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    Ana Maria Baldo

    Professora da Rede Pública, Mestranda em Educação pela UERGS

    24 artigos

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    A mercantilização da educação

    O neoliberalismo como orientador, como “guia”, para o Estado, além de interferir na produção e criação das políticas públicas educacionais, também se foca na livre iniciativa do mercado e na “formação” de cidadãos que sirvam a determinadas funções dentro do sistema social e econômico

    (Foto: © Arquivo/Agência Brasil)

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    A educação, da escola pública de Educação Básica à Universidade, é um campo (um nicho de mercado) que sempre atraiu o neoliberalismo; é na escola e na Universidade que se “formam” as consciências e onde, além de interferir nos currículos, metodologias e firmar a ideologia dominante com o intuito de manutenção do status quo, o capital pode obter lucro.

    O neoliberalismo como orientador, como “guia”, para o Estado, além de interferir na produção e criação das políticas públicas educacionais, também se foca na livre iniciativa do mercado e na “formação” de cidadãos que sirvam a determinadas funções dentro do sistema social e econômico. É esse modelo ideológico, de Estado mínimo, que fundamenta as políticas de privatização que os governos de direita colocam em prática sempre que o podem. Para os neoliberais a fronteira entre público e privado tende a deixar de existir, mas de uma forma bem específica: o Estado não se mete nos meus lucros, mas me ajuda quando tenho prejuízos (de forma bem simplista é resumível deste modo). E nessa onda de Estado mínimo e lucro acima de tudo, o neoliberalismo, mira a educação como mais um filão a ser arrebanhado.

    E eis que aqui surgem as tão faladas “parcerias público/privadas” onde a educação é destinada à iniciativa privada que realiza sua gestão e organização. Com o discurso da qualidade, da eficiência e do desempenho, avaliadas através da análise dos resultados obtidos pelos alunos e alunas em testes e “provas” finais que demonstrem que os objetivos foram alcançados com sucesso. E o fazem estimulando o individualismo, a competição e a disputa entre os estudantes.

    E de parcerias público/privadas o PSDB entende - e Eduardo Leite, Governador do RS filiado ao partido também. No Rio Grande do Sul, Leite promoveu já no início de seu governo parcerias com empresas privadas que desejam o filão da educação para seus mercados – Fundação Lemann sendo a principal delas, representando uma aliança de organizações do terceiro setor, acompanhada da Fundação Brava, do Instituto Humaniza e do Instituto República – formando a parceria “Qualifica RS”. Nesse primeiro momento as Fundações ficaram com o encargo de “escolher” ou “definir” quem seriam os próximos coordenadores das Coordenadorias Regionais de Educação do RS - CREs. As metodologias de recrutamento utilizadas foram as seguintes, segunda a própria Fundação: “podem participar profissionais com formação superior completa e experiência no setor público ou privado. A seleção será feita por meio de plataforma online e tem cinco etapas: análise curricular, teste de perfil, entrevista por competências, entrevista com especialista e entrevista final”. 

    Destaca-se aqui que as vagas para Coordenação das CREs não estavam restritas a pessoas com formação pedagógica ou de licenciatura, mas para qualquer pessoa com nível superior que tivesse experiência no setor público ou privado, colocando muitas vezes para coordenar a educação de uma região pessoas que sequer possuem vínculo com a educação. Os testes de perfis e as entrevistas visavam, acima de tudo, saber com que ideologia política o candidato se identificava e se estava disposto a ser submisso a qualquer decisão vinda do governo do Estado ou da Secretaria de Educação. 

    Feita a seleção, a Fundação voltou-se para o ensino híbrido. Esse nicho já era visado pelas Fundações e com a pandemia de Covid 19 ganhou mais força e até uma justificativa para sua prática. Segundo a Fundação “Colaboramos na curadoria, produção e financiamento de conteúdos, ferramentas e boas práticas para professores, gestores e familiares por meio de plataformas online; desenvolvemos trilhas de conteúdo para professores usando o celular; levamos conteúdos pedagógicos para a televisão aberta; organizamos conteúdo de vídeo existente na internet para criar trilhas de estudos”. Além dessas maravilhas, a Fundação fornece subsídios para o Estado voltar às aulas de “forma segura” e “com qualidade”.

    E eis aqui o foco dessa escrita: a forma segura e a qualidade que a Fundação afirma conseguir mesmo diante de um cenário com mais de 331 mil mortes por conta da Covid. 

    Dediquei um pouco do meu tempo para analisar a página do site da Fundação Lemann. Os resultados encontrados já eram esperados, mas confesso que me surpreendi ao perceber até onde a Fundação está disposta a ir. Segundo a Fundação, o resultado de um estudo realizado por ela mesma com alguns parceiros, mostra que a contaminação não aumenta com a volta das aulas presenciais. Ou nas palavras da Fundação “Um levantamento internacional de retomada das aulas presenciais tabulado pela consultoria Vozes da Educação, e que teve apoio da Fundação Lemann e Imaginable Futures, indica que, na maioria dos 21 países pesquisados, o retorno às aulas presenciais não impactou a tendência da curva de contaminação pelo novo coronavírus”. Mas não para por aí, e a Fundação também afirma que “Se o Brasil tivesse reaberto em setembro, quando a curva estava baixa, teríamos oferecido com dignidade um semestre para as crianças”. E a Fundação afirma ainda que “O estudo também mostrou que profissionais da educação não correm risco maior de infecção do que outras profissões, embora o risco aumente em casos de contato entre muitos adultos e jovens a partir de 16 anos”. E Denis Minze, Diretor Executivo da Fundação, afirma que “Dados os efeitos deletérios sobre a aprendizagem, para a saúde mental e para as famílias, e a quantidade de evidências de baixa infecção nas escolas, a gente deveria estar discutindo o que mais se pode fazer para abrir escola mais rápido.” A Fundação também conta com um manual para a volta às aulas, onde afirmam que “dados e materiais reforçam a importância de que escolas sejam as últimas fechar e possam ser as primeiras a reabrir”.

    Desde que se agarraram à educação e a colocaram no topo dos seus interesses, essas fundações se propuseram a fazer o possível para ampliar suas margens de lucro, mesmo que isso signifique contaminações em massa de estudantes, professores, funcionários, familiares destes e mesmo que isso possa significar uma evolução na contaminação e no número de casos de Covid. Em um país que tem um sistema de saúde entrando em colapso – com dados ainda piores para o Estado do RS – a ênfase da Fundação não está na preservação das vidas dos estudantes e trabalhadores da educação; seu olhar, como já era esperado, está voltado apenas e fundamentalmente para o lucro. Para a Fundação, não importa a custo de quantas vidas, as aulas devem voltar a ocorrer de forma híbrida, num misto de presencial e online, demonstrando assim seus reais interesses (que nunca foram educação de qualidade para todos, como eles mesmo pregam em suas falas). 

    Não bastasse o fato de tratarem a educação como uma mercadoria, tratam as vidas dos envolvidos nesse processo como descartáveis. Porque, em se tratando de uma empresa que se diz formada pelos melhores profissionais do mercado educacional, não pode ser por ignorância que apregoem a falsa ideia de que as vidas envolvidas nos processos de ensino aprendizagem não estariam em risco caso as aulas retornassem de forma presencial. 

    A Revista Fórum trouxe uma matéria, intitulada Explodem os casos de Covid 19 em professores que voltaram às aulas em SP, de autoria de Julhinho Bittencourt, sobre as contaminações pelo Coronavírus em professores da Rede Estadual Paulista após a volta às aulas de forma presencial. Os dados apresentados na reportagem, computados pela APEOESP, Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, são alarmantes e, ao meu ver, assustadores. Me permito aqui fazer um aparte, trazendo os dados de apenas uma das escolas analisadas, para vias de ilustração.“E.E. PROFESSOR CÉSAR YÁSIGI – JARDIM MACEDÔNIA – ZONA SUL/SP. Toda a equipe se contagiou em atendimento aos pais na escola, em dezembro: secretária, agente de organização escolar, vice-diretora e diretora; A contaminação na escola resultou no contágio da família da vice-diretora, que foi internada, sendo que o pai faleceu; Resultou também na morte da diretora Beatriz de Lana Castro, que ficou internada mais de um mês na UTI até falecer no dia 27/01/21; A escola seguiu atendimento normal como se nada tivesse acontecido.”

    Esse trecho apenas já se mostra suficiente para que compreendamos o que acontecerá se fingirmos que voltamos à normalidade e que os profissionais da educação e alunos e familiares destes são imunes ou imortais. Quem já esteve em uma escola da rede pública de ensino sabe quais são as reais estruturas que lá encontramos, e sabe que em muitas delas não há condições para manter os protocolos de higienização dos ambientes e dos alunos e profissionais ali presentes. Enfim, tudo isso e mais um pouco já foi dito, tudo isso e mais um pouco também já foi ignorado pelos que tomam as decisões de dentro de seus gabinetes. 

    Pode-se perceber que para a Fundação Lemann dados como estes devem ser ignorados e que as afirmativas presentes em seu site são de um cinismo, para não dizer mau-caratismo sem tamanho. Que queiram privatizar a educação eu até entendo (observando a lógica neoliberal e sabendo que, segundo a Forbes, Jorge Paulo Lemann, dono da Fundação Lemann, é o segundo homem mais rico do Brasil, com uma fortuna de 91 bilhões), mas que para isso coloquem milhões de vidas em perigo, aí é um pouco demais para meu raso entendimento.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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