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    Slavoj Žižek

    Professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

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    A lição de Lênin

    "Para resistir aos efeitos da exaustão da guerra, os ucranianos devem se colocar no lugar do alpinista de Vladimir Lênin", escreve o filósofo Slavoj Žižek

    Vladimir Lênin (Foto: Reprodução)

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    Publicado originalmente no site A Terra é Redonda

    Se há um elemento do legado político de Vladimir Lênin que vale a pena elogiar um século após sua morte, é sua visão sobre o que é preciso para permanecer verdadeiramente fiel à causa. Seja em Israel ou na Ucrânia hoje, o único caminho político a seguir é aquele que evita o dogmatismo cego e o oportunismo cínico.

    Já se passou um século desde a morte de Vladimir Lênin; já se passaram mais de três décadas desde que seu projeto bolchevique ruiu. Mas, embora grande parte de sua vida política tenha sido altamente problemática do ponto de vista de hoje, seu pragmatismo sem remorso, como se poderia chamá-lo, ainda tem validade.

    Lembre-se do conhecido compromisso de Vladimir Lênin com a “análise concreta da situação concreta”. Deve-se evitar tanto a fidelidade dogmática à causa quanto o oportunismo sem princípios. Sob as condições do mundo real em rápida mudança, a única maneira de permanecer verdadeiramente fiel a um princípio – permanecer “ortodoxo” no sentido positivo do termo – é mudar a própria posição diante da mudança da realidade. Assim, em 1922, tendo vencido a guerra civil contra todas as probabilidades, os bolcheviques abraçaram a “Nova Política Econômica”, dando um espaço muito mais amplo para a propriedade privada e para o mercado.

    Ao explicar essa decisão, Vladimir Lênin usou a analogia de um alpinista que precisa recuar “para saltar mais adiante”. Depois de enumerar as conquistas e fracassos do novo Estado soviético, concluiu: “Os comunistas que não têm ilusões, não cedem ao desânimo; eles preservam a sua força e flexibilidade ‘para começar do princípio’; repetem uma tentativa para realizar uma tarefa extremamente difícil; não estão condenados (e com toda a probabilidade não perecerão)”.

    Ouvem-se ecos de Søren Kierkegaard, o teólogo dinamarquês com quem os marxistas podem aprender bastante. Qualquer processo revolucionário, acreditava Vladimir Lênin, não é gradual, mas repetitivo, um movimento de repetir o começo várias vezes, sucessivamente.

    Qual a melhor forma de apreender a situação em que estamos hoje? Depois do “desastre obscuro” de 1989, que pôs fim definitivo à época iniciada com a Revolução de Outubro de 1917, já não se pode querer qualquer continuidade ao que significou “a esquerda” nos últimos dois séculos. Embora momentos indeléveis como o clímax jacobino da Revolução Francesa e da Revolução de Outubro permaneçam em nossa memória, os influxos desses movimentos acabaram. Tudo deve ser repensado a partir de um novo ponto de partida.

    Uma nova abordagem é mais importante do que nunca dantes fora já que o capitalismo global se tornou a única verdadeira força revolucionária. O que resta da esquerda é o obsessivo esforço em proteger as velhas conquistas do Estado de bem-estar social, um projeto que ignora em grande parte o quanto o capitalismo mudou a textura de relações de nossas sociedades nas últimas décadas.

    Há exceções, claro. Entre os raros teóricos e políticos que reconheceram esse processo pelo que ele é, está Yanis Varoufakis. O capitalismo, ele argumenta, está se transformando em tecno-feudalismo e é por isso que a retórica anticapitalista tradicional continua perdendo força. A implicação é que devemos abandonar a social-democracia e sua ideia central de um Estado de bem-estar social, ou seja, de um liberalismo de esquerda.

    De forma propriamente leninista, Yanis Varoufakis vê que o objeto de nossa análise crítica (capitalismo) mudou e, assim sendo, devemos mudar com ele. Caso contrário, estaremos apenas ajudando o capitalismo a se revitalizar de uma nova forma.

    A forma de pragmatismo de Lênin não está disponível apenas para a esquerda. No mês passado, Ami Ayalon, ex-líder do Shin Bet (serviço de segurança interna de Israel), pediu uma mudança de paradigma: “Nós, israelenses, só teremos segurança quando eles, palestinos, voltarem a ter esperança. Essa é a equação que precisamos resolver.” Como Israel não estará seguro até que os palestinos tenham seu próprio Estado, as autoridades israelenses devem libertar Marwan Barghouti, o líder preso da Segunda Intifada, para liderar as negociações tendo em vista criá-lo.

    “Olhe para as pesquisas palestinas” – diz Ami Ayalon. “Ele é o único líder que pode levar os palestinos a construir um Estado ao lado do Estado de Israel. Primeiro porque ele acredita no conceito de dois Estados e, segundo, porque ele ganhou sua legitimidade mesmo atuando dentro de nossas cadeias.” De fato, muitos veem Marwan Barghouti (preso há mais de duas décadas) como uma espécie de Nelson Mandela palestino.

    Ou considere um exemplo ainda mais surpreendente. Na semana passada, o chefe do exército ucraniano, Valeriy Zaluzhnyi, após relatos da mídia de que ele pode ser demitido em breve de seu cargo, publicou um comentário expondo suas prioridades para a Ucrânia. Ele identificou as mais altas para o esforço de guerra: “o desafio para nossas Forças Armadas não pode ser subestimado” – escreveu. “É preciso criar um sistema estatal completamente novo de rearmamento tecnológico.”

    O que isso significa é uma duplicação de “sistemas não tripulados – como drones – juntamente com outros tipos de armas avançadas, que fornecem a melhor maneira de a Ucrânia evitar ser arrastada para uma guerra posicional, onde não possuímos a vantagem”. O “general de ferro”, como às vezes é chamado, reconheceu então que, com os principais aliados lidando com suas próprias tensões políticas, a Ucrânia deve se preparar para uma redução no apoio militar.

    Vejo o breve comentário de Valeriy Zaluzhnyi como uma intervenção leninista (isto é, pragmática, sobre como lidar com princípios) em circunstâncias adversas. É verdade que os esquerdistas radicais e o próprio Zaluzhnyi considerarão essa caracterização absurda. E eu não sou especialista nas lutas de poder atualmente em curso na Ucrânia, nem sei sobre o papel que Valeriy Zaluzhnyi pode ter nelas. Tudo o que estou dizendo é que Valeriy Zaluzhnyi combinou habilmente a fidelidade ao objetivo (manter a independência e a integridade territorial ucranianas como um Estado democrático) com uma análise concreta da situação no campo de batalha.

    Falando francamente, já passamos da fase heroica da resistência popular ao invasor e do combate pessoal próximo na linha de frente. A Ucrânia deve se reorientar, adotando novas tecnologias apropriadas a uma guerra prolongada e se antecipando à crescente relutância dos países ocidentais em fornecer ajuda indefinidamente. A Ucrânia também precisará colocar sua própria casa em ordem, agindo de forma mais decisiva contra a corrupção e os oligarcas e articulando claramente pelo que está lutando.

    Acima de tudo, a Ucrânia precisa de uma visão compartilhada que não seja estritamente nacionalista ou definida – e esse é ponto crítico – pela suspeita de que a esquerda ucraniana é pró-russa. Para resistir aos efeitos da exaustão da guerra, os ucranianos devem se colocar no lugar do alpinista de Vladimir Lênin.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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