A ofensiva estratégica da extrema-direita
Tentativa de naturalizar o 8 de janeiro, exaltação do discurso religioso fundamentalista e desfile das bandeiras de Israel colocaram nas ruas a extrema-direita
Ninguém imaginava uma década atrás que o então deputado federal de baixo clero Jair Bolsonaro poderia chegar à presidência da República e levar milhares de pessoas às ruas. Naqueles tempos, a direita tinha o PSDB como referência política, disputando as urnas e respeitando a “alternância de poder”. Seu projeto neoliberal defendia bandeiras como “modernização do Estado”, responsabilidade fiscal e políticas sociais focalizadas.
Dez anos depois, com o recrudescimento das contradições da crise mundial do capitalismo, a coalizão tucana naufragou. Emergiu uma força política que rejeita os princípios da Constituição de 1988 e o arranjo institucional da Nova República. As bases de convivência democrática das forças neoliberais e da esquerda moderada foram corroídas, sobretudo, com a manipulação política e midiática de casos de corrupção.
Ganhou força o discurso hipócrita do “tem que mudar tudo que está aí”, com o ódio de parcela da elite e da classe média conservadora tragando a democracia formal. O motivo: os avanços dos direitos dos trabalhadores, especialmente dos mais pobres.
O manejo da pauta conservadora contra as conquistas das agendas das mulheres, da negritude e dos LGBTs aproximou os interesses da extrema-direita com a ideologia das igrejas fundamentalistas, colocando uma base popular a serviço dessa força política.
Não se pode subestimar o processo político que está em curso, que tem conexões internacionais e conquista governos pelo mundo. As milhares de pessoas que participaram do ato na Avenida Paulista no último domingo, atendendo o chamado de Bolsonaro, não se moveram apenas para apoiar seu líder diante da "perseguição" que sofre dos seus supostos algozes. Foram, sobretudo, para defender sua visão de mundo, sua ideia de Brasil, seu entendimento de democracia e seu projeto de sociedade – mesmo que ele seja para poucos.
Quem procura analisar os efeitos dessa manifestação na conjuntura nacional, especialmente nos processos contra Bolsonaro, pode concluir que os impactos são pequenos. Em determinada medida, o ato pode até prejudicá-lo, com a inclusão no processo de trecho do discurso no qual o ex-presidente admite que sabia da minuta que previa a decretação de estado de sítio.
O cerco judicial está se fechando e Bolsonaro passa por uma defensiva tática com o avanço das investigações, a prisão de aliados próximos e o aumento da possibilidade de ir para a cadeia. Contraditoriamente, a capacidade de direção política e a coesão ideológica do seu campo, que se expressaram neste domingo em força de mobilização, demonstram que a extrema-direita faz uma ofensiva estratégica.
Suplantou a direita tradicional e conquistou a fidelidade de uma base social conservadora. Incidiu sobre setores populares com a aliança com as igrejas fundamentalistas e com a ideologia do medo, que assola das capitais ao interior do país. Ganhou postos na disputa institucional, com uma bancada puro sangue de parlamentares, governadores e prefeitos. Construiu uma máquina de disputa ideológica com a defesa de seus valores.
O presidente Lula venceu a eleição de 2022, na disputa mais acirrada da história recente. O Brasil está profundamente dividido: quase metade do eleitorado votou em Bolsonaro, mesmo depois das contradições de quatro anos de governo. Essa força da extrema-direita mantém um nível de coesão; e milhares foram às ruas com a sua engenharia de mobilização de massas.
De um lado, o ódio da elite brasileira e da classe média conservadora contra a esquerda, mobilizada a partir das redes sociais, em defesa de seus interesses de classe. Por outro lado, a articulação das igrejas fundamentalistas, com pesado investimento de recursos, viabilizou caravanas de recorte mais popular, das cidades do interior e de Estados mais próximos.
A manifestação em defesa de Bolsonaro, líder de uma articulação golpista, foi convocada em defesa do Estado de Direito. No entanto, tinha como pano de fundo a defesa de um projeto de sociedade, representado por Bolsonaro, que faz parte de uma rede internacional ultraconservadora.
A tentativa de naturalizar o 8 de janeiro de 2023, relativizando o significado de democracia, os ataques ao presidente Lula e ao MST, a exaltação de discursos religiosos fundamentalistas e o desfile das bandeiras de Israel colocaram nas ruas a ideologia da extrema-direita.
Quando a democracia se torna um valor social relativo, com significados diferentes a depender do lado da polarização, defendê-la é insuficiente para enfrentar aqueles que querem destruí-la. Mais do que nunca, é necessário fazer a disputa de ideias, valores e projetos de sociedade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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