Abortado o direito das mulheres argentinas
O rechaço do Senado argentino à aprovação da lei pelo “aborto legal, seguro e gratuito” com meia-sanção já aprovada pela Câmara do Deputados foi um ato político conservador e antidemocrático que tem várias implicações
O rechaço do Senado argentino, neste 9 de agosto, à aprovação da lei pelo “aborto legal, seguro e gratuito” com meia-sanção já aprovada em 14 de junho pela Câmara do Deputados foi um ato político conservador e antidemocrático que tem várias implicações.
Antes de tudo, constata-se a duvidosa representação democrática de um parlamento incapaz de responder à voz das ruas, intimidado pelo crescimento qualitativo do movimento multitudinário de mulheres e adolescentes dos lenços verdes, organizados em todo o país, nas escolas e nos bairros; reconhecido mundialmente, o “Nem uma menos” da Argentina, surgido em 2015. Naquela época, a explosão foi contra os “femicidios”, mas já nos últimos anos, as mulheres caminharam rumo a demandas econômicas, igualdade de gênero, de direitos trabalhistas, salariais e pelo protagonismo político feminino. É sintomático que, Macri, quem acenou o tema do aborto a inícios do ano, com provável cálculo eleitoreiro ou de entretenimento, tenha recuado. Ocorre que a energia social do movimento feminista argentino superou os limites do “feminismo” gerando uma pressão social contrária à totalidade dos ajustes econômicos do governo, e expondo fissuras internas da coalisão de “Cambiemos”.
Enfim, 38 senadores contra 31, decidiram recusar a Lei que legalizava a IVE (Interrupção Voluntária da Gravidez), com a prepotência das forças oligárquicas da política, do viciado “patriarcado”, que coincidem com os neoliberais do ajuste econômico, ignorando um milhão de mulheres nas ruas, a luta de gênero e a nova geração rebelde do século XXI. Os opositores à lei reduziram o debate à questão do “Estado laico contra o confessional”; da religiosidade da “vida do embrião” contra os “assassinos abortistas”, comprometendo o conjunto da Igreja católica, como se todos os católicos fossem contra a Lei, e incluindo os padres dos movimentos de favela, que vivem de perto a realidade das mães e da infância empobrecida. Enquanto isso, movimentos nazi-fascistas perseguidores dos teólogos da libertação, fizeram campanha pelo não à Lei e instigam violências contra a mulher.
Assim abortaram a Lei, usando a religião e o ramerrão da defesa da “vida”, das “duas vidas”. A Lei não interfere na decisão de abortar ou não, mas assegura o direito da mulher de decidir livremente sobre seu corpo, e que, uma vez optando pela IVE, tenha assegurada a sua vida e saúde pelo Estado. Ao rechaçar a Lei, o Senado penaliza e condena as mulheres pobres e as adolescentes argentinas a continuarem arriscando suas vidas na clandestinidade do aborto ilegal e privado. Como já reiterado, a “Lei do aborto legal, seguro e gratuito” não aumentaria os abortos, como alegado pelos opositores, mas asseguraria a despenalização, a prevenção, a medicação e o aborto seguro e gratuito nas estruturas públicas. Sem a lei, os abortos continuarão, porque já são uma realidade difusa na sociedade atual. Com a lei, os abortos não aumentariam e muitas vidas se salvariam; a das mulheres pobres, daquelas sem recursos, possibilitando-lhes a atenção obrigatória do Estado. Isso não ocorreu, sequer uma modificação da Lei, como se esperava, com uma despenalização (não legalização) com modificação no Código Penal, ou diminuição do limite de meses de 14 a 12 meses. A Lei foi simplesmente rechaçada, denotando uma decisão classista e não tanto religiosa.
A lei não passou agora, mas como foi dito, o vento trará de volta este tema, com o ímpeto deste movimento que sacudiu toda a sociedade. “Ninguém pode parar o vento”. Este movimento – que entrelaçou os lenços brancos das avós e mães de Praça de Maio, com os lenços verdes das adolescentes, dos casais de rapazes solidários com suas namoradas, vitimados pelos arrochos econômicos, rompendo silêncios e cumplicidades, sob chuva e frio – retornará, cedo ou tarde, e a questão do aborto será lei.
É preciso agregar mais um ingrediente fundamental, ocultado pela mídia, nesta jornada histórica: o discurso abrangente da senadora e ex-presidenta, Cristina Kirchner. Com tal nível de liderança política inquestionável no país, fica a esperança de que a batalha das mulheres não está perdida e que o tema do aborto legal terá chances de ser retomado na campanha eleitoral de 2019. Isso, se não houver algum Referendo antes. Uma pesquisa do CEOP (Centro de Estudos de Opinião Pública) que tomou 1185 casos, ao indagar se caso houvesse uma consulta popular votaria a favor ou contra a legalização do aborto, 48,8% esteve a favor e 39,4% esteve contra.
O discurso de Cristina Kirchner
O discurso de Cristina Kirchner no Senado, pelas voltas das 2 horas da madrugada do dia 9 de agosto, como líder da bancada da Unidade Cidadã, foi o mais esperado, após outros de bancadas a favor da lei, como o de Pino Solanas, muito significativo, previamente à votação final. Cito abaixo, algumas das palavras de Cristina Kirchner:
“Eu sempre votei pela vida. E governei por e para a vida”
“Pela homenagem à vida que havia sido cerceada de milhares de jovens e mulheres grávidas, de crianças subtraídas da sua identidade, de bebês apropriados (refere-se aos crimes da ditadura). Votei pela vida quando votamos pelo parto humanizado em 2004, pela proteção integral de meninas e meninos adolescentes em 2005, pela educação sexual integral, ligamento de trompas, e vasectomia como métodos anticonceptivos, lá por 2006. E quando já era presidenta, pelo direito do paciente; a lei integral de proteção para a prevenção, sanção da erradicação da violência contra a mulher; depois, se sancionou o matrimônio igualitário; em 2012 com a identidade de gênero, com a modificação do código penal para incluir a figura do femicídio; em 2013, técnicas de reprodução assistida; o código civil e comercial. Levamos adiante políticas sanitárias, que foram modelo como o plano nascer, o calendário nacional de vacinação (19 vacinas) gratuitas, anticoncepção de emergência, regime para as intervenções de contra-concepção cirúrgica, plano operativo para a redução da mortalidade infantil, política para as infâncias; Subsídio Universal por Filho, uma das criações mais importantes para defender a vida porque não há uma vida, duas vidas, ou três vidas. Há uma só vida e há que defendê-la sempre. Também quando distribuímos medicações para a prevenção da gravidez não desejada. Entre 2003 e 2015 incrementaram-se em 1046% os recursos para essa finalidade. ....quando agora faltam anticoncepcionais gratuitos frente a demandas nas estruturas públicas. Cremos que temos que colocar-nos de acordo em matéria de prevenção e cuidado da mulher e das políticas que são obrigação do Estado”.
“Não é fácil abordar um tema dessa natureza, mas é uma obrigação fazê-lo partindo da compreensão de que muito além das nossas crenças e convicções respeitáveis, ...o mais grave desta noite é que pode-se estar de acordo ou não, se pode propor uma modificação, mas estamos rechaçando um projeto sem propor nada alternativo. E a situação vai continuar sendo a mesma. Se eu tivesse a certeza de que votando negativamente ou rechaçando a meia sanção que vem da Câmara de Deputados, não haveria mais abortos na República Argentina, eu não teria dúvidas em levantar a mão. Mas o problema é que este organismo vai votar contra a meia sanção e vamos seguir tendo abortos na Argentina. Aí então, não é apenas um problema de convicções ou crenças, mas de resposta como legisladores a um problema que existe.”
“Vamos ter que incorporar, no movimento Unidade Cidadã a questão feminista no nacional e popular. Por décadas o peronismo foi Nacional, Popular, Democrático e agora Feminista. Porque há dentro da exploração dos trabalhadores, do capital sobre o trabalho, há também uma sub-categoria de exploração, um trabalhador é explorado, mas uma mulher trabalhadora é mais explorada porque ganha menos e trabalha mais.”
“A questão da mulher não é só o da IVE. No governo de Kirchner reconhecemos o papel da mulher, o trabalho doméstico da dona de casa, da aposentadoria. Isso também é reforçar o poder. Eva Peron, teria querido sancionar como lei o convenio trabalhista, do pessoal de trabalho das empregadas domésticas; nós conseguimos depois.”
“A vida se defende em todos os aspectos e em todos os momentos. Não pode-se falar em defesa da vida quando continuam diminuindo os investimentos em educação e saúde. Quando cada vez há gente com maiores problemas de subsistência alimentar, porque há gente com dificuldade de pagar os boletos. Porque isso também é viver . É impossível viver sem recursos, ou com esses recursos diminuindo cada vez mais. Temos que ser muito cuidadosos, quando a partir disso queremos dizer que uns defendem a vida e outros não. Eu sempre defendi a vida. Defendo a vida cada vez que voto em políticas econômicas; isto é, para que as pessoas não estejam em piores condições. Sempre votei aqui pela vida quando me oponho a políticas de restrição social, de desconhecimento de direitos, de precarização de direitos; reduzir direitos é votar contra a vida, porque arruinamos a vida das pessoas ao não dar-lhes boa saúde, nem bons salários e trabalho; quando o dinheiro é insuficiente, quando famílias inteiras estão dormindo na rua.”
“Há que dar uma resposta. Hoje não estamos dando nenhuma resposta. Estamos abaixando a cortina. Estamos rechaçando. Temos que propor uma alternativa.
Os direitos que as pessoas que têm. Elas querem direitos.” Veja discurso na íntegra. Video na íntegra
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