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    Alvaro Penteado Crósta

    Professor do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas

    8 artigos

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    A Unicamp, o título e o coronel

    Pelos Estatutos da Unicamp, poderão receber o título de Doutor Honoris Causa quem tenha contribuído de maneira notável para o progresso das ciências, letras ou das artes; aqueles que tenham beneficiado a humanidade de forma excepcional, ou, ainda, tenham prestado relevantes serviços à Universidade. Em nenhuma dessas situações poderia estar Jarbas Passarinho

    (Foto: Picasa)

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    Hoje reconhecida como um dos pilares da ciência e do pensamento crítico brasileiros, a Unicamp já nasceu, em 1966, sob o peso repressivo da ditadura militar vigente no país de 1964 a 1985. A então recém-criada universidade pública paulista, assim como muitas outras instituições acadêmicas, não passaria incólume pelo período de exceção que dominou o Brasil por mais de duas décadas. Ao contrário, vários membros da sua comunidade – docentes, estudantes e funcionários – sofreram discriminação, perseguição e/ou foram presos e torturados pela ditadura militar. 

    Ainda que seu organograma oficial não contivesse uma das famigeradas “assessorias de segurança e informações”, como ocorreu em diversas outras universidades públicas brasileiras, os olhos e braços da ditadura militar não deixavam de se fazer presentes no cotidiano do campus universitário. Assim, a noção de que a Unicamp representou um oásis para muitos dos perseguidos pela ditadura, bastante difundida, é equivocada sob as perspectivas factual e histórica. 

    A fomentar essa ideia errônea está a famosa frase atribuída a Zeferino Vaz, o fundador da Unicamp e seu reitor entre 1966 e 1978, em resposta a um militar encarregado de prender pessoas ligadas à Unicamp: “Dos meus comunistas cuido eu”. Tal frase não encontra respaldo nos fatos ocorridos, dentro e fora da universidade, envolvendo membros de sua comunidade.

    Em setembro de 2013 instalou-se, sob a égide da Coordenadoria Geral da Universidade, a Comissão da Verdade e da Memória “Octavio Ianni”. A CVM foi criada com as seguintes premissas:

    · A necessidade de investigar atos de arbitrariedade cometidos durante a ditadura militar contra membros de sua comunidade.

    · A relevância da busca da verdade histórica em relação aos fatos ocorridos no seio da Universidade.

    · O efeito pedagógico do levantamento de situações vividas por docentes, alunos e funcionários durante o governo de exceção.

    · A responsabilidade da Universidade, como espaço democrático e plural, em contribuir para o esclarecimento o desses acontecimentos e para torná-los de amplo conhecimento.

    A CVM da Unicamp fez um rigoroso e extenso trabalho, resgatando historicamente diversos casos de membros da comunidade vitimados pela ditadura militar. Esse trabalho foi registrado no seu Relatório Final, disponível em: https://www.comissaoverdade.gr.unicamp.br/pdf/RELATORIO_CVM_FINAL_web.pdf

    Também está registrado, de forma emblemática, na placa colocada em 18/03/2016 ao lado do painel da Praça das Bandeiras, no campus principal da Unicamp, localizado no distrito de Barão Geraldo, em Campinas. Esse painel exibe a imagem de seu fundador, Professor Zeferino Vaz, e o trecho do ato de fundação da Universidade, assinado pelo então ditador, marechal Castelo Branco. 

    Síntese e símbolo dos trabalhos da CVM da Unicamp, a placa esclarece que o marechal, mencionado no painel como ‘Senhor Presidente da República’, exerceu de fato esse cargo, porém com mandato decretado pela ditadura militar. Os seus dizeres expressam, ainda, “a necessária função de repudiar qualquer homenagem prestada a quem apoiou tais crimes.” 

    Descerramento da placa em homenagem aos membros da comunidade da Unicamp perseguidos pela ditadura militar (18/03/2016) Foto: Antoninho Perri (Unicamp)

    Em 1973, o Conselho Diretor da Unicamp (que ainda não tinha um Conselho Universitário à época), por proposta do reitor Zeferino Vaz, aprovou a concessão do título de Doutor Honoris Causa ao então ministro da Educação, o coronel reformado Jarbas Passarinho. Trata-se da mais alta honraria que a universidade pode conceder a uma pessoa que não pertença ao seu quadro acadêmico.

    Pelos Estatutos da Unicamp, em seu artigo 158, poderão receber o título de Doutor Honoris Causa aqueles que atendam a uma destas situações: quem tenha contribuído de maneira notável para o progresso das ciências, letras ou das artes; aqueles que tenham beneficiado a humanidade de forma excepcional, ou, ainda, tenham prestado relevantes serviços à Universidade. 

    Em nenhuma dessas situações poderia estar Jarbas Passarinho, que, nesse período, serviu como ministro de dois generais ditadores, tendo sido um dos signatários de um dos mais violentos e sanguinários instrumentos de exceção da ditadura, o Ato Institucional No5. 

    O coronel –  como Passarinho gostava de ser chamado – foi responsável pela aposentadoria compulsória de docentes e pesquisadores, muitos dos quais viram-se forçados a deixar o país. Além disso, foi também responsável pela perseguição política a quem se opusesse à ditadura, recorrendo às “assessorias de segurança” e uma rede de espias e delatores dentro das universidades públicas.

    A história registra que, no momento da assinatura do referido ato, em 13 de dezembro de 1968, o coronel Passarinho, então ministro da Agricultura, fez a seguinte manifestação ao ditador general Costa e Silva: “Sei que a Vossa Excelência repugna, como a mim e a todos os membros desse Conselho, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples, mas me parece que claramente é esta que está diante de nós. [...] Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”

    Em seus 96 anos de vida, o coronel jamais manifestou qualquer arrependimento quanto ao papel que desempenhou na ditadura militar e ao prejuízo que causou a membros da comunidade acadêmica brasileira e às próprias universidades públicas. Ao contrário, sempre tentou justificar os seus atos arbitrários. 

    É, portanto, fato inquestionável que a decisão de conceder o título tomada em 1973 foi um equívoco, cometido graças ao omnipresente ambiente de temor e aos atos de arbítrio de todos os tipos impostos pelo terrorismo de Estado no qual Passarinho teve participação ativa, inclusive como um dos ideólogos do regime. 

    Ademais, é evidente que se faz necessário e improtelável corrigir tal equívoco. Essa atitude já foi tomada pela UFRJ quando, em 20/04 deste ano, o seu Conselho Universitário revogou título similar, também concedido ao coronel em 1973.

    No contexto do reconhecimento público da verdade dos fatos que cercam essa concessão que o Conselho Universitário da Unicamp, em 05/08/2014, apreciou uma proposta de revogação do referido título.

    Como se tratava de votação qualificada, seriam necessários 2/3 do total de membros do Conselho para revogar a decisão de 1973, o que equivalia, à época, a 50 votos. Infelizmente, houve um voto a menos do que o necessário para atingir o mínimo necessário para a revogação, o que resultou na manutenção do título. Houve 10 votos contrários e 10 abstenções, ou seja, 20 conselheiros decidiram, direta ou indiretamente, pela manutenção do título.

    A jovem democracia brasileira passou a sofrer, desde 2016, sucessivos golpes, que a levaram à calamitosa e vergonhosa situação em que se encontra hoje. Os fatos que vêm ocorrendo em nosso país, assim como a criminosa ação do atual governo federal durante a pandemia da Covid-19, só vêm reforçar a imperiosa necessidade de que a Unicamp, por meio do seu Conselho Universitário e com apoio das Congregações dos seus Institutos e Faculdades e da comunidade acadêmica, aja com a altivez e a coragem cabíveis no momento, acatando a petição organizada pela Associação dos Docentes, pelo Sindicato dos Trabalhadores, pelo Diretório Central dos Estudantes e pela Associação dos Pós-Graduandos da Unicamp.

    E que essa nódoa, que marca negativamente a altiva imagem da Unicamp, seja removida em definitivo!

    Em meu discurso, proferido no ato de descerramento da placa em homenagem às pessoas perseguidas pela ditadura militar**, afirmei que se tratava de um ato de ensino ‘da verdadeira história’, em contraposição à história narrada à época da ditadura militar. O discurso prosseguia dizendo que “Aquele ato ocorria num momento em que nuvens bastante sombrias estão pairando novamente sobre o nosso país, com ameaças concretas e reais ao estado democrático de direito. Este momento é de extrema preocupação porque vemos grupos, levantando bandeiras a favor da intolerância racial, política, de gênero, da intolerância de classe e de orientação sexual. E também pregando a volta do regime de exceção”. 

    Mal sabia o quão proféticas se tornariam aquelas palavras ...

    **Nota: O relatório da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” menciona os seguintes membros da comunidade acadêmica da Unicamp que foram perseguidos pela ditadura militar: Ademir Gebara, Alberto Pelegrini Filho, Alberto Zeitune (in memoriam), Alcides Mamizuka, Álvaro Caropreso, Anamaria Testa Tambellini, Antônio Sérgio da Silva Arouca (in memoriam), Cristina Possas, Edson Corrêa da Silva, Eduardo Maia Freese de Carvalho, Eleonora Machado Freire (in memoriam), Elisabeth Moreira dos Santos, Francisco Eduardo Campos, Francisco Viacava, Gustavo Zimmermann, Hélio Rodrigues, João Aidar Filho, Joaquim Alberto Cardoso de Melo (in memoriam), José Augusto Cabral de Barros, José Eduardo Passos Jorge, José Rubens de Alcântara Bonfim, José Welmovick, Lais Tolentino, Luiz Antonio Vasconcelos, Luiz Carlos Toledo, Marilia Bernardes Marques, Osvaldo de Oliveira, Raimundo Araujo dos Santos (in memoriam), Rodolpho Caniato, Rosali Ziller de Araújo, Rubens Murillo Marques e Simão Lukowiecki (in memoriam).

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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