A luta das mulheres na abolição da escravidão no Ceará
"Antes mesmo da assinatura da Lei Áurea, em 1888, o Ceará já havia decretado o fim da escravidão"
O Ceará sempre foi uma terra de resistência. Desde os primeiros tempos da colonização, povos indígenas como os Tremembé, Tapuia e Potiguara enfrentaram a ocupação portuguesa, resistindo à escravização, aos aldeamentos forçados e à perda de seus territórios. Já a população negra, embora não tenha deixado registros marcantes de grandes quilombos como em outras regiões do país, também protagonizou formas de resistência: fugas, boicotes, redes de apoio e gestos importantes de insubordinação, especialmente durante as secas e nos momentos de crise social. É nesse solo de enfrentamento que se forjou a trajetória de luta do povo cearense.
E, ao longo dessa história, as mulheres participaram ativamente das mobilizações sociais, mesmo em contextos em que lhes era negado o direito à voz pública e à liderança política. Bárbara de Alencar, revolucionária da Confederação do Equador. Jovita Feitosa, que tentou romper as barreiras do Exército Imperial. E quando o tema é a abolição da escravidão, a história também conta com a presença ativa de mulheres cearenses — que, mesmo sob as restrições da época, encontraram meios de agir, influenciar e transformar. As “mimosas filhas de Moema” desafiaram o patriarcado e abriram caminhos para as gerações seguintes.
Antes mesmo da assinatura da Lei Áurea, em 1888, o Ceará já havia decretado o fim da escravidão. O dia 25 de março de 1884 marcou o momento em que a província se tornou a primeira do Brasil a libertar oficialmente seus escravizados. A força do movimento abolicionista foi tão intensa que garantiu ao estado o título de “Terra da Luz”. Mas essa conquista não aconteceu do dia para a noite. Menos de um ano antes, em 1º de janeiro de 1883, a então Vila do Acarape (atual cidade de Redenção) se tornou o primeiro município brasileiro a libertar seus escravizados. Esse pioneirismo fez com que a cidade ficasse conhecida como “Rosal da Liberdade”, um título que reforça a importância de Redenção na luta pela abolição. O que começou ali ganhou força e, em pouco tempo, se espalhou por todo o Ceará. A abolição foi resultado de uma mobilização social que envolveu diferentes setores da sociedade. E, nesse processo, as mulheres foram decisivas — nos bastidores, nas ruas, na política e na resistência popular.
O movimento abolicionista cearense
Na segunda metade do século XIX, a economia cearense já não dependia tanto da escravidão quanto em outras partes do Brasil. A pecuária ainda era relevante, mas o algodão começava a se consolidar como motor econômico. Com a Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861–1865), a produção algodoeira do Ceará ganhou impulso, e muitos proprietários passaram a adotar o trabalho assalariado. Aos poucos, o modelo escravocrata foi se enfraquecendo.
A grande seca de 1877 a 1879 acelerou esse processo. O desastre humanitário matou milhares de pessoas e forçou muitos escravizados a abandonarem as fazendas e migrarem para as cidades, onde buscavam formas de sobreviver. Esse cenário desolador fortaleceu ainda mais o movimento abolicionista. De acordo com registros do jornal O Libertador, o projeto abolicionista cearense teve início em meados de 1879 e, no ano seguinte, ganhou forma institucional com a fundação da Sociedade Cearense Libertadora, em 8 de dezembro de 1880, reunindo intelectuais, ativistas e cidadãos comprometidos com a causa. Mas a abolição no Ceará não se deu apenas por meio da política ou da palavra escrita. A resistência popular teve papel essencial — e um de seus maiores símbolos foi Francisco José do Nascimento, conhecido como Chico da Matilde ou Dragão do Mar. Jangadeiro e líder comunitário, ele tornou-se figura central da luta contra o tráfico de escravizados quando, ainda em 1881, organizou uma ação direta que marcaria a história do movimento.
Os portos da província eram, até então, locais de embarque de pessoas escravizadas rumo a outras regiões do país. Mas, liderados por Dragão do Mar, os jangadeiros de Fortaleza se recusaram a transportar cativos até os navios negreiros, impedindo que fossem enviados ao sul. Foi dele a frase que atravessou os tempos: “No porto do Ceará não embarcam mais escravos.” Um gesto de bravura que afrontou diretamente os interesses dos traficantes e dos senhores de escravos. A greve durou meses e representou um duro golpe na economia do tráfico, mas também atingiu profundamente os proprietários locais, que, sem conseguir vender ou transferir seus escravizados, viam-se cada vez mais incapazes de sustentá-los.
Sem o transporte marítimo e sob pressão crescente da sociedade, o sistema escravista começou a ruir. Ao lado dessa resistência popular, atuava a Sociedade Cearense Libertadora, composta por homens e mulheres que organizavam fugas, arrecadavam recursos para a compra de cartas de alforria e pressionavam as autoridades. No centro desse movimento, um grupo ganhou destaque: a Sociedade das Cearenses Libertadoras, formada exclusivamente por mulheres.
Lugar de mulher é na luta
Em Fortaleza, a capital da província, Maria Tomásia Figueira Lima — integrante da aristocracia cearense — destacou-se como uma das principais articuladoras do movimento que levou o Ceará a abolir a escravidão quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea. Cofundadora e primeira presidente da Sociedade das Cearenses Libertadoras, criada em 1882, liderou um grupo de 22 mulheres de famílias influentes que atuaram diretamente pela causa. Na primeira reunião, assinaram 12 cartas de alforria e conseguiram que senhores de engenho do interior do Estado libertassem outros 72 cativos. A ação repercutiu e chegou até o imperador Pedro II, que apoiou financeiramente a iniciativa. As mulheres participaram de reuniões públicas, articularam ações em municípios do interior e publicaram textos na imprensa, defendendo a abolição como imperativo moral e político.
Entre as intelectuais abolicionistas, Francisca Clotilde Barbosa de Lima, natural de Tauá, teve papel marcante. Professora e jornalista, foi uma das primeiras mulheres a escrever nos jornais da província — inclusive no abolicionista O Libertador. Seus textos denunciavam a crueldade da escravidão e defendiam tanto a libertação dos cativos quanto a emancipação feminina. Sua escrita era militante: mobilizava, provocava e desafiava um sistema que excluía as mulheres do debate público.
Outra mulher que teve papel expressivo na campanha abolicionista foi Emília de Freitas, escritora, professora e uma das primeiras romancistas do Ceará. Em uma época em que as mulheres tinham acesso restrito à vida pública, Emília ocupou a palavra impressa com ousadia. Atuou na imprensa escrevendo textos que defendiam a libertação dos escravizados, denunciavam a violência do sistema escravocrata e articulavam a abolição como parte de um projeto mais amplo de justiça social. Em suas obras literárias e artigos, Emília também abordava temas ligados à emancipação feminina, entrelaçando as duas lutas. Sua produção intelectual e militante foi essencial para mobilizar a opinião pública cearense e ampliar o alcance das ideias abolicionistas entre os leitores da província.
Mas a luta abolicionista não se limitou às mulheres brancas da elite ou às páginas dos jornais. Ela também se construiu a partir da resistência negra feminina, muitas vezes invisibilizada pelos registros históricos. Ana Souza, Balbina, Felícia, Joana, Jovita, Maria da Canção, Maria da Ponte, Prudência e Vicência são nomes pouco mencionados, mas lembrados como parte de uma luta coletiva, cotidiana e silenciosa. Entre elas, destaca-se Preta Tia Simoa, cuja história chegou até nós com mais nitidez. Atuou ao lado de Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, e foi peça-chave na desarticulação do tráfico de escravizados ao acolher fugitivos, organizar rotas de fuga e mobilizar comunidades negras. Sua atuação foi decisiva para garantir proteção e dignidade às pessoas que ousavam escapar do cativeiro. Em 2024, a exposição “Anas, Simôas e Dragões: Lutas Negras pela Liberdade”, realizada no Museu de Arte Contemporânea do Ceará, homenageou essas mulheres e reafirmou que a abolição também foi obra de suas mãos negras, firmes e esquecidas, mas jamais irrelevantes.
A abolição não foi um presente. Foi arrancada por força e articulação. Mulheres como Maria Tomásia, Francisca Clotilde, Emília de Freitas e Tia Simoa enfrentaram um sistema patriarcal e escravocrata, encontrando brechas para agir, escrever, proteger e transformar. Suas estratégias — o uso da imprensa, da mobilização política, da solidariedade cotidiana — ecoam até hoje. Como no século XIX, as mulheres continuam ocupando espaços de fala, escrevendo, denunciando, organizando redes de apoio e abrindo caminhos onde há silêncio ou violência. O que mudou foram os meios: da pena aos meios digitais, da carta de alforria à denúncia pública, da casa de apoio ao coletivo feminista. A luta segue. E continua sendo escrita, também, por mãos de mulheres.
Terra da Luz: O legado da abolição cearense
O reconhecimento oficial do 25 de março como Data Magna do Ceará só veio em 2011, com a sanção da Lei nº 15.102, proposta pelo deputado estadual Lula Morais. A lei buscou assegurar que a abolição precoce da escravidão na província não fosse apagada pela história, mas lembrada como um marco de luta coletiva e resistência popular.
Esse feriado não deve ser visto apenas como mais um dia de descanso, mas como um convite à reflexão sobre o significado da liberdade e da justiça. A abolição extinguiu legalmente a escravidão, mas não garantiu igualdade. Sem acesso à terra, à educação ou a condições dignas de trabalho, grande parte da população negra libertada permaneceu à margem da sociedade.
Por isso, lembrar o 25 de março é também reconhecer que a luta pela liberdade não se encerrou em 1884 — ela segue viva nas reivindicações por direitos, reparações e justiça social no Brasil de hoje. É um dia para afirmar que a história da abolição continua a ser escrita, todos os dias, por vozes que ainda lutam contra o racismo e as desigualdades herdadas daquele sistema.
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