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    Raimundo Bonfim

    Coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP)

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    A Luta pela moradia e o assassinato de Marielle

    O motivo para mandar matar Marielle foi a questão fundiária. Seguir sua luta é a melhor homenagem que podemos prestar à sua memória

    Marielle Franco (Foto: Câmara Municipal do Rio)

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    Seis anos depois do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, os supostos mandantes desse crime bárbaro finalmente foram presos pela Polícia Federal. Depois de tanta procrastinação e prevaricação, estamos começando a responder à pergunta que desde 2018 não quer calar: quem mandou matar Marielle? E por quê? Resta saber se a “cadeia de comando” do crime acaba nos irmãos Brasão...

    O fato é que está cada vez mais evidente que, além de configurar mais um episódio de violência contra a mulher, o assassinato da combativa vereadora está ligado à sua incansável luta pela moradia, que acabou contrariando os interesses da especulação imobiliária promovidos pelas milícias cariocas em algumas regiões do Rio de Janeiro. 

    A gênese do fenômeno miliciano é conhecida: nos anos 1980-1990, moradores de alguns bairros e comunidades do Rio, basicamente PMs e policiais civis, a pretexto de combater o narcotráfico, formaram grupos de “autoproteção” – embrião das milícias –, que ocuparam o vácuo deixado pela ausência do Estado nas favelas e em outras comunidades da cidade. 

    Em uma lógica semelhante às da Máfia e dos grupos de extermínio, as milícias cobravam dos moradores “taxas de proteção” e, na medida em que afastavam os traficantes, ganhavam a aceitação por parte das comunidades. Em muitos locais, as milícias acabaram na prática ocupando o lugar que antes era do narcotráfico. Com o tempo, beneficiando-se da redução das operações policiais nas áreas sob seu controle, os milicianos expandiram suas atividades, passando a incluir empreendimentos imobiliários.

    Em determinado ponto, essa expansão imobiliária se tornou uma das principais atividades do crime organizado no Rio de Janeiro, explorando as necessidades habitacionais da população deixada ao léu pelo Estado. Havia uma grande quantidade de pessoas que queria fugir do aluguel, mas que não tinha dinheiro, e as milícias ofereciam muitas “vantagens”, como maior prazo de financiamento do que ofertavam os bancos.

    Na Zona Oeste, o boom imobiliário ilegal avançou inclusive sobre áreas de proteção ambiental, com a abertura de novos loteamentos e até atividades como a extração de pedra e saibro para abastecer as obras ilegais. Em outra frente, os milicianos também promoveram a expulsão violenta de moradores de conjuntos residenciais do Minha Casa, Minha Vida, apropriando-se dos imóveis para vendê-los ou alugá-los.

    Estudiosos definem esse fenômeno como “urbanismo miliciano”, no qual grupos criminosos se associam a políticos e a funcionários públicos para conquistar ilegalmente o controle de terras urbanas. Essa prática envolve o mercado imobiliário, abrangendo grilagem de terras, regularização fundiária e a oferta de serviços urbanos, configurando um sistema corrupto.

    Além de ser uma fonte de renda, essas atividades são instrumentos políticos que, por meio de melhorias como regularização fundiária, obras de infraestrutura e projetos habitacionais, contribuem para ampliar o controle territorial e eleitoral das milícias sobre comunidades inteiras. 

    E alguns vereadores estabelecem vínculos diretos com essas atividades criminosas, aprovando leis que legitimam a apropriação ilegal de terras. As câmaras municipais, portanto, desempenham um papel fundamental na regulamentação dessas práticas. Mas podem trabalhar para contê-las. 

    Esse conluio do crime organizado com o poder público não é exclusivo do Rio de Janeiro, sendo observado em várias cidades brasileiras, incluindo São Paulo, onde a reivindicação popular por moradia acaba muitas vezes sendo cooptada por interesses ligados ao controle territorial ilegal.

    Marielle estava no centro da luta para que moradias fossem destinadas a pessoas de baixa renda, o que contrariava os interesses da milícia, metida até o pescoço na especulação imobiliária. As investigações da PF trouxeram indícios de que os irmãos Brasão – o deputado federal Chiquinho e o conselheiro do TCE Domingos – são suspeitos de terem fortes ligações com esses grupos do crime organizado. 

    Segundo o assassino confesso, o ex-PM Ronnie Lessa, Marielle foi morta porque era um “obstáculo aos interesses dos irmãos”, pois ela incentivava as lideranças comunitárias a não entrar nos loteamentos ligados à milícia. Além disso, Marielle se opôs fortemente ao Projeto de Lei apresentado pelo então vereador Chiquinho, que flexibilizava as regras de ocupação do solo na cidade. Aprovado pela Câmara, O PL acabou sendo considerado inconstitucional pelo TJ do Rio de Janeiro.

    Marielle lutava contra o sequestro do Estado pelo crime organizado, um fenômeno cujas origens remontam à ditadura, quando surgiram os famigerados esquadrões da morte no país. Em suma, o motivo para mandar matar Marielle foi a questão fundiária, do acesso à moradia e ao território. Seguir sua luta é a melhor homenagem que podemos prestar à sua memória.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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