Acordo com a UE promete um grande México
O Brasil de Bolsonaro é governado por ideias anacrônicas e fracassadas, quando as há.
Não me refiro apenas aos delírios messiânicos do chanceler pré-iluminista e da folclórica Damares, ou ainda ao racismo, à homofobia e ao protofascismo do bolsonarismo militante, mas também ao setor supostamente moderno e racional da armada Bolsoleone, representado, de forma estridente e passional, pelo ministro da Economia.
Esse setor ainda acredita que a abertura incondicional da economia levará o país à integração às “cadeias produtivas globais” e ao paraíso da modernidade capitalista e da industrialização 4.0.
É o mesmo e velho discurso que havia se tornado hegemônico na década de 80 e 90 do século passado. Na época, não se falava em “cadeias globais de valor”, mas em “globalização” e na necessidade de os países não perderem o “trem da história”. Todos tinham de abrir irrestritamente suas economias aos ventos invariavelmente benéficos do livre comércio global.
Na época, muitos países da América Latina caíram nesse conto de fadas do livre comércio, das privatizações, do Estado mínimo e do abandono de quaisquer projetos nacionais de desenvolvimento.
O México talvez tenha sido o país latino-americano que mais apostou nessa fadinha globalizante. Além de ter aderido ao Nafta, em dezembro de 1992, o México também assinou, em 1997, um acordo de livre comércio com a UE (o TLCUEM), muito semelhante ao agora assinado pelo Mercosul.
Esse acordo entrou em vigor em outubro de 2000, lá se vão quase duas décadas.
O que aconteceu?
Os defensores da fadinha da globalização e do livre comércio, agora chamada de fadinha das cadeias globais de valor, argumentam que a corrente de comércio entre o México e a UE cresceu muito.
De fato, a corrente de comércio (importações + exportações) entre o México e a UE cresceu de US$ 21, 1 bilhões, em 2000, para US$ 72, 2 bilhões, em 2017. Assim, do ponto de vista puramente contábil, parece um grande êxito.
Não é.
Em primeiro lugar, esses números encobrem o fato de que tal corrente de comércio é fortemente deficitária para o México. Assim, o déficit comercial do México com a União Europeia saltou de US$ 9 bilhões, em 2000, para cerca de US$ 26 bilhões, e 2017.
Mas isso não é mais o importante. O mais importante não é a assimetria quantitativa, mas sim as profundas assimetrias na qualidade dessa corrente de comércio.
Os setores mais dinâmicos dessa corrente de comércio são o de combustíveis e o de veículos transporte. No primeiro caso, o México exporta petróleo cru (cerca de 20% de suas exportações para a UE, em 2010) e importa combustíveis refinados (gasolina, diesel, etc.). No segundo caso, o México importa parte de automóveis e outros veículos e exporta veículos montados.
O que isso significa? Significa que as empresas automobilísticas da Europa exportam para lá as peças principais e de maior tecnologia dos veículos e usa a mão-de-obra barata mexicana apenas para montar os veículos e exportá-los a outros mercados e ao seu próprio mercado, assim como fazem os EUA, com o Nafta.
Em outras palavras, o México agrega pouco valor às cadeias globais de produção.
Com efeito, os dados do Instituto Nacional de Geografía y Estadística (Inegi) mostram que apenas 27% da produção de manufaturas do México estão integrados às cadeias globais de valor. Além disso, mesmo esses 27 % agregam apenas cerca de 35%, em média, ao valor total dos produtos.
Em âmbito interno, isso se reflete em dois fenômenos profundamente negativos.
O primeiro é a baixa geração de empregos de boa qualificação. Assim, as famosas “maquiladoras” propiciadas pelo NAFTA criaram somente 700 mil empregos em 20 anos (1993-2013), ou cerca de 35 mil ao ano, um número ridículo, quando se leva em consideração que, nesse período, ao redor de 1 milhão de mexicanos entraram todos os anos no mercado de trabalho. Um resultado é que os salários dos mexicanos não aumentaram, em relação aos salários dos trabalhadores dos EUA. O outro resultado é que a emigração para os EUA não diminuiu. Ao contrário, foi duplicada, ao longo desse período.
Hoje em dia, aquele país tem, segundo algumas estimativas, 51% da sua população abaixo da linha da pobreza. Segundo o Idegi, ao redor de 57% dos mexicanos sobrevivem com empregos informais.
O outro fenômeno negativo tange à baixa capacidade do México de produzir inovação e tecnologia. Em 2015, o México fez apenas 593 pedidos de depósito de patentes no USPTO, escritório de patentes dos EUA. É um número pífio, principalmente quando se leva em consideração que o México está totalmente integrado à economia dos EUA. Canadá, o outro sócio do Nafta, pediu 13.201 depósitos no USPTO. A China, grande rival dos EUA, solicitou, naquele ano, mais de 21 mil.
O México firmou 32 acordos de livre comércio. Trata-se, talvez, do país que mais assinou acordos de livre comércio no mundo. Nenhuma outra nação se esforçou tanto para “ingressar na globalização” e “participar das cadeias produtivas globais”. Nenhum outro país comprou tantos assentos no “trem da história”. Nenhum outro país acreditou tanto na fadinha da liberalização comercial e econômica sem limites.
Se a fadinha das cadeias globais de valor estivesse correta, o México provavelmente seria hoje um país com uma economia extremamente dinâmica e diversificada, um triunfo absoluto da globalização e do livre comércio. Pelo menos, era o que os mexicanos esperavam. Efetivamente, eles tinham a expectativa de integrar-se às cadeias produtivas globais, de crescer muito, de gerar tecnologia e empregos de qualidade, de superar seus problemas sociais. Sobretudo, esperavam deixar de exportar mão de obra para os EUA e passar a exportar produtos de bom valor agregado.
Entretanto, a fadinha mostrou-se uma bruxa bastante ardilosa e má, favorecendo o lado mais forte da relação econômica assimétrica, em prejuízo dos ingênuos. Os mais desprotegidos nesse processo globalizante hoje acabam nos campos de concentração que Trump estabeleceu na fronteira com o México. Não têm valor algum para as cadeias globais de valor e, segundo denúncias do Partido Democrata, bebem água de privadas.
No caso do Mercosul, os resultados não deverão ser muito diferentes. O acordo, firmado sob preocupante manto de sigilo, com certeza não difere significativamente do TLCUEM.
Embora não se saiba ainda com precisão os seus termos, pode-se deduzir que ele deverá produzir efeitos negativos no Mercosul.
Haverá, é claro, alguns que se beneficiarão do acordo. Certos setores do agronegócio, por exemplo, poderão ampliar suas exportações para a Europa.
Mesmo assim, serão ganhos limitados.
A União Europeia absorve somente 17,5% das nossas exportações agrícolas. Essa participação é cadente, pois a Ásia (principalmente China) vem se tornando nosso grande mercado. O continente asiático, incluindo o Oriente Médio, já absorve quase 60% (58%) da nossa produção agrícola.
No ano passado (2018), exportamos US$17,8 bilhões de produtos agropecuários para a UE. Os destaques são: café em grãos (4,6% do total de bens exportados para a UE), soja in natura (4,6%), celulose (5,0%), carnes in natura, congeladas e derivados (3,8%) e alimentos industrializados (sucos, carnes processadas e farelo de soja-12,5%). Também exportamos em menor escala tabaco, resíduos de soja, óleos vegetais e milho.
As exportações mais expressivas de commodities agrícolas para a UE, as do complexo da soja (13% do total de bens exportados para lá) não serão muito beneficiadas pelo acordo, pois a UE não produz soja. Da mesma forma, o café também não será beneficiado de forma significativa. Os setores mais beneficiados serão os de carne bovina, com uma quota liberada de 99 mil toneladas/ano, o de carne aviária, com uma quota de 180 mil toneladas/ano o de milho em grãos, com uma quota 1 milhão de toneladas/ano, e o de etanol, com uma quota liberada de 650 mil toneladas/ano. A UE também promete zerar alíquotas de imediato para algumas frutas, legumes, alguns peixes e bebidas (como água mineral e cervejas).
Em compensação, o Mercosul se comprometeu a reconhecer, de imediato, 357 denominações de procedência geográfica de produtos do agronegócio da UE, relativas a cervejas, vinhos, queijos, presuntos, conservas etc. Do mesmo modo, nosso bloco prometeu abrir seu mercado para produtos alimentícios da poderosa agroindústria europeia, como chocolates (eliminação das alíquotas de 20%), vinhos (27%), demais bebidas alcoólicas (35%) e refrigerantes (35%), entre outros. Também prometemos eliminar tarifas para laticínios, incluindo queijos (28%).
Observe-se que o acordo prevê que a Europa preservará suas rígidas normas de segurança alimentar, de modo que quaisquer exportações agrícolas do Mercosul para a UE se submeterão às draconianas normas sanitárias e fitossanitárias europeias. Produção com excesso de agrotóxicos, com agrotóxicos lá proibidos, com alguma contaminação ou ainda com suspeita de alguma contaminação voltarão para serem cá desovadas, como aconteceu recentemente com o frango brasileiro.
Acresce a essas tradicionais barreiras sanitárias e fitossanitárias, uma possível nova barreira ambiental. Com efeito, o acordo, que tem todo um capítulo sobre desenvolvimento sustentável, prevê compromissos com conservação de florestas, entre outros. Portanto, produções agrícolas suspeitas de estimularem ações de desmatamento poderiam, em tese, serem proibidas de lá entrar.
Saliente-se, ademais, que a UE não abriu da sua principal barreira protecionista a produtos agrícolas: as generosíssimas políticas de subsídios à agricultura, que dificultam ou mesmo impedem maior penetração de nossos produtos no mercado europeu. Os europeus não são ingênuos.
Já no campo da indústria e dos serviços, a festa é toda europeia. O Mercosul comprometeu-se, num prazo máximo de 10 anos, em zerar suas alíquotas para importação de carros (35%), partes de carros e veículos automotores (18%), máquinas (20%), produtos químicos (18%), produtos farmacêuticos (14%), roupas (35%) etc.
O acordo também abre o mercado protegido de compras governamentais para empresas europeias. Dessa forma, provedores europeus de serviços, como serviços de informática e de telecomunicações, por exemplo, poderão aqui disputar compras do Estado.
Suspeita-se que a nossa indústria local, não terá, com esse acordo, muitas condições de competir com a poderosíssima indústria europeia, notadamente a alemã, que tem um pouquinho mais de competitividade que a nossa, além de conviver com taxas de juros bem menores.
Mas as multinacionais europeias aqui instaladas (e são muitas) poderão usar dos termos do acordo para importar peças de alta tecnologia sem pagar imposto de importação e aqui apenas montar ou maquilar seus produtos com a barata mão-de-obra brasileira, já devidamente domesticada pela reforma trabalhista, como fazem europeus e norte-americanos no México. É a tal da integração às cadeias globais de valor.
Parece, portanto, que os grandes ganhadores do acordo serão alguns setores do agronegócio brasileiro e as grandes multinacionais europeias de bens e serviços. Poderão lucrar também algumas empresas locais que se associarem a essas multinacionais.
Já o que restou da indústria nacional poderá ser destruído. Sem BNDES, sem crédito público, sem compras governamentais, sem Petrobras, etc. para estimulá-las já estava difícil. Agora, com essa abertura generosa, que promete estender-se rapidamente a outros países desenvolvidos, como Canadá, Coreia do Sul, o grupo do EFTA, etc., não sobra muita esperança.
Contudo, o mais prejudicado será o país como um todo.
O acordo com a UE não é apenas um acordo sobre comércio. É muito mais do que isso.
Ele impõe regras sobre propriedade intelectual, sobre regime jurídico de investimentos externos, sobre compras governamentais, sobre suprimentos de serviços, sobre competitividade, etc., que poderão impedir o Brasil e os demais Estados Partes do Mercosul de implementarem políticas de desenvolvimento, de industrialização, de ciência e tecnologia, etc. Até mesmo políticas públicas relevantes, como a de suprimento de medicamentos gratuitos para aidéticos, poderão ser colocadas em xeque, em função das normas desse acordo.
O oba–oba da nossa imprensa e do nosso governo com esse “acordo histórico” é muito semelhante à euforia que se seguiu, no México, após as assinaturas do Nafta e do TLCUEM. Deu no que deu.
No mundo real do capitalismo desregrado, a bruxa da globalização e das cadeias globais de valor faz os ingênuos beberem água de latrina.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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