino. Sua forma de aprovação é o maior indicativo de sua violência colonizadora subjacente: por meio de uma votação intempestiva, sem reflexão ou debate democrático. Sob a falácia do estado de "emergência" - outro termo-chave utilizado pelo neoliberalismo e sua política de choque, votaram-se diretamente os capítulos, desconsiderando-se o exame em pormenor de seus artigos, isto é, seu real conteúdo. Votou-se em favor das Leis do mercado sobre as leis do Estado. É o mercado quem passa a governar a Argentina a partir de agora. Engana-se, por isso, quem pensa que o colonialismo enquanto sistema formal encontra-se diminuído no mundo contemporâneo, restando apenas reverberações de um passado ao qual cabe uma luta quase simbólica para reparar os traumas do passado. O colonialismo é vivo e produz mais miséria do que nunca. O colonialismo é o próprio capitalismo em seu estágio mais predatório da história, já que ambiciona levar à cabo um regime de escravidão em escala global, cujas manchas de sangue permitem-nos aprender algumas lições: 

    a) a de que o pensamento das elites econômicas não é tão "a curto prazo" como aparentemente possa parecer. O método de sua reprodução é racional e leva em conta elementos da crítica que terminam por atuar como cavalos de tróia simbólicos (conceitos, noções, hipóteses e teses) - que sedimentam um tipo de cognição de terceira via para além da dualidade clássica de pensamento, aí alojando-se a confusão de que se segue; 

    b) a apropriação da crítica ao capitalismo a partir de uma dialética da dialética, isto é, o aprofundamento da luta de classes e da estrutura do capital por meio da inversão diametralmente proporcional de suas teses críticas; 

    c) a lacuna, no campo teórico, de uma compreensão mais aprofundada acerca deste nó na dialética histórica perpetrada pelas elites. 

    Assim, a "liberdade" dos argentinos não deve chegar por meio da lei recém aprovada a não ser sob a leitura mais fatalista do que liberdade possa aqui significar, isto é, a própria noção de que não há mais qualquer tipo de proteção por parte do Estado e que, no atual estágio, todos teriam se convertido a figura do Homo Sacer descrito pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. 

    A Lei de bases, à qual se inclui a privatização de onze empresas públicas, ainda conta com o fim da moratória previdenciária, além dos benefícios impositivos às grandes empresas e os superpoderes atribuídos a Javier Milei, de quem se pode esperar a continuação da grande política de desinstalação do Estado por meio de uma orgia de canetadas. Dos aspectos supracitados, a iniciar pela privatização das empresas estatais, cabe esperar uma queda brusca na qualidade dos serviços prestados, o impacto na vida do trabalhador e a perda da soberania nacional, que passa a ser "soberania de mercado". Quanto à eliminação da moratória previdenciária, as consequências devem atingir sobretudo os mais vulneráveis, especialmente aposentados e pensionistas que dependem desses recursos para a própria sobrevivência. Em detrimento das políticas de redistribuição ou de taxação aos mais ricos, a nova Lei prevê benefícios impositivos para as grandes empresas, implicando favorecimentos aos setores privados sobre os encargos sociais. Deve-se destacar, ainda, a ausência do debate como central da presente Lei - sempre sob a guarida moral de uma "medida emergencial", sempre no sentido de um "sacrifício" necessário para evitar um mal maior - nenhuma novidade no modus operandi neoliberal, assentado na “doutrina de choque” genialmente explicada por Naomi Klein, como aquilo que é “essencial” para a instauração das políticas de livre mercado a partir de desastres, fabricados ou naturais. Finalmente, a triste lição que vemos se concretizar na Argentina é, de um lado, a reforma do Estado sob a aparência da única salvação viável de um país atravessado por crises sucessivas; e, de outro, o início de uma era cujos resultados logo se verão estampados nos rostos famintos e desiludidos de um povo a quem caberá a fatal tarefa histórica de buscar forças para reconstruir-se a partir das ruínas. Agora a Lei deve passar pelo Senado. Caso este não a rechace, a Argentina estará a um passo de abrir o capítulo mais sombrio de sua história. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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