A paz na Eurásia, a articulação de uma ordem mundial “pós-Trump” e o papel do Brasil
É chegada a hora de estabelecer uma paz duradoura na Eurásia, escreve o colunista Marcelo Zero
Por Marcelo Zero - As relações entre a Rússia e o chamado Ocidente historicamente foram, de um modo geral, cercadas por atritos e desconfianças.
Foi assim desde os tempos dos Cavaleiros Teutônicos e do Grão-Ducado da Lituânia, que invadiram muitas partes do território russo, provocando a reação dos imperadores de Moscou.
No genial filme de Eisenstein, Iván, o Terrível, esses antigos conflitos históricos são retratados de forma muito bela.
O Império Russo também enfrentou duas invasões do Reinado Sueco, uma no século XVII e outra no século XVIII.
Napoleão, já no início do século XIX, invadiu a Rússia com uma força de cerca de 600 mil homens, a maior então registrada pela História, na qual estavam incluídos não apenas franceses, mas também aliados de ocasião, como poloneses, por exemplo.
Chegou até Moscou, que foi incendiada pelos próprios moscovitas.
O resultado final foi, contudo, um desastre para os franceses. Assoladas pela fome e pelo inverno russo, as forças francesas tiveram de se retirar apressadamente e de forma desorganizada da Rússia, sendo continuamente atacadas por pequenos destacamentos militares.
Dos 600 mil homens, apenas cerca de 100 mil voltaram com vida da empreitada. Napoleão perdeu, de modo irrecuperável, a maior parte de seus exércitos. Foi derrotado, efetivamente, pela Rússia. Waterloo foi apenas o golpe de misericórdia numa França já muito enfraquecida, antes considerada imbatível.
Recorde-se que Austerlitz, entre várias outras batalhas vencidas por Napoleão, é considerada como uma das maiores demonstrações de gênio militar da História. Uma aula de estratégia militar estudada até hoje. Não há termo de comparação possível entre Napoleão e o Duque de Wellington. Também não há equivalência possível entre Napoleão e Macron.
Mesmo destino teve Hitler, que acabou perdendo cerca de 80% das suas forças, o melhor da Wehrmacht, na implacável frente oriental. Quando ocorreu a invasão da Normandia, as forças nazistas já tinham passado pelos desastres irrecuperáveis de Stalingrado e Kursk (a maior batalha da História), e a Operação Bragation, que desmantelou os exércitos do Centro da Wehrmacht, já estava a todo vapor.
Assim, conflitos com a Rússia nunca tiveram um bom resultado para o Ocidente. Agora mesmo, o que o próprio Marco Rubio definiu como uma “guerra por procuração dos EUA e do Ocidente contra a Rússia”, o conflito com a Ucrânia, não chegou a bom termo. Fracassou.
Einstein, um grande pacifista, afirmava que burrice é fazer as mesmas coisas esperando resultados diferentes.
Acreditamos que seja chegada a hora de estabelecer uma paz duradoura na Eurásia.
A geoestratégia de fragilização e de domínio da Rússia pelo Ocidente, concebida por Zbigniew Brzezinski na década de 1990, a qual previa explicitamente a expansão da Otan até a Ucrânia, não funcionou.
A Rússia, com Putin, conseguiu se reerguer do colapso da União Soviética e do desastre do governo Yeltsin, e estabeleceu uma grande aliança estratégica com o outro gigante euroasiático: a China. No “grande tabuleiro de xadrez “ de Zbigniew Brzezinski , a Rússia deu um xeque-mate.
Durante algum tempo, no início de seus governos, Putin tentou estabelecer um “modus vivendi” pacífico e cooperativo, tanto com os EUA quanto com a Europa. Contudo, essas tentativas de aproximação foram repetidamente rejeitadas pelo Ocidente, embora Putin tenha conseguido sucesso parcial, durante pouco tempo, com alguns países, como a Alemanha, o que alarmou Washington.
Parece-nos que a resistência maior a uma paz na Eurásia, agora concentrada na Europa, sustenta-se, essencialmente, em ideologias anacrônicas e desconectadas da realidade.
Assentadas no desvario de uma nova Guerra Fria, tais ideologias sustentam que a Rússia, uma “terrível autocracia”, representa “ameaça imperialista” contra toda a Europa e seus valores democráticos.
Tal crença não tem embasamento empírico sólido.
Embora existam ideólogos russos que defendam a necessidade geopolítica de que a Rússia expanda sua influência para o Oeste, como Alexander Dugin, por exemplo, que sonha com a construção de um Império Euroasiático, Putin e o establishment russo têm uma visão bem mais pragmática e racional da posição da Rússia no mundo. O discurso da grande influência de Dugin e de outros ideólogos no Estado russo parece-nos grosseiramente exagerado.
A Rússia está empregando boa parte dos seus recursos econômicos e militares para manter uma guerra de desgaste parcial com a Ucrânia. Pretende manter sob seu domínio apenas os 4 oblasts conquistados no Leste da Ucrânia e a Crimeia, que foi reincorporada ao território russo, já em 2014.
Também deseja a celebração de um tratado de paz, envolvendo os EUA, que assegure a neutralidade do território ucraniano.
A Rússia simplesmente não tem condições e nem a vontade de “invadir” e “dominar” a Europa, ou parte dela.
O domínio da União Soviética sobre o Leste Europeu foi consequência direta da Segunda Guerra Mundial. Saliente-se que essa divisão de influências sobre a Europa foi negociada em Yalta, entre Roosevelt e Stálin. Churchill, que se opunha a esse entendimento, foi colocado de escanteio. Tratou-se, portanto, de uma decisão bilateral entre as duas superpotências da época.
Vivemos, contudo, hoje, uma situação completamente diferente. A Europa superou as grandes vulnerabilidades políticas e econômicas do pós-guerra e a União Soviética colapsou.
Trata-se de correlação de forças e circunstância históricas completamente diferentes.
Hoje, a União Europeia, sem a Grã-Bretanha, tem uma economia de US$ 18,6 trilhões. A Rússia, em contraste, tem um PIB de cerca de US$ 2 trilhões. Ou seja, a União Europeia tem um PIB 9 vezes maior que o da Rússia. Ademais, a população europeia, sem a Rússia, é de 650 milhões. Já a Rússia, isolada, tem apenas 144 milhões de habitantes.
Claro está que a Rússia tem notáveis forças armadas e um arsenal nuclear de 5.580 ogivas atômicas, o maior do mundo.
Porém, a Europa, incluindo a Grã-Bretanha, tem cerca de 1,5 milhão de militares na ativa, um número nada desprezível. Além disso, os EUA têm cerca de 100 mil militares estacionados em numerosas bases militares europeias. A Rússia tem cerca de 1 milhão de homens na ativa e cerca de 2 milhões na reserva.
O gasto militar russo ascendeu a US$ 109 bilhões, em 2023. Já os gastos dos membros da Otan foram de US$ 1.341 bilhões. Excluindo os gastos feitos pelos EUA (US$ 908 bilhões), ainda assim sobrariam US$ 433 bilhões. Ou seja, os demais membros da Otan, sem os EUA, já gastam cerca de 4 vezes mais que a Rússia com seus militares. O segundo maior orçamento militar do mundo, que fica apenas atrás do EUA, é o da Europa. Não é o da Rússia, nem o da China.
Por conseguinte, achar que a Rússia é um gigante ameaçador e que a Europa é uma região muito desprotegida e desvalida, sem recursos econômicos, tecnológicos e militares é algo que não corresponde aos fatos. A Europa de hoje está muito distante da Europa reduzida a cacos do pós-guerra, quando a Otan foi criada.
Dessa maneira, mesmo nas atuais circunstâncias, uma guerra convencional de alcance parcial entre a Rússia e a Europa, envolvendo a Ucrânia, ainda que sem o envolvimento direto dos EUA, seria um movimento de extremo-risco para Moscou. Mas também, por outro lado, um movimento muito arriscado para a Europa. Se envolver diretamente na Ucrânia, como sugeriu Macron, seria um erro de cálculo monumental.
Além disso, gastar 5 % do PIB em armamentos e atividade militares é uma loucura para a grande maioria dos países da Europa, que passam por dificuldades financeiras e crescentes problemas de estrangulamentos do Estado de Bem-Estar.
A Europa, na realidade, deveria aproveitar a janela de oportunidade estratégica que se abre agora com a possibilidade do fim da Guerra na Ucrânia para negociar uma relação pacífica e cooperativa com a Rússia, e atraí-la definitivamente para uma maior aproximação ao resto do continente europeu, como os russos desejaram explicitamente na década de 1990 e no início deste século.
Não se trata de fazer “o jogo de Putin”, como se afirma apressada e falsamente. A Ucrânia, goste-se ou não, perdeu a guerra. Está exaurida e sem homens. Há de ser preservada de maiores perdas, territoriais e humanas, e terá de ter garantias de segurança futura. Mas, agora, a Europa precisa fazer o jogo da negociação e da paz, pensando em todo o continente e em sua estabilidade geopolítica.
Histórica e culturalmente, a Rússia se viu, nos últimos séculos, como um país essencialmente europeu, apesar de algumas fortes características culturais muito próprias. As obras de Dostoievski, mostram, com maestria, a tensão, na “alma russa”, entre o Ocidente racional e iluminista e a cultura religiosa ortodoxa. Porém, na Europa moderna, há notáveis diferenças culturais e de formação histórica que convivem, de forma mais ou menos harmoniosa, dentro da UE.
Alguns dos países que já são Estados da UE, como Grécia, Bulgária e Romênia, por exemplo, fazem parte da mesma matriz civilizacional da Rússia, segundo a classificação de Samuel P. Huntington. A própria Ucrânia, frise-se, pertence a essa mesma matriz civilizatória.
Portanto, a UE, de modo louvável, desmente, na prática, a tese do “choque entre as civilizações” de Huntington. A UE poderia dar mais passos adiante, nessa direção. Não necessariamente, é claro, incluir a Rússia nela, mas, pelo menos, ter relações de cooperação mutuamente profícuas com Moscou.
Quanto à questão democrática, consideramos que é um erro a usar para justificar intervenções e sanções, bem como para impedir a cooperação e a paz.
Segundo alguns institutos que fazem periodicamente avaliações sobre a prevalência das democracias (conforme o modelo ocidental) no mundo, como o da The Economist, por exemplo, a maior parte da população do planeta (55%) não vive em democracias. Vive em “regimes híbridos” ou em “autocracias”.
Até mesmo os EUA já não são mais considerados, de acordo com muitas dessas avaliações, como uma “democracia plena”.
Na realidade, de acordo com análises recentes, como a feita na Foreign Affairs, por Steven Levitsky e Lucan A. Way, “a democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos padrões para a democracia liberal: sufrágio adulto completo, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.”.
O que irá fazer a Europa? Insurgir-se militarmente também contra essa nova, poderosa e emergente autocracia?
A teoria das relações internacionais está muito dividida, atualmente, no Ocidente, entre “realistas” e “liberais”. Os primeiros primam por um pragmatismo baseado estritamente em interesses, que pode beirar à indiferença. Já os segundos diferenciam ou mesmo discriminam países, conforme seu alinhamento ou não a determinadas visões políticas e a valores supostamente superiores.
Na prática dessas relações, o chamado Ocidente cindiu-se em dois grandes campos.
Em primeiro lugar, o campo trumpista, caracterizado pela tentativa de imposição de uma ordem hobbesiana baseada essencialmente na força, a qual visa impor um projeto de restauração plena do unilateralismo estadunidense, combinado com um protecionismo e um nacionalismo radicais e antiglobalistas. Trata-se de um ator internacional profundamente disruptivo, que ameaça implodir todas as regras multilaterais e regionais previamente acordadas. A única regra, agora, é a da força, imposta a todos, em âmbito puramente bilateral.
Em segundo lugar, está a Europa, que pretende preservar a velha “ordem mundial baseada em regras”. Entretanto, tais regras, em nome da defesa da democracia, dos direitos humanos etc., frequentemente não acolhem, como poderiam e deveriam, a diversidade do novo mundo que surgiu com as profundas mudanças geoeconômicas e geopolíticas que ocorreram, com muita celeridade, neste século.
Assim, de um lado temos um campo da ausência de regras, do predomínio da força, sem soft power e sem diplomacia, e, de outro, um campo que intenta preservar velhas regras, que são incapazes de reconhecer, de forma ampla, os legítimos e novos anseios e necessidades do chamado Sul Global.
Não obstante, como acontece com frequência entre opostos, há, como diriam os confucionistas, um “caminho do meio” mais adequado, ou, ainda, uma síntese dialética passível de ser realizada, afirmariam os hegelianos.
Pois bem, acreditamos que a diplomacia brasileira faz exatamente isso.
Nossa diplomacia, embora esteja muito longe de ser indiferente à questão democrática e aos direitos humanos, evita a condenação, frequentemente hipócrita e cínica, a países que têm regimes que não se alinham com o modelo democrático ocidental.
Negocia e coopera pragmaticamente com todos, sem abdicar, contudo, da defesa dos valores maiores inscritos em sua própria Constituição.
Pratica, no governo Lula, o que poderíamos chamar, na falta de melhor definição, de “realismo democrático.”
Sobretudo, o Brasil sabe que a tentativa de “imposição de democracia”, pela via das sanções e das intervenções, militares, políticas ou econômicas, é algo profundamente antidemocrático e contraproducente.
Para que as democracias floresçam, em nível planetário, junto com a igualdade e a prosperidade, suas irmãs, é necessário que seja criada uma ordem mundial assentada no multilateralismo, na multipolaridade, no equilíbrio ambiental, na cooperação, na busca da simetria entre países e povos e numa fortalecida e renovada governança internacional centrada na solução negociada e pacífica dos conflitos.
É o que o Brasil fez recentemente, à frente do G7, e faz, agora, à frente dos BRICS.
Nosso entendimento é que o obstáculo maior à construção dessa nova ordem mundial vem de Trump. Trump simplesmente não quer ordem mundial nenhuma. Sua paz oportunista com Putin visa apenas preparar os EUA para a contenção da China e do Sul Global, de um modo geral. Ele também vê com bons olhos o enfraquecimento relativo da Europa e da UE.
Para Trump, a ordem mundial é um jogo de soma zero, na qual os ganhos dos EUA teriam de provir, necessariamente, da perda de outros. É a visão tacanha e tosca de alguém que provém do mercado imobiliário novaiorquino, no qual os poucos espaços são disputados ferozmente.
Portanto, Trump e seu caos “hobbesiano” precisam ser contidos. Afinal, com ele todos os demais países tendem a perder, em maior ou menor grau.
Tal contenção, no entanto, não pode prescindir de uma grande articulação internacional. Não basta apenas o contraponto geopolítico crescente do BRICS e do Sul Global.
A Europa também precisa somar-se a esse grande esforço.
Seria necessário que o BRICS, o Sul Global e a Europa promovam um grande entendimento que objetive a construção de uma nova ordem global “pós-Trump”, com renovadas regras, mais inclusivas e tolerantes, que a conduzam efetivamente à multilateralidade e à multipolaridade, à reconstrução das instituições internacionais, como a OMS e a OMC, e de uma renovada governança global que vise à paz e à simetria mundial.
Para tanto, a Europa precisa de desfazer de sua desconfiança em relação à China, à Rússia e a outros países, e negociar pontos de confluência para a construção conjunta de uma ordem mundial pós-disrupção trumpista.
O “realismo democrático “do Brasil aponta para o rumo correto.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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