A poderosa parábola distópica de O Preço do Amanhã
A máxima "tempo é dinheiro" é explorada de forma literal no futuro distópico, de O Preço do Amanhã
Nos anais das distopias cinematográficas, poucos contos são tão assustadoramente prescientes quanto O Preço do Amanhã (2011). Dirigido e escrito pelo visionário diretor e roteirista Andrew Niccol (Gattaca, O Senhor das Armas), este mix de suspense e ficção científica transporta os espectadores para uma realidade onde a inexorável marcha do tempo se fundiu com a busca pela riqueza, criando um microcosmo arrepiante de divisão socioeconômica. O filme ilumina tanto uma narrativa cautelosa, quanto reflete os contornos de nossa própria realidade.
Situado em um futuro assustadoramente próximo (2169), onde a imortalidade depende da capacidade de adquirir tempo - essa tecnologia foi alcançada em 2015, o relógio biológico é pausado aos 25 anos de idade. Nessa distopia, os cidadãos têm um relógio digital subcutâneo em seus antebraços - marcando com a precisão de segundos - o tempo que lhes resta de vida. Ao segurar as mãos de alguém, é possível fazer uma transferência de unidades de tempo.
Crônicas do tempo como moeda, e a luta de classes - O problema é que essa riqueza é distribuída de forma extremamente desigual: os ultra-ricos alcançaram imortalidade com um corpo de 25 anos, pelos séculos de tempo (riqueza) acumulados em seus dispositivos – mas a imortalidade de poucos, implica na morte de muitos.
O filme orbita a vida de Will Salas (Justin Timberlake), uma engrenagem dentro de uma vasta máquina temporal. Um encontro casual com o plutocrata Henry Hamilton (Matt Bomer), lança Will em um labirinto de opulência e privilégio, justaposto contra o obscuro ventre da sobrevivência que assola os escalões inferiores. Will é um revolucionário que rouba grandes bancos para distribuir os créditos temporais aos que mais precisam, em uma dessas empreitadas ele conhece Sylvia Weis (Amanda Seyfried) - filha de um ultra-rico, que está prestes à fazer 25 anos e ganhar muitos e muitos anos de vida. O casal acaba se tornando uma espécie de Bonnie e Clyde, à favor da justiça social.
É também um sistema darwinista de sobrevivência, onde há sobrevivência não é do mais apto, mas dos mais ricos. Uma política inflacionária para propositalmente matar as pessoas como política de controle populacional. E a divisão do território é feita em diferentes fusos horários - sendo que para cruzá-los deve-se pagar - Tudo é feito para esmagar as massas e evitar um aumento populacional.
O diretor e sua visão - Criado pelo visionário Andrew Niccol, que gravou seu nome entre os luminares da narrativa distópica com Gattaca, O Preço do Amanhã surge como uma obra onde sua destreza narrativa característica floresce. O roteiro revela uma narrativa entrelaçada com intriga e introspecção. Em entrevista, Niccol afirmou que "Acho que é o tipo de demonstração mais literal de viver o momento. Eu meio que gosto de poder contar essa história…Eu penso nisso (o filme) como o filho bastardo de Gattaca porque na época eu pensei que o santo graal da engenharia genética, é claro, é encontrar o gene do envelhecimento e desligá-lo. Mas as implicações são tão grandes que pensei que fosse outro filme. E aconteceu que se tornou outro filme."
Embarcando em uma mudança de paradigma - O Preço do Amanhã serve não apenas como um espelho refletindo nosso presente, mas como um apelo à mudança. Assim como os personagens do filme lutam com um sistema que mercantiliza o tempo, nós nos encontramos presos em estruturas que mercantilizam o trabalho e marginalizam os vulneráveis. O arco narrativo do filme nos faz embarcar em uma mudança de paradigma, onde a busca pelo lucro não ofuscará a dignidade humana, e onde os mais pobres entre nós são elevados, não descartados.
A potência do filme reside em sua capacidade de iniciar conversas que transcendem o reino cinematográfico. À medida que dissecamos o intrincado enredo do filme, devemos reconhecer que nosso mundo está à beira de um precipício. A acumulação desenfreada de riqueza, a manipulação do poder, e a perpetuação das divisões sociais não podem mais ser ignoradas.
Teorias econômicas que sustentam a distopia - No cerne de O Preço do Amanhã palpita uma alegoria socioeconômica, inspirando-se em teorias do pensamento econômico. O filme captura a essência do tempo como moeda do proletariado, espelhando os ecos da teoria da mais-valia de Karl Marx, onde a elite extrai vampiricamente mais valor do trabalho do proletariado do que compensa - acumulando os despojos. Estudiosos como Thomas Piketty e Naomi Klein emprestam sua ressonância ao filme, iluminando as ramificações da desigualdade desenfreada.
Da mesma forma, o filme ilustra como os ricos acumulam tempo consumindo o trabalho da classe trabalhadora, levando a um mundo distópico onde os ricos são virtualmente imortais enquanto os pobres lutam para sobreviver a cada dia.
Neste futuro distópico, a classe capitalista prospera apropriando-se não apenas do trabalho, mas também das vidas do proletariado. Assim como o conceito de 'luta de classes' de Marx destaca a relação antagônica entre a burguesia e o proletariado, O Preço do Amanhã enfatiza o conflito brutal entre a elite rica em tempo e a subclasse pobre em tempo.
O filme incita a uma reavaliação das estruturas econômicas e das suas potenciais consequências. Ele ecoa as críticas ao capitalismo moderno, onde a busca incansável pelo lucro pode levar à grandes disparidades de riqueza, e a um desrespeito desumano pelo bem-estar da maioria.
A manipulação dos executores do poder - Embutido em O Preço do Amanhã está o tropo provocativo do tempo como uma moeda insidiosa, desvendando um mundo onde a cronologia da vida se torna uma corda bamba traiçoeira. Esta narrativa se entrelaça em uma parábola arrepiante que reflete os abismos de riqueza contemporâneos, onde os escalões superiores estratosféricos exercem um controle insondável, enquanto as massas oscilam no precipício da escassez. É um paralelo com as instituições sociais modernas que se curvam aos caprichos dos ricos.
O filme esculpe uma reflexão dos perigos inerentes a uma estrutura estratificada. A ressonância do filme pulsa no espectro de uma população desprovida de consciência de classe, suscetível à manipulação e à fragmentação - que podemos observar atualmente.
Essa aplicação distorcida da lei reflete as maneiras pelas quais aqueles que estão no poder manipulam os sistemas jurídicos para proteger seus interesses, garantindo a perpetuação da desigualdade. O filme serve como um lembrete de que mesmo as instituições destinadas a defender a justiça podem se tornar ferramentas de opressão, quando são manejadas pela classe dominante - o que na verdade já ocorre.
Reminiscente dos contrastes da realidade, o filme revela uma alegoria em que os "guardiões da lei" (a polícia) se metamorfoseiam em executores da classe privilegiada - nenhuma surpresa aqui!. As alianças mudam não para a justiça, mas para a perpetuação do poder, uma sinfonia de disparidade que reverbera entre os estratos sociais.
A matriz econômica - Enquanto personagens como Raymond Leon (Cillian Murphy) são apresentados como contrastes arquetípicos, o filme corajosamente anuncia que o verdadeiro antagonista é o próprio novelo econômico que une seu mundo. Enquanto os protagonistas navegam pelos corredores complicados da economia temporal, o filme revela que o sistema é o arquiteto do ciclo de desigualdade. A estrutura revela uma semelhança impressionante com as críticas ao ethos capitalista, iluminando a boca voraz da incessante exploração das massas - capitalismo, o mal do século.
Niccol tece inspiração de movimentos sociais, e de um espírito do movimento Occupy Wall Street em uma sinfonia, que reverbera com os espectadores, convocando-os a enfrentar a insidiosa tempestade da desigualdade.
Um vislumbre do amanhã - À medida que as areias narrativas de O Preço do Amanhã chegam ao seu grão final, os espectadores ficam contemplando os tentáculos de um universo onde o tempo - e riqueza - é poder e penúria. Uma verdadeira parábola moderna. O filme deixa uma marca indelével, convidando-nos a questionar a trajetória de nossa própria época, do nosso atual sistema econômico, e seu futuro. O filme nos obriga a olhar através das lentes de uma bola de cristal distópica, onde a economia temporal e a manipulação social se entrelaçam. A cada tique-taque do relógio, a história ressoa com uma urgência que transcende a tela. Ao final do filme, fica a questão: Nossa realidade está se aproximando da cadência assombrosa observada em O Preço do Amanhã?
Uma Chamada à Ação - Acendendo um fervor para desmantelar os abismos temporais que ameaçam nos prender. O filme nos exorta a deixar de lado as correntes da complacência e abraçar o chamado para um mundo onde o tempo não seja guardado por poucos privilegiados, mas compartilhado equitativamente entre todos, um mundo onde a busca pela riqueza não extinga a compaixão, e o tique-taque do relógio serve como um lembrete de nossa humanidade compartilhada.
Num mundo onde as disparidades econômicas continuam a aumentar, e o poder continua concentrado nas mãos de uma elite privilegiada, somos confrontados com uma escolha: sucumbir ao abismo temporal que ameaça engolir-nos ou forjar um novo caminho para a equidade e a justiça.
Deixe esse filme ser mais do que um devaneio cinematográfico, que seja um catalisador para a mudança. Assim como os personagens do filme se unem contra a tirania temporal que os aprisiona, nós também devemos nos mobilizar contra as forças que perpetuam a desigualdade. É um apelo à ação, incitando-nos a abraçar a empatia, a compaixão e a coragem de desmantelar sistemas que geram injustiça, pobreza, e desigualdade.
O Preço do Amanhã nos convida a transcender nossas noções preconcebidas, desafiar o status quo e moldar um mundo onde as badaladas do relógio ressoam com a sinfonia da prosperidade compartilhada. A verdadeira medida de nossa humanidade não reside na acumulação de riqueza, mas na distribuição equitativa de recursos, garantindo que cada tique-taque do relógio seja um lembrete de nossa jornada coletiva em direção a um futuro mais justo e compassivo.
Na imensidão do tempo, temos o poder de reescrever nossa narrativa.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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