A política dos viciados em fake news
Política foi tomada por onda de figuras públicas que, como os macacos-prego, imitam comportamentos populares sem entender as reais necessidades dessa população
Distante 120 quilômetros da capital, a cidade de Canindé fica em um pequeno vale no sertão central cearense. Conhecida principalmente pelas romarias de São Francisco, atrai milhares de fiéis em busca de devoção, mas a pobreza local faz com que essa movimentação pouco se configure como turismo propriamente dito. Embora seja, por vezes, comparada a Juazeiro do Norte, Canindé não alcança a mesma dinâmica econômica e cultural da cidade caririense. Pouco se fala sobre a produção cultural local, apesar de o município abrigar um número considerável de Mestres da Cultura — guardiões de saberes e fazeres tradicionais que representam a identidade popular do lugar. Ainda assim, Canindé costuma se destacar por situações inusitadas, que chamam a atenção de quem passa por ali e ajudam a manter viva a memória regional. Sustentada, em grande parte, pelos serviços públicos, a cidade sobreviveu à margem do desenvolvimento até 2011, quando a instalação de um campus do Instituto Federal (IF) modificou o cenário. A chegada da instituição trouxe novas oportunidades e impulsionou a economia, oferecendo cursos técnicos e profissionais que abriram portas para a juventude local.
Cheguei a Canindé junto com o IF, quando o campus ainda estava em construção e funcionava em uma escola estadual, sob a desconfiança de toda a comunidade. Até a conclusão das obras do Campus, as grandes atrações do município eram a estátua de 32 metros de São Francisco — cujas mãos esticadas desencadearam uma polêmica que abalou emocionalmente seu autor, o Mestre Bibi — e o complexo da Basílica dedicada ao santo. Era nesse complexo, destoando do cenário tenebroso da Gruta e da crueza da Sala dos Milagres, onde ex-votos são exibidos ao lado de cartas e fotos de mazelas, que se destacava um zoológico bastante conhecido na região. O zoológico era composto por animais abandonados por circos, uma prática que, embora não saiba se é oficial, já se tornou um padrão no país. Quando as companhias ficavam sem recursos ou não conseguiam transportar os bichos, acabavam deixando-os no sertão, onde eles enfrentavam a sede e a fome até serem resgatados de um destino pior. Consequentemente, cada um desses animais carregava uma história de grande tristeza.
Nos dias mais tranquilos do zoológico, o funcionário, ao abandonar seu posto, fazia questão de acompanhar os visitantes e compartilhar detalhes trágicos sobre as vidas dos animais, complementando o conteúdo descrito nas placas de identificação. Uma história especialmente comovente era a do urso Simão, cuja vida tão breve e trágica chegou a ser tema de um especial na TV.
No espaço reservado aos macacos-prego, havia uma placa particularmente curiosa. Além das informações zoológicas, a placa exibia, em letras garrafais: “Por favor, não ofereça cigarros aos macacos, mesmo que eles insistam.” Conforme o porteiro relatou, a apresentação principal dos macacos no circo consistia em imitar o comportamento de homens em um bar: bebiam, fumavam e terminavam brigando entre si, arrancando risadas justamente de quem também bebia, fumava e, não raro, acabava brigando em bares de verdade.
O porteiro, no seu jeito característico de aprofundar cada história, descreveu em detalhes o vício e a astúcia daqueles animais. Não bastava apenas negar cigarros: era necessário esconder qualquer objeto ou imagem que os fizesse lembrar do vício. Ao identificar a silhueta de uma carteira de cigarros no bolso de alguém, os macacos ficavam inquietos e agitados, provocando um efeito em cadeia no pequeno zoológico e acabando de vez com a paz do local.
Passados 14 anos da minha primeira visita ao zoológico de Canindé, em um país cujo destino degringolou, envergou mas não quebrou, penso novamente naqueles macacos. A lembrança da agitação deles, presos a um vício imposto, não sai da minha cabeça. Sua inquietude, gerada pela simples presença de um objeto que os remetia ao comportamento que não podiam evitar, me faz refletir sobre a repetição cega de comportamentos que, de alguma forma, se espalham pelas ruas, pelas redes sociais e até pela política. Em um país onde a desinformação se torna uma força potente, figuras de diferentes esferas começam a se encaixar nesse padrão de imitação, agindo como se estivessem seguindo um impulso popular sem realmente compreender as consequências de suas ações.
Recentemente, a política nacional foi tomada por uma onda de figuras públicas que, como os macacos-prego, imitam comportamentos populares sem entender as reais necessidades dessa população. Pablo Marçal, Gusttavo Lima e outros se sentiram à vontade para se lançar como pré-candidatos à presidência da República, acreditando que, ao adotarem um discurso "popular" e se apresentarem como representantes de um Brasil fora do "sistema", conseguiriam angariar apoio. Eles emularam uma linguagem, um comportamento, uma retórica que achavam ser a chave para atrair eleitores, mas sem perceberem que o que estavam realmente oferecendo era uma falsa solução, uma imitação vazia de uma transformação que nunca se concretizaria.
No circo Jair Bolsonaro se destaca como um "case de sucesso". Abandonado depois do espetáculo para morrer de fome ou sede, o ex-presidente, menos competente do que um pequeno símio, utiliza toda sua verborragia e tenta emular os mesmos gestos de "homem do povo", com uma linguagem vulgar e seus discursos polarizadores. Como os macacos que imitam sem entender, Bolsonaro tenta criar uma conexão com as massas, mas sem compreender de fato suas lutas, seus desafios ou que não se joga um pão carioquinha sobre a mesa sem um duralex que seja. Ele é, em muitos aspectos, o reflexo de um líder que busca incessantemente a aceitação popular, se utilizando de um discurso de “anti-establishment”, de proteção contra um sistema corrupto, mas, ao mesmo tempo, reforçando um ciclo vicioso que fortalece os interesses de uma elite e- e de sua família - enquanto ignora as reais necessidades do povo.
Essas figuras públicas, ao imitarem os comportamentos populares, acabam refletindo, também, comportamentos que são reproduzidos em pessoas comuns, que se tornam militantes inconscientes, repetindo e espalhando fake news e narrativas que não só prejudicam a verdade, mas, muitas vezes, fortalecem os interesses dos poderosos. Há aqueles que, sem refletir sobre o impacto de suas palavras e ações, se dedicam a defender o direito de bilionários das big techs de desrespeitar seu próprio país, suas leis e até sua cultura. Eles militam em nome de grandes corporações, acreditando que, de algum modo, isso os colocará em um patamar mais elevado, como se fossem parte de algo maior, de um sistema que, na realidade, os explora, ao invés de servi-los.
A recente decisão de grandes plataformas como Facebook, Google e Twitter de reduzir ou descontinuar os checadores de fatos tem um reflexo direto nesse processo. Essa mudança expõe os usuários a um risco elevado de desinformação, ampliando as brechas pelas quais fake news podem se propagar sem restrições. A psicologia social das fake news é clara nesse contexto: sem mecanismos confiáveis de verificação, as pessoas ficam mais suscetíveis a consumir e compartilhar informações distorcidas que confirmam suas crenças preexistentes, mesmo quando essas informações são falsas. Isso alimenta a polarização social, criando bolhas de desinformação nas quais os indivíduos se isolam e só são expostos a narrativas que reforçam suas visões de mundo, muitas vezes sem qualquer filtro de verdade.
Ao espalharem informações falsas e ao defenderem a imoralidade das grandes empresas, essas pessoas se tornam como os macacos, reagindo a um sistema de desinformação sem entender que, ao defenderem interesses de gigantes como Google e Facebook, estão, na verdade, prejudicando seus próprios direitos e a soberania de seu país. Elas se tornam defensoras de um sistema que enfraquece a democracia, que manipula a verdade e que só fortalece aqueles que já têm um controle imenso sobre a economia e as informações. Sem as ferramentas de verificação, a desinformação se espalha sem freios, e as pessoas acabam alimentando um ciclo vicioso de confusão e polarização.
A falta de regulação das plataformas reflete as pressões econômicas e políticas que essas empresas enfrentam. Muitas vezes, elas se esquivam de implementar medidas rigorosas de verificação para não perder engajamento e audiência. No entanto, esse comportamento não só agrava a disseminação de fake news, mas também mina a confiança nas fontes legítimas de informação. O fenômeno é agravado pela psicologia da conformidade social, que leva as pessoas a seguirem as crenças e comportamentos de seus grupos, o que acelera o processo de desinformação, tornando ainda mais difícil corrigir ou desafiar o conteúdo falso.
Assim, como os macacos-prego, que imitam comportamentos sem refletir sobre os danos que causam, muitos se tornam defensores de um status quo que só os aprisiona mais. E no processo, espalham ideias destrutivas, que afetam tanto a eles mesmos quanto à sociedade como um todo. O país, imerso nesse ciclo de imitação, desinformação e defesa de interesses escusos, segue enveredando por um caminho perigoso, onde a verdadeira mudança e a justiça social são constantemente afastadas, enquanto a ilusão de poder e liberdade é alimentada por narrativas falsas que escondem a realidade do que está realmente acontecendo.
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