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    Alfredo Attié

    Doutor em Filosofia da USP, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista do Direito, autor de Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito

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    A prisão de Bolsonaro esbarra numa infeliz tradição antirrepublicana: a força invisível

    Em sua obra, o sociólogo Jessé de Souza entrevista executivo de banco que revela como compra votos, decisões judiciais e reportagens

    Bolsonaro eleva em 16% gasto com cartão corporativo (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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    "Senta-te, palerma; onde quer que eu me sente, será aí a cabeceira.” CERVANTES. Don Quijote, Segunda Parte, 1615.

    Existe a velha crença de que a realidade se esconde de nosso olhar. As imagens, personagens, falas e atos que vemos corresponderiam apenas a um espetáculo, cujo roteiro teria sido decidido, escrito e dirigido por aqueles que, muito embora não apareçam, detêm o poder verdadeiro.

    Há duas semanas, a mídia, representada por pessoas de seriedade, saber, experiência e reconhecimento indiscutíveis na área da sociologia e do jornalismo, trouxe-nos dois exemplos dessa crença. O primeiro, uma entrevista, realizada com um executivo bancário pelo sociólogo Jessé de Souza, foi, uma vez mais, divulgada, no site do Movimento em Defesa da Soberania Nacional (https://mdsn.com.br/2023/02/06/executivo-de-banco-conta-como-se-compram-politicos-juizes-e-jornalistas-em-entrevista-a-jesse-souza/), reproduzindo matéria originalmente publicada no Diário do Centro do Mundo, em 25 de agosto de 2019 (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/executivo-de-banco-conta-como-se-compram-politicos-juizes-e-jornalistas-em-entrevista-a-jesse-souza/), dando conta do ambiente de corrupção da política, da justiça e do jornalismo, especificando, muito embora de modo anônimo, não só os métodos empregados, mas, sobretudo, alguns casos havidos nessa generalizada tarefa da compra de votos, decisões e reportagens. O outro, uma reportagem de Mônica Bergamo, publicada na Folha/UOL (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2023/02/bolsonaro-ficara-inelegivel-mas-nao-deve-ser-preso-dizem-ministros-do-stf-e-do-stj.shtml), dando conta de um balanço de juízes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre o destino processual do ex-presidente da República, incluindo um juízo sobre a inoportunidade de sua condenação e a suficiência de sua inelegibilidade.

    São exemplos daquela crença dos bastidores. Passam a impressão ou, talvez, a convicção de que tudo o que é institucional e legal não é mais do que mera aparência, sendo, ao contrário, a vontade soberana de alguns – detentores do poder econômico e político – que dá a palavra que vale, mesmo que ela se choque frontalmente contra instituições e normas, que servem apenas como mera formalidade, fácil de contornar ou de usar segundo a conveniência daquela vontade invisível.

    Não quero, neste artigo, indicar que essa expressão inoficial do que se torna oficial – passando por cima da ignorância da maior parte da população brasileira, que não tem tempo nem condições para se informar e formar opinião, diante da dificílima luta pela sobrevivência – deva ser corrigida por mecanismos que a Constituição já prevê e determina. Deixo isso para as autoridades que, diante da publicidade desses fatos, por veículos de credibilidade inconteste, deveriam tomar providências. No caso da entrevista do sociólogo, identificando as pessoas e os órgãos esboçados no depoimento colhido; no caso da reportagem da jornalista, a atuação dos órgãos constitucionais de controle, institucional e democrático, que devem ver nas normas a vedação de um juízo político de mera oportunidade, diante de fatos graves, que determinariam processos e punições mais condizentes com a ordem jurídica. Noto até que há um vício intrínseco na manifestação anônima dos membros referidos dos tribunais superiores: como comparar o empreendimento antijurídico anterior,  levado a cabo pelo lavajatismo contra o atual Presidente, ao desempenho normal e adequado exigido, agora, tardiamente, em relação aos atos anticonstitucionais da administração anterior, cogitando de coibir abusos, quando sequer o uso normal dos mecanismos de controle foi experimentado, por um poder que se mostrou incapaz de fazer atuar a Constituição, contra atos criminosos que se repetiam no cotidiano? Em termos simples, pregam que a lei não seja utilizada. Isso para evitar que erros causados pela não utilização da lei adequadamente sejam cometidos. Talvez, pior, cogitem, sem embaraço algum, sequer de ordem ética, que as omissões - que permitiram o término de um mandato que feria constantemente a Constituição, e a eleição em estado de abuso de poder político e econômico, em meio à difusão de fakenews, de membros do mesmo regime anticonstitucional – perpetuem-se.

    Deixo, contudo, de lado, essas questões, por mais relevantes que sejam, para tratar de um outro tema, o da indagação da possível relação entre os dois textos. 

    Quando um texto aparece e nos conta fatos de modo a impedir que as fontes sejam descobertas, sobretudo se traz revelações muito contundentes, como é o caso presente, a comunicação acaba por se encaixar na categoria mais da verossimilhança do que da verdade. Você não tem como aferir se o que se diz é ou não certo, não pode confrontar o texto com suas fontes e seu contexto. Isso porque só o texto vem ao público, que o interpreta apenas como provável ou improvável, sem ter em mãos prova alguma. Nos detalhes talvez haja veracidade, mas a sensação geral é de estamos diante de um trabalho mais ou menos de ficção. Para saber a verdade, é preciso ir além, precisamente, buscar provas. Cidadãos e cidadãs não podem fazer o que cabe a autoridades administrativas e judiciárias, como dever – não apenas o direito – de agir.

    O entrevistado de Jessé de Souza fala de uma zona cinzenta entre o legal e o ilegal, constantemente ameaçada e invadida pelo ilegal, na qual os atos de compra-e-venda de trabalhos políticos, jurídicos e jornalísticos teria se tornado natural: todo mundo teria o seu preço, apenas importando o modo como esses atos são perpetrados. Negociações diretas de valores, patrocínio de eventos (nesse sentido, é importante salientar o trabalho de outro importante jornalista da Folha/UOL, Frederico Vasconcelos, que tem acompanhado, em uma série de reportagens, a realização  de eventos no Brasil e no exterior, por ou para membros das funções jurídicas públicas), pagamentos por palestras, criação de redes de cumplicidade e de troca de informações privilegiadas, reportagens direcionadas a interesses específicos, notícias encomendadas e censuradas, projetos de lei para proteção de interesses privados exclusivamente, enfim, uma máquina profunda, que fabrica o tecido político-jurídico-social e finge ser determinada pelo que está na superfície do blábláblá das autoridades.

    Já o texto de Mônica Bergamo, de autêntica e sempre elogiável percepção jornalística, aponta para os ditames de uma vinculação cultural dos membros de Poder Judiciário, em sua mais alta esfera, que parece descrer da lei e de sua eficácia, mesmo apontando critérios não jurídicos de legitimidade para a emissão constante de opiniões, que nunca se concretizam na esfera real e exigível da atividade jurisdicional. Ou seja, o mesmo blábláblá cotejado com uma força invisível, que sempre se contém na aplicação efetiva da lei, ou encontra pretextos para que essa lei seja aplicada de forma diversa da estipulada, ou não seja aplicada. Igualmente, um problema lógico. Se as leis existem para estabelecer uma disciplina desejável e desejada pelo povo (seu artífice, por meio dos representantes eleitos), há uma recusa em aplicá-la, sob a justificativa de que a aplicação da lei trará indisciplina.

    Os dois textos referem esse agir de bastidores – reais ou fictícios, mas de energia extremamente eficaz – de contraposição ou contenção da atuação jurídico-constitucional.

    Essa comparação e interpretação que, aqui, empreendi, mesmo que brevemente, demonstra que, afinal, o regime anticonstitucional levado a cabo pelo governo anterior não era senão o exagero de uma situação que explica muitas das mazelas históricas do povo brasileiro, submetido a autoridades que apreciam se destacar da sociedade, colocando-se - contra a Constituição, devo lembrar – como moderadores da lei e da ordem das coisas, no mínimo, ou como senhores e senhoras dessa mesma ordem, ao empenharem a eficácia da atuação legal como mera falácia, disfarce de troca de favores e valores.

    Como demonstrou o escritor Miguel de Cervantes, nem sempre a convenção social se expressa de modo a facilitar a interpretação. Há um lugar de destaque que corresponde à cabeceira da mesa, mas o poderoso pode ceder esse assento ao destituído de poder, sem abandonar sua posição hierárquica. A cabeceira não é um lugar visível e palpável. Ela segue uma lógica diferente, que se antecipa ao ato de se sentar. É a lógica do domínio, nu e cru, que tem determinado o modo da política e da cultura no Brasil.

    Para a transformação desse estado de coisas, é preciso uma decisão firme e sustentável politicamente, que, acredito, o atual Governo Democrático tem capacidade de realizar. O povo a deseja e merece.

     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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