A questão fiscal como parte da luta de classes
Em nosso país, os ricos não pagam quase nada de impostos, enquanto que os mais humildes assumem um peso absurdamente elevado do montante de recursos arrecadados
Com a recente aprovação pelo Congresso da proposta de recorte de gastos enviada pelo Governo Federal, ficaram bastante evidentes alguns aspectos de como são travadas as batalhas dentro da luta de classes em nosso país.
Se, mesmo fazendo enormes concessões aos interesses das classes dominantes, o projeto governamental procurava garantir a defesa de alguns pontos favoráveis ao campo popular, a atuação da maioria reacionária nos órgãos parlamentares no processo de discussão da medida acabou por encaminhar a definição num rumo em que o povo trabalhador saiu em situação ainda pior do que já se encontrava.
Mas, por que esta questão de tributação fiscal e isenção de impostos tem tudo a ver com a luta de classes? É isto o que vamos tentar esclarecer nas próximas linhas deste texto.
Em primeiro lugar, é fundamental que tenhamos em mente que é através de sua capacidade de influir na atuação do aparelho de Estado que as diferentes classes que compõem uma sociedade conseguem fazer valer o peso de suas reivindicações em relação ao conjunto de seus integrantes. Em consequência, aqueles que dispuserem de mais força estarão em condições mais favoráveis para impor ao Estado a priorização do atendimento dos pontos que lhes são favoráveis e, por sua vez, que os custos para a manutenção desse aparelho recaiam com maior incidência sobre os que contam com menos poder de fogo.
Como é sabido, para que possam funcionar normalmente, todas as sociedades humanas modernas dependem da arrecadação de impostos para manter as atividades públicas essenciais que são supridas pelo Estado. O fornecimento de um ensino público de qualidade aceitável, um serviço de atendimento médico eficiente e um esquema de segurança pública que ofereça proteção e tranquilidade a seus habitantes, tudo isto são tarefas que correspondem ao Estado e que dependem de recursos fiscais para serem mantidos.
Quais são os serviços a proporcionar e de onde extrair os fundos para sustentá-los são as principais questões que as forças componentes da sociedade precisam dirimir para que o aparelho de Estado possa continuar exercendo suas atividades. Via de regra, as classes mais abastadas se preocupam quase que exclusivamente com a eficiência dos sistemas de repressão policial e do Judiciário, visto que são estes os que lhes servem para conter mais eficazmente a rebeldia dos setores populares e os protestos dos trabalhadores e dos pobres em geral. Em vista disto, esses setores mais ricos não costumam demonstrar nenhuma disposição a concordar com a ideia de que as instituições do Estado sirvam para atender as necessidades básicas das maiorias populares.
Assim, essas classes dominantes optam por manter seus filhos em escolas particulares, e não demonstram interesse em contribuir para a existência de escolas públicas de boa qualidade, onde os filhos dos trabalhadores recebam um ensino de boa qualidade. Algo semelhante ocorre em relação ao atendimento médico. Quanto a isto, como esses setores mais abastados têm como pagar por hospitais e clínicas particulares, eles geralmente se opõem ao financiamento público de sistemas de assistência médica que beneficiem aos menos favorecidos economicamente. Por isso, eles resistem a aceitar que os impostos sirvam para bancar serviços públicos voltados para as maiorias populares.
Porém, como as camadas mais ricas representam uma fração ínfima da totalidade da população, elas dependem do apoio político que consigam angariar em outros setores para impor as determinações que conformam com seus interesses. Assim, elas tratam de atrair para suas posições pelo menos certas parcelas das classes médias e dos pobres, para que estes também assumam como seus os posicionamentos e as visões que favorecem quase que exclusivamente aos ricos. Portanto, em lugar de expressar claramente que não querem pagar impostos e que não concordam que estes sirvam para custear serviços que beneficiam as maiorias menos pudentes, os super ricos recorrerão a seu imenso poderio e controle midiático para induzir a gente de extração popular a crer que a eliminação por parte do Estado da oferta de serviços públicos e a não cobrança de impostos dos mais aquinhoados são medidas que vão ao encontro dos interesses de todos.
Entretanto, quando analisamos como se dá a arrecadação tributária no Brasil, nos damos conta de que, de fato, o grosso da tributação incide sobre aqueles que, por lógica, coerência e decência humanitária, menos deveriam pagar. Expressando isto de maneira menos inequívoca: em nosso país, os ricos não pagam quase nada de impostos, enquanto que os setores mais humildes têm de assumir um peso absurdamente elevado do montante de recursos fiscais arrecadados.
O principal mecanismo utilizado para isentar quase que totalmente as classes dominantes do pagamento de impostos é concentrar a tributação sobre o consumo e não sobre a renda. Enquanto que nos países europeus, nos Estados Unidos e no Japão, por exemplo, as rendas são muito mais rigorosamente taxadas de modo direto, chegando em vários casos a superar os 50%, em nosso país, a alíquota máxima não vai além dos 27,5%. Assim, tanto faz que tenhamos um super executivo que ganhe em torno de R$ 500 mil ao mês ou um assalariado de classe média que receba em torno de R$ 15 mil, o percentual que incidirá sobre ambos será o mesmo, ou seja, 27,5%.
Porém, isto está longe de representar a injustiça mais aberrante. No caso de rendimentos auferidos por vias não salariais, a aberração é muitíssimo maior e chega mesmo a ser monstruosa. Os rendimentos advindos de dividendos simplesmente não são taxados. O Brasil é um dos únicos países do mundo onde isto ocorre. Já a tributação aplicada aos rendimentos derivados de atividades empresariais é mínima ou inexistente.
No final das contas, o que realmente vai sustentar o funcionamento do aparelho estatal serão os impostos cobrados indiretamente sobre os bens de consumo.
Para que nos seja possível ter uma compreensão mais realística do que isto significa, vamos traçar à continuação um quadro hipotético (mas bem elucidativo do problema real) sobre o peso arcado pelo conjunto dos trabalhadores e pelos setores capitalistas no total dos impostos aplicados aos bens de consumo. Neste caso, visando facilitar a exposição e o entendimento, vamos admitir as hipóteses que listaremos a seguir. Na verdade, a situação real é ainda mais crítica:
a) Consideremos que no país há 100 milhões de contribuintes, dos quais, 80 milhões são trabalhadores que ganham uma média mensal de R$ 2,5 mil, e outros 20 milhões de empresários cujos rendimentos estão na média de R$ 50 mil ao mês;
b) Outra suposição realística é a de que todo o rendimento dos que ganham a média de R$ 2,5 mil é gasta em bens de consumo e, no caso dos que estão na média dos R$ 50 mil o gasto individual em consumo será de R$ 10 mil;
c) Para efeitos práticos, todos os bens de consumo são taxados com a alíquota de 25% sobre seus preços de mercado;
d) Renda total do país: R$ 1,2 bilhão, sendo R$ 200 bilhões dos trabalhadores e R$ 1 trilhão dos empresários.
Se aplicarmos a alíquota de 25% de impostos ao consumo de cada grupo, chegaremos aos seguintes números:
- Trabalhadores: R$ 50 bilhões (25% de R$ 2,5 mil x 80 mil)
- Empresários: R$ 50 bilhões (25% de R$ 10 mil x 20 milhões)
Expressando em palavras o significado destes cálculos, temos que os trabalhadores pagam de impostos 25% de seu rendimento total de R$ 200 bilhões, ao passo que os empresários se limitam a ceder apenas 5% de seus ganhos totais de R$ 1 trilhão para cobrir impostos.
Após analisarmos este quadro, vamos entender que não é à toa que as classes dominantes querem que a tributação seja feita exclusivamente sobre os bens de consumo, e não com a taxação direta em relação aos rendimentos.
Bem, temos consciência de que do diagnóstico constatado não surge a cura de imediato. O problema de quem paga as contas dos custos do funcionamento do aparelho estatal e a quem ele deve servir prioritariamente está inserido nos embates da luta de classes permanente que são travados sempre e quando classes com interesses contrapostos se chocam no cenário social. Por outro lado, sabemos também que, por mais que Lula seja uma pessoa profundamente imbuída de sentimentos favoráveis à classe trabalhadora, da qual ele mesmo é oriundo, seu governo não é um governo hegemonizado pelos trabalhadores.
Em vista do que acabamos de dizer, temos de ter clareza que o atual governo é uma entidade em disputa, em que cada grupo que o integra procura conduzi-lo em conformidade com seus interesses de classe. Portanto, cabe aos trabalhadores também travar a luta para que suas aspirações sejam respeitadas e atendidas. Mas, isto não depende tão somente de desejos e vontades.
Evidentemente, não nos basta contar com a presença de Lula na chefia do Estado. Para que isto se transforme em força popular real, é preciso que os trabalhadores, suas organizações sindicais e partidos tenham conhecimento da realidade que nos circunda e estejam dotados da necessária consciência de classe e disposição de somar forças e construir organização com o propósito de avançar no rumo de uma nova sociedade, na qual injustiças como as expostas neste texto se tornem coisas do passado.
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