Água, geopolítica e “juridiquês”
Água é questão de Estado, de geopolítica, de estratégia de sobrevivência de nações. É expressivo promotores e juízes de 57 países produzirem sua "Carta de Brasília"
Criado em 1996 pelo Conselho Mundial da Água, acontece a cada três anos o Fórum Mundial sobre o tema. Agora em sua oitava edição, o evento debateu e propôs iniciativas de defesa e preservação dos recursos hídricos. Também em Brasília, realizou-se o Fórum Alternativo (FAMA), ambos bastante representativos. E, ainda que por ângulos diferentes em suas abordagens sobre o "precioso líquido" e sua importância vital, o ponto em comum é o necessário compromisso para a boa gestão da água.
O FAMA reuniu mais de sete mil participantes representando entidades de dezenas de países. Evento marcante, de maneira incisiva o Fórum Alternativo denunciou as "estratégias das corporações" que visam exercer o controle da água através da privatização, mercantilização e sua titularização como meios para gerar lucros. E destacou que o objetivo desejado pelas corporações é a invasão, apropriação e controle dos territórios, nascentes, rios e reservatórios para atender aos interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa, mineração e geração de energia.
A novidade, neste oitavo Fórum mundial, com mais de 350 sessões em seis dias de atividade, considerado o maior já realizado, são as resoluções de segmentos específicos. Por exemplo, o Poder Judiciário, representado por juízes, promotores e especialistas em questões ambientais e saneamento destas corporações em 57 países, que participou pela primeira vez, produziu a "Carta de Brasília", em que elenca diretrizes com o propósito de garantir que todas as populações do planeta possam usufruir da água e a garantia de seu acesso para todos.
Ainda no campo do "juridiquês", o Instituto Global do Ministério Público, que reúne membros de instituições dessa natureza ao redor do mundo, elaborou sua "Declaração do Ministério Público sobre o Direito à Água", em que destaco dois dos princípios então estabelecidos: 1) os direitos, costumes e relacionamentos dos Povos Indígenas e das Populações Tradicionais com os recursos hídricos são fundamentais para a preservação da qualidade da água, devendo entes públicos e privados respeitá-los e protege-los; e, 2) que a água deve ser contínua, suficiente, segura, com qualidade aceitável e preços acessíveis para todos, com regras e mecanismos para a integração e inclusão dos mais pobres.
Na ocasião como presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e autor da resolução que indicou a representação da Câmara nestes eventos, tive a oportunidade de acompanhar os dois Fóruns e, na condição de coordenador da delegação brasileira, participei dos debates em diversos grupos. Com representantes de legislativos de 20 países, a Conferência Parlamentar produziu também seu Manifesto, que aponta os esforços em garantir a segurança hídrica, universalização do acesso a água potável e promoção do desenvolvimento sustentável. Pelo ineditismo da participação, o desenrolar dos debates e resoluções do segmento jurídico me chamou mais atenção.
Tema complexo e de gravidade, a representatividade tanto do Fórum Mundial como do Alternativo se explica pois água, hoje, é questão de Estado, de geopolítica, de estratégia de sobrevivência de nações, seja através da atuação dos povos e suas organizações populares, seja por meio de corporações empresariais e governos. É expressivo promotores e juízes de 57 países produzirem sua "Carta de Brasília". Assim como o Instituto Global de Ministérios Públicos elaborar sua "Declaração sobre o Direito à Água". Haveria aí um processo de judicialização planetária da água?
A "Carta de Brasília", resultado da Conferência dos Magistrados, aborda questões como o papel da propriedade privada na preservação de florestas e do ciclo hidrológico e a relação dos povos indígenas e comunidades tradicionais com a água. Fala de justiça hídrica, equidade no acesso a água e ao saneamento, importância da governança e, ainda, do necessário acesso público e transparente às informações e gestão de risco, em casos de incerteza científica. Até aí, perfeito. A pergunta é: para onde penderá a balança diante da inexorável escassez de água? Grandes corporações e países com maiores dificuldades de acesso a água, certamente estão de olho.
Não é novidade o processo de cooperação internacional na área jurídica, em torno dos mais variados temas. Vem desde meados dos anos 90 do século passado e intensificou-se no início deste, entre os Ministérios da Justiça e Ministérios Públicos de diversos países sob diretrizes de órgãos como OCDE, OEA e ONU, inclusive. O combate ao terrorismo, crimes cibernéticos e evasão ilegal de recursos são os destaques a justificar esse cooperativismo. Além destes, o Brasil firmou dezenas de tratados bilaterais que regulamentam questões de assistência jurídica recíproca.
Nessa perspectiva, tudo parece perfeito, bem como necessário. Porém, a julgar pela história recente nas ações de combate a corrupção, essa cooperação jurídica internacional nos causa apreensão em solo brasileiro. São bem-vindas as deliberações da Conferência dos Magistrados e do Instituto Global do Ministério Públicos, assim também as resoluções de todos os segmentos que participaram do Fórum Mundial. O Planeta agradece. Seus desdobramentos, até 2021, na realização do próximo evento, em Dakar, diante de um cenário de crescente disputa pelo acesso a água devem ser acompanhados de perto e com a devida atenção.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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