“A Substância”: a decadência existencial e a ditadura da beleza em uma sociedade obcecada pela aparência
"A Substância" passa uma mensagem poderosíssima sobre autoaceitação, autoestima e etarismo
"A Substância", o novo filme de Coralie Fargeat, é uma obra que desafia as convenções de Hollywood ao abordar temas como juventude, beleza e pertencimento de maneira visceral e perturbadora. Ambientado em Los Angeles, o filme começa com uma cena emblemática na Calçada da Fama, onde a estrela de Elisabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, é pisoteada e suja de ketchup, simbolizando a decadência e o esquecimento. Essa sequência inicial define o tom sombrio e satírico que permeia toda a narrativa, preparando o espectador para uma autêntica saga de horror corporal e crítica social.
O filme é uma verdadeira colagem de referências cinematográficas, que vão desde "Branca de Neve" da Disney até "Videodrome" de David Cronenberg. Essa mistura de influências cria uma identidade única para "A Substância", que transita entre o aterrorizante e o cômico com uma fluidez impressionante. A escolha estética por um visual artificial, colorido e sintético é coerente com a narrativa satírica, projetando uma Hollywood onírica e distorcida.
Demi Moore entrega uma performance avassaladora como Elisabeth Sparkle, uma atriz em decadência que luta para manter sua relevância em um mundo obcecado pela juventude. Moore se transforma completamente para o papel, explorando as múltiplas facetas de sua personagem com uma intensidade que é ao mesmo tempo comovente e perturbadora. Sua atuação é um dos pontos altos do filme, trazendo uma profundidade emocional que eleva a narrativa a um novo patamar.
A relação entre Elisabeth e Sue, interpretada por Margaret Qualley, é central para a trama e explora as dinâmicas de poder e dependência entre as duas mulheres. À medida que a história avança, o equilíbrio entre elas se descompensa, levando a uma espiral de eventos cada vez mais sombrios e grotescos. Essa dinâmica é um comentário provocativo sobre as influências invisíveis que moldam nossa realidade a partir dos nossos mais profundos desejos e vaidades.
O filme também se destaca por sua atmosfera visual e sonora impressionante. A direção de arte e a paleta de cores são impecáveis, criando um ambiente que é ao mesmo tempo belo e perturbador. A trilha sonora complementa perfeitamente a narrativa, intensificando as emoções e o suspense em momentos-chave.
A obra não poupa críticas à sociedade capitalista e sua obsessão pela aparência e pelo status. O filme expõe de maneira brutal a ditadura da beleza, onde a juventude e a perfeição física são vistas como os únicos caminhos para a aceitação social e o sucesso. Elisabeth Sparkle, ao recorrer a um processo de clonagem para criar uma versão mais jovem e atraente de si mesma, simboliza a pressão incessante para se conformar a padrões inatingíveis de beleza, uma realidade que muitas pessoas enfrentam diariamente.
Além disso, o filme aborda a necessidade constante de estar em evidência para que a vida tenha sentido, uma crítica severa e atual em tempos de youtubers, influenciadores e coaches. A superficialidade das relações humanas e a busca incessante por validação na mídia são retratadas de maneira crua e perturbadora. "A Substância" questiona o valor real dessas métricas de sucesso e expõe a hipocrisia de uma sociedade que promove a ostentação e o culto à imagem, enquanto marginaliza aqueles que não se encaixam nesses padrões. É uma reflexão poderosa sobre a superficialidade e a efemeridade da fama, e como isso pode levar ao ostracismo e à perda de identidade.
As inúmeras referências cinematográficas presentes em "A Substância" enriquecem a experiência do espectador, criando um jogo intertextual que vai desde o drama categórico e comovente até a ficção científica, o suspense, o terror gore e até mesmo boas pitadas de comédia. Essa complexidade de camadas pode ser vertiginosa, mas é justamente essa riqueza que torna o filme tão fascinante e único.
A atuação de Demi Moore é um verdadeiro “tour de force”. Ela não apenas interpreta Elisabeth Sparkle, mas também os inúmeros personagens dentro da própria personagem, explorando as múltiplas identidades e máscaras que Elisabeth assume ao longo da trama. Essa entrega total ao papel é um testemunho do talento e da versatilidade de Moore, que merece reconhecimento por sua performance.
Passagens do filme lembram tanto obras atuais como "A Morte do Demônio: A Ascensão" (2023) quanto clássicos como "A Mosca" (1986) de David Cronenberg. A influência de Quentin Tarantino também é evidente, com referências a "Um Drink no Inferno" (1996), "Kill Bill" (2003) e "Pulp Fiction" (1995). Essas referências não são meros acenos, mas sim elementos integrados de maneira orgânica à narrativa, enriquecendo a experiência do espectador.
"A Substância" passa uma mensagem poderosíssima sobre autoaceitação, autoestima e etarismo. O filme explora como nos transformamos em "monstros" ao não nos admitirmos como de fato somos, oferecendo uma crítica mordaz à obsessão pela juventude e pela perfeição. Essa mensagem é transmitida de maneira visceral e impactante, ressoando profundamente com o público.
O desfecho do filme é apoteótico, catártico e emblemático, encerrando a narrativa de maneira que deixa uma marca indelével no espectador. É um final que não apenas amarra as pontas soltas da trama, mas também oferece uma reflexão profunda sobre os temas abordados ao longo do filme. É, sem dúvida, uma obra que ficará na memória de quem a assistir, desafiando e provocando em igual medida.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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