A santa ceia de Dionísio, e um Jesus perdido entre os deuses do Olimpo da hipocrisia
"Historicamente ninguém profana mais a fé cristã do que a Igreja e seus líderes", escreve o colunista
Já era de se esperar que os “cristãos” enxergassem algo diabólico ou um apocalipse para chamar de seu, na cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Paris. Afinal, muitos deles se escandalizam com qualquer coisa que não tenha, de fato, relevância ou que seja nocivo ao bem-estar social coletivo. É uma espécie de identitarismo reverso, onde eles não se identificam com qualquer coisa ou pessoa que não seja igual a eles. É uma fé meio narcísica, onde todos que não aparecem refletidos no espelho de sua devoção são do mal. Ninguém satiriza, demoniza ou ridiculariza mais a fé alheia do que os cristãos. Sobretudo, os evangélicos. As religiões de matriz africana que o digam. Ou quando o pastor faz uma marmota e começa a bater o pezinho no chão e gritar feito um desesperado mandando orixás e entidades africanas se renderem às suas ordens e comandos, ele está sendo respeitoso?
Os cristãos são haters profissionais do culto religioso alheio. Aliás, eles são haters do próprio culto, porque ninguém profana mais a fé cristã do que a própria Igreja e seus líderes. Sobretudo, a igreja evangélica, um berço de barbaridades proféticas, picaretagens ungidas em nome da prosperidade e outros absurdos que envergonham os ensinamentos de Cristo. É essa gente que se sentiu ofendida com uma encenação artística que reproduz uma obra chamada a “Festa dos Deuses”, do holandês Jan Van Bijlert, que mostra os deuses do Olimpo grego em confraternização, a qual eles associaram a Santa Ceia, último momento de Jesus Cristo com os seus discípulos. E se fosse a Santa Ceia, onde estaria a blasfêmia? Para esses ditos cristãos, o problema não é a referência ao momento considerado sagrado para o cristianismo, mas sim quem estaria interpretando esse momento. No caso da abertura dos jogos olímpicos, as “drag-queens” que, para os fundamentalistas, são seres diabólicos.
Fico imaginando o Deus que tudo fez, tudo criou e tudo formou, assistindo a parte de sua criação invalidando e demonizando a existência de outra, apenas por ser diferente dela. Um Deus que é onipotente, onipresente e onisciente, mas que teria “perdido o controle” da própria criação, ao permitir que pessoas diferentes viessem à existência. Diferentes de quem? De quem se julga o padrão de aceitação por parte de Deus a ser seguido. Um narcisismo espiritual que explica o porquê de a Igreja Católica ter inventado que Jesus é branco, loiro, tem os olhos azuis e é rei. Alguma dúvida de que poucos entregariam a alma para um Jesus preto, de cabelo “duro” e sem título de nobreza? Reflitamos aqui: e se Jesus voltasse como um homem preto, ou com o cabelo meio crespo, ou mais gordinho, ou meio baixinho, com algum traço que alguém pudesse considerar meio afeminado, com alguma característica física que os capacitistas entendessem como defeito, com um semblante que alguém pudesse julgar não muito acolhedor, ou com uma aparência que não convencesse aos padrões esperados? Como seriam as reações de seus “fiéis” seguidores?
Os questionamentos propostos no parágrafo anterior deveriam nos fazer entender porque a volta de Jesus pode ser considerada apenas uma retórica espiritual que nunca acontecerá fisicamente. Até porque, muitos que se dizem salvos em seu nome, poderiam ir para o tão temido inferno e perderem a salvação, por duvidarem da veracidade da figura que se apresentasse como o salvador da humanidade diante deles. Se muitos religiosos já o crucificaram anteriormente por não acreditarem que ele era Deus que se fez homem, porque todos os religiosos acreditariam agora se ele retornasse? Um dos questionamentos feitos à divindade de Jesus, era o de que ele era apenas um filho de uma camponesa e de um carpinteiro. Aliás, outro fator que pesava sobre Jesus ser aceito como Deus, é o fato de sua paternidade ser adotiva. Ou vocês acham que naquela época todos acreditaram que Maria concebeu através do espírito santo? Os conservadores de outrora tinham Jesus como um filho do pecado de uma mulher que havia conhecido um homem antes de se casar com ele. Como alguém nascido nessas condições poderia ser um rei, um deus para o povo daquela época? Num mundo onde cada um cria um Deus à sua imagem e semelhança, Jesus não seria tolo de voltar aqui para ser morto novamente. Me esperem sentados e de braços abertos, como eu morri, diz ele.
Fés à parte, o que devemos analisar toda vez que os representantes do cristianismo se manifestam em defesa da honra de Deus, como se ele precisasse de “advogados” tão mequetrefes, é o que (ou quem) estaria sendo colocado em oposição ao sagrado religioso. Se a Santa Ceia tivesse sido retratada através dos Super Amigos ou de personagens da Disney, a gritaria talvez não fosse a mesma. Mas em se tratando de população LGBT, a coisa muda de figura. Também gostaria de ver a reação se a cena fosse retratada por um Jesus e seus discípulos vestidos com a indumentária das religiões de matriz africana, ou pelos orixás do panteão africano, que são mais antigos do que os símbolos do cristianismo. Desrespeito? Eu chamaria de diversidade artística e inclusão cultural. Desrespeito é tentar anular a existência de pessoas e matá-las em “nome de Deus”, tendo o discurso de ódio e preconceito como arma letal. É curioso como pessoas que não respeitam a liberdade individual das outras, gostam de exigir respeito para com elas. Hipocrisia, não é? São esses que estão denunciando um suposto deboche com a fé cristã.
Deboche com a fé cristã é nos fazer crer que Jesus apoiava a escravização de seres humanos. Deboche com a fé cristã é usar o nome de Jesus para fingir milagres e curas, e enriquecer às custas de fiéis incautos e alienados. Deboche é vermos picaretas da fé se apresentando como escolhidos por Deus para guiar ovelhas cegas e carentes de conhecimento. Deboche é ver a Igreja e seus líderes, depois de tudo que já fizeram e apoiaram ao longo da história, se sentirem ofendidos em nome do Jesus cujo evangelho eles corromperam por interesses políticos e pessoais. Deboche com a fé cristã é ter pastor oferecendo ladrão de joias como messias salvador da nação. Deboche com a fé cristã é ter pastor na política legislando contra os direitos dos pobres para os quais Jesus prometeu o seu reino. Deboche com a fé cristã é ouvir cristãos falarem em defesa da vida, ao mesmo tempo em que apoiam Netanyahu e o genocídio que ele comanda contra o povo palestino. Deboche com a fé cristã é viver um cristianismo sem Cristo.
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