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    Flávio Barbosa

    Cronista, psicanalista

    28 artigos

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    A outra guerra

    Guerra na Ucrânia (Foto: REUTERS/Maksim Levin)

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    O desencadeamento da guerra entre a Rússia e a Ucrânia fez eclodir um sentimento há muito sendo constituído, preparado, contra a Rússia. Um afeto de ódio que se irradia nas decisões dos países ocidentais pela mais absoluta manipulação da informação, dos sentidos e das emoções para não só contra um país, suas lideranças políticas, mas também contra suas tradições culturais, suas posições no cenário internacional e sua própria existência.

    As sanções que o Ocidente está aplicando à Rússia em face à invasão desta à Ucrânia é muito mais do que uma reação ao ato de guerra da Rússia, o país que tomou a iniciativa bélica, embora não necessariamente o que tomou a iniciativa do discurso bélico, e é muito mais do que qualquer atitude moral perante o horror da guerra por parte de quem está sancionando. É uma tentativa de cancelar e excluir um povo, uma nação de se expressar. Evidentemente que isso não é um bom conselheiro do que virá doravante.

    Acaso a Rússia vai deixar de existir? Suas demandas definitivamente não mais serão ouvidas? Vai se apagar um país de dezessete milhões de quilômetros quadrados, cento e quarenta e seis milhões de habitantes, a segunda maior potência militar/nuclear e uma das dez maiores economias do mundo? 

    A estigmatização da Rússia, evidentemente, não é uma constatação desse momento histórico e de sua invasão à Ucrânia, ela vem de longe, aliás, sem pretender justificar a invasão e a guerra, no entanto, e para qualquer analista lúcido, é impossível ignorar as questões postas pela Rússia desde o Golpe de Estado na Ucrânia em 2014 quando um governo eleito e legítimo desse país e que mantinha relações amistosas com Moscou foi derrubado por uma convulsão nacional impulsionada pela Guerra Híbrida desenvolvida por Washington, e que pôs no poder central de Kiev um conglomerado político nacionalista de ultradireita coligado com forças neonazistas russófobas e que desde então a Rússia e os territórios de maioria étnica russa e de fala russa na Ucrânia como a Crimeia e o Donbass vêm sendo fustigados, e mais: vêm sendo atacados pelas milícias nazistas e também pelos batalhões nazistas, os batalhões Azov, incorporados e formados no exército e na guarda nacional ucraniana desde o golpe de estado.

    Os países do Ocidente que hoje se esmeram num prurido moral sem tamanho dado ao ato de guerra da Rússia, eles, no que se evidenciou desde o Golpe de 2014, não se preocuparam com o fato de a extrema-direita acompanhada de grupos nazistas chegarem ao poder na Ucrânia e iniciarem um processo de provocação à Rússia – como o de se agregar à Otan – e de violências simbólicas – proibir o ensino da língua russa em um país de forte presença de etnia russa --, além de violências físicas e assassinatos de cidadãos de etnia russa na Ucrânia, seja nas regiões do leste do país como a Crimeia e o Donbass, seja em outras regiões onde essa etnia não é maioria.

    Diante das ameaças e da violência real dos grupos nacionalistas radicais apoiados pelo Ocidente e que governam a Ucrânia, a província da Crimeia ainda em 2014 se rebelou e aprovou um plebiscito pelo qual a maioria da população se manifestou favorável à reanexação da Crimeia à Rússia, o que de fato ocorreu e com o apoio de Moscou. E no Donbass as províncias de Donetsk e Lugansk, ambas de maioria étnica russa, também se rebelaram e pleitearam se tornarem autônomas e depois se constituírem como repúblicas independentes de Kiev. Em face as agressões contínuas sofridas pelos habitantes russos dessas províncias, o histórico de todas elas de ligação com a Rússia e de até já terem sido territórios da Rússia, o governo central de Moscou, do presidente Vladimir Putin, aprovou recentemente e oficialmente o apoio a essas populações e reconheceu o direito à soberania das duas províncias. O Ocidente que se fingiu de surdo e de cego todo esse tempo e mesmo diante das inúmeras comunicações e petições da Rússia seja no Conselho de Segurança quanto na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) denunciando esses fatos e pedindo providências para o fim das hostilidades e o respeito às reivindicações dos territórios rebeldes e seus povos russos, bem, o Ocidente cinicamente se limitou a condenar a Rússia e o seu governo por apoiarem as demandas por segurança, autonomia e reivindicações das populações que estavam sendo hostilizadas e alvos de crimes como os acima expostos.

    Reitero, não se trata de justificar e apoiar a invasão da Rússia e as ações bélicas porque compreendemos que temos de ter instrumentos de política e diplomacia para resolver querelas e demandas internacionais, contudo, não se pode ignorar o fato relevante e grave que estava havendo agressão da extrema-direita nacionalista e de facções nazistas dentro e fora do exército ucraniano contra as populações de etnias russa na Ucrânia.

    O Ocidente que se orgulha de ter combatido o nazismo na Segunda Guerra Mundial, o que é um fato histórico, e que se diz até hoje horrorizado com os crimes dos nazistas tendo-os julgados em Nürenberg em 1948 e em diversos fóruns internacionais doravante já que seus crimes são considerados imprescritíveis por se tratarem de crimes de lesa-humanidade e de genocídio absolutamente documentados e provados em anos de investigação, bem, o Ocidente jamais poderia ignorar, e tampouco dá qualquer apoio político, econômico e militar a um regime advindo de um golpe de estado e que confessamente se pronuncia russófobo e, ademais, admite nas próprias estruturas militar do Estado, unidades sabidamente nazistas. Isso não é só um erro do Ocidente em face a seus pruridos à Rússia, isso é a conivência com grupos criminosos, e como tal, é um fato gravíssimo!

    No entanto, é preciso considerar que nesse conflito o Ocidente não é apenas um espectador cheio de escrúpulos e bons modos observando a errância das partes diretamente envolvidas, mas que o Ocidente é a grande parte envolvida nesse conflito. Primeiro: quando me refiro ao Ocidente devo descrever quem é ele: é os Estados Unidos, a Europa ocidental e os países anglo-saxônicos, que, desde a Grã Bretanha à Austrália e Canadá. Segundo: dizer que o Ocidente é a grande parte envolvida nesse conflito significa que ele foi o grande propulsor do conflito, o elemento provocador dele. Por quê? Porque os Estados Unidos em sua pretensão imperialista de se constituir para o mundo como potência unipolar envolveu os países membros da Otan, especialmente os acima citados, em um estado de provocações à Rússia se servindo da Ucrânia para admiti-la na Otan, o que contraria Moscou, e com toda razão, pois significa ameaçar a segurança e soberania da Rússia. Terceiro: porque é sabido hoje que o Golpe de Estado de 2014 na Ucrânia fez parte da estratégia de Guerra Híbrida de Washington para isolar a Rússia e criar instabilidade pra ela dentro e fora de seu território e particularmente com os seus vizinhos, além de criar dificuldades para a aliança político e econômica entre a Rússia e a China (potência que vai se sobrepor à hegemonia dos Estados Unidos). Portanto, todo esse processo foi pensado com argúcia, depondo assim contra a moralidade tardia do Ocidente e seu desejo de sancionar barbaramente a Rússia e classificá-la de forma rasa e inquestionável como potência violadora da soberania dos vizinhos.

    A hipocrisia é tanta que na semana em que a Rússia invadiu a Ucrânia, os Estados Unidos bombardearam com drones a Somália, Israel e Arábia Saudita, grandes aliados dos Estados Unidos, bombardearam, respectivamente, Damasco, capital da Síria, e o Iêmen. A mídia maestream ocidental que tem se apressado em condenar a Rússia nada disse, e nada diz sobre essas outras agressões e, tampouco, ventila qualquer condenação e sancionamento aos países agressores.

    E para expor cruamente esse discurso da mídia maestream aliada de Washington e da Otan como ainda mais farsesco, é bom lembrar o que vários repórteres e correspondentes europeus e estadunidenses disseram a respeito dos bombardeios na Ucrânia. Eles se indignaram ao fato disso está a acontecer em um país europeu, de povo branco, que tem automóveis de marcas como os deles de Londres, Nova Iorque, Paris, que se vestem com as suas grifes, e não serem um Iêmen, uma Síria, um Iraque ou um país africano ou outro qualquer do sul global a sofrerem bombardeios. “Não é a mesma coisa!” nas palavras desses periodistas (sic). Isso demonstra todo o desprezo que em grande parte no Ocidente se cultiva contra os povos ditos inferiores: não caucasianos e não europeus.  

    A guerra em qualquer lugar e contra quem quer que seja é abominável e espero que o mais rapidamente possível cesse o fogo na Ucrânia, na Síria, Somália, no Iêmen e em outras partes onde houver beligerância. Que os exércitos recuem para os seus países de origem, e que se retome as negociações pela paz em todas as partes conflagradas do planeta, contudo, é preciso escutar as partes que hoje estão sendo emudecidas e canceladas por aqueles que se portam com superioridade moral, sem sê-lo.

    Os Estados Unidos quando invadiu o Iraque e sob alegações falsas de armas químicas por parte do Iraque não foi sancionado por qualquer das vozes indignadas de hoje com a Rússia. Os seus atletas e suas equipes nacionais não foram impedidos de participar de competições internacionais patrocinados pela Fifa, COI, FIA e outros órgãos esportivos; a sua arte não foi destituída de qualquer exposição em museus, centros culturais e universidades; os seus autores não foram cassados e invisibilizados; os seus cidadãos não foram sancionados e proibidos de ter acesso ao crédito internacional; os seus órgãos de imprensa não foram emudecidos na Europa ou em qualquer outra parte do mundo; as suas empresas aéreas não foram proibidas de voar nos céus europeus ou outros quaisquer; as suas mercadorias, os seus produtos, não tiveram os contratos de compras cancelados nos mercados globais; as suas reservas monetárias e em ouro não foram congelados em Londres, Paris ou Zurique; e as suas verdades não foram sequer relativizadas, tampouco quando se provaram falsas.

    Idem com Israel que pratica uma política de apartheid contra a Palestina, que invade os seus territórios hoje dividido em duas partes (Cisjordânia e Faixa de Gaza) pelo próprio Israel que contrariando resoluções da ONU constroem colônias em territórios ocupados e oprime terrivelmente o povo palestino, contudo, sem qualquer sanção dado a proteção que recebe dos EUA no Conselho de Segurança da ONU com seu poder de veto, e a covardia silenciosa dessa mesma Europa hoje horrorizada com a Rússia como se fosse ela, a Europa, uma senhora digna, honesta e inocente.

    O cancelamento da Rússia não ajuda em qualquer esforço de paz, e muito pelo contrário, e também não significa um triunfo dos Estados Unidos e da Europa como alguns alardeiam, ao contrário, toda essa fúria preconceituosa contra a Rússia, todo esse escárnio com os povos ditos inferiores, todo esse esforço pela sanção, o que ele faz? Ele dá um recado claro, claríssimo, ao mundo que o modelo Breton Woods, o sistema de pagamento do comércio internacional via Swift, o padrão dólar, formam um sistema a ser superado sob a pena de que todo e qualquer país que contrariar o Império será seriamente sancionado, e a depender de quem seja, será cancelado.

    Portanto, os que cantam triunfo hoje talvez não percebam que em verdade patrocinaram a aceleração da percepção mundial que um novo mundo urge em emergir, multipolar, e com novos sistemas, pois o que temos hoje é um sistema que nos faz guerra todo dia, embora não-dita. Uma outra guerra sem palavras e não necessariamente com artefatos explosivos detonados em nossas cidades, contudo, profundamente destruidora e letal.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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